segunda-feira, 10 de outubro de 2016

O morto-vivo

Jorge Finatto

photo: jfinatto


UM FANTASMA que lê, escreve, caminha invisível pela estrada de terra na encosta escorregadia da montanha.

Aquele que morreu e anda por aí, que teima em acordar, tomar banho, trabalhar, comer, dormir, ter pesadelo, ir ao cinema, ler jornal e livro, beber café.
 
O que espera pelo próximo livro de Guillermo Cabrera Infante, que infelizmente não virá mais.
 
Uma assombração que passa em silêncio em direção à mesa de trabalho e o trabalho é uma expansão de solidão entre nuvens.
 
O morto-vivo, coração pulsante, que resiste escrever o próprio epitáfio.
 
Viver lhe parece pouco, irmão leitor? Querias taça de champanha com uvas graúdas em mesa de toalha de linho, sob pérgula, no jardim das delícias?
 
O meio-vivo, meio-morto, no claro-escuro, ternura impossível, esta cidade gemente.
 
Há um boneco de ventríloco sentado na sua esquerda perna, anotando algaravias que ele pensa e já sonha, quando imagina que ainda vive.
 

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

O padeiro feliz

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto, Rio Guaíba, Porto Alegre


NUM TEMPO difícil, por volta dos vinte e seis anos, com excesso de trabalho, escassez de salário e pouco prazer na vida, encontrei uma maneira curiosa de me acalmar e tocar o barco em frente: comecei a fazer pão em casa nas horas livres. Ao invés de me amofinar, vestia o avental e me enfiava na cozinha.

Produzia pães doces e salgados, com variadas especiarias e frutas, numa média de dez por semana. Inventava sabores e formas (uns lembravam um submarino, outros, uma estrela, um peixe, uma borboleta, um avião, um tijolo, etc).
 
Uma padaria artesanal e austera, feita no diminuto forno do fogão a gás. Buscava naqueles pães um pouco de inspiração, de fertilidade em meio à grande secura das coisas. Sentia-me feliz com o ofício de fazedor de pães, deliciava-me com o cheiro que impregnava o apartamento. Embrulhava-os com todo cuidado. Dava para pessoas da família e amigos.

A faina padeira durou cerca de um ano. Sublimei sofrimentos, recalques, frustrações e impotências, que assavam no forno junto com a massa. Cada pão era um ato de resistência. Quanto mais bonito e saboroso, melhor eu me sentia. De onde veio tudo isso? Sei lá. Mas funcionou.
 
Não fui um boulanger de mão cheia, longe disso. Mas também não fui um completo impostor na arte de fazer pães. Vi que servia para alguma coisa além de manusear códigos e livros de direito. Constatei que não morreria de fome se não passasse no concurso para juiz. O pão caseiro, ao menos, estava garantido...
 

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Meu encontro com Walt Whitman

Jorge Finatto

photo: Walt Whitman, em 1887 . Autor: George C. Cox.
Fonte: Wikipédia.


 
Faz muitos anos morei numa cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul. O lugar se resumia a uma igreja católica e outra protestante, duas escolas, um hospital, algumas ruas e casas e pouca coisa mais. Em volta, a natureza. Em certas tardes, eu saía a andar por estradas de terra, solitárias e com aroma silvestre.
 
Caminhar assim é como andar dentro de si mesmo.

Num dia de sol e frio, eu percorria um desses caminhos. Um córrego prateado corria na margem. Numa curva em frente, entre os altos plátanos que se erguiam nos dois lados da estrada, apareceu um homem. Quando nos cruzamos, ele me cumprimentou, em silêncio, fazendo um aceno de cabeça, que eu retribuí.

Ele tinha uma barba branca abundante, uns olhos pequenos muito azuis, o cabelo na altura dos ombros. Usava um chapéu escuro com largas abas, a face um tanto rosada. Vestia um velho casaco, a camisa abotoada até o pescoço. Trazia um livro na mão esquerda.

Eu tive certeza de que se tratava do poeta norte-americano Walt Whitman (1819 – 1892).

Fiquei orgulhoso e feliz de estar ali, pisando o mesmo chão que o grande Walt.

Seria o espectro do poeta aquele homem que eu vira? Seria alguém muito parecido?

Encontrei-o em outras duas caminhadas. Como da primeira vez, éramos só nós, a estrada verde, a brisa e o rumor do córrego. Fiquei observando o poeta. Ele entrou num desvio lateral da estrada, subiu uns cinquenta metros em direção a uma pequena casa de madeira.

A casa era muito branca e delicada. Sozinha, lá no alto, mostrava cortinas azuis nas janelas abertas, e flores, muitas flores da estação no breve jardim em volta.

Walt entrou pela porta dos fundos e desapareceu.

Uma chaminé de alumínio saía pelo telhado, soltando minúsculos círculos de fumaça.

Pensei em conversar com o poeta da última vez em que o encontrei. Talvez ele parasse um momento num remanso, conversasse um pouco comigo e até dissesse alguns versos de Folhas da Relva, sua obra-prima. Mas não. Achei melhor não incomodar. Afinal, os poetas trabalham enquanto caminham em silêncio por estradas de chão.

Um dia chegou a minha hora de ir embora da cidade pequena.

A vida seguiu, muitos caminhos eu percorri depois. Mas nunca esqueci que, em certas tardes, numa cidadezinha do interior, eu caminhei na mesma estrada por onde andava Walt Whitman.

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Transbordante de Vida
                                                      Walt Whitman

Agora, transbordante de vida, sólido, visível,
No ano quarenta de minha existência, no ano oitenta e três dos Estados,
A alguém que viverá dentro de um século, ou em qualquer número de séculos,
A vós, que ainda não haveis nascido, dedico estes cantos, esforço-me por
alcançar-vos.
Quando lerdes, eu que sou agora visível, hei-de ter-me tornado invisível; então sereis vós, denso e visível, quem lerá os meus poemas, quem se esforçará por compreendê-los,
A imaginar quão felizes seríeis se me fora dado estar ao vosso lado e converter-me em vosso camarada;
Que seja, pois, como se eu estivesse. (Não duvideis demasiadamente que não esteja então ao vosso lado).

Poema extraído de O Livro de Ouro da Poesia dos Estados Unidos, coletânea de poemas organizada por Oswaldino Marques, edição bilíngue, Ediouro, tradução de Manuel Ferreira Santos.
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Texto revisto, publicado no blog em 17, abril, 2010.

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Notícias do mundo do farelo

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto, 27/9/2016
 

UM PASSEIO no jardim pode trazer belas revelações. Resolvi levar comigo a Coruja, ex-máquina fotográfica, quase um ser humano, companheira de andanças e descobertas.
 
Setembro é mês deveras frio em Passo dos Ausentes. Apesar disso, as cores e seivas da primavera não se escondem. Rosas vermelhas, bromélias cor-de-rosa, éricas, orquídeas, agapantos azuis, cerejeiras-do-japão, etc., dão o ar da invulgar beleza.

O ipê-amarelo está lindo de ver. Comecei a fazer algumas fotos dele. Lá pelas tantas, percebi a presença, no seu entorno, do verde colibri. Mas assim como vi, desvi, porque os olhos não andam lá essas coisas e o bichinho voa muito depressa. Quando paira no ar, são restos de segundos.

Só mais tarde constatei que tinha conseguido pescá-lo numa imagem. Pura revelação. Nada é mais importante do que o beija-flor em sua conversa com o ipê.

As coisas aparentemente insignificantes encerram as grandezas do universo. O raro mundo do farelo.
 

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

A guardiã da alma e do tempo

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto

A máquina de escrever é a verdadeira máquina do tempo.*
Guillermo Cabrera Infante

 
Contigo aprendi a escutar a chuva.

Foi o que fiz, Maria, ontem, na madrugada de insônia. E me lembrei das tardes antigas em que, no inverno, me contavas histórias na velha casa de madeira e eu adormecia ouvindo a tua voz misturada à voz do vento.

No fundo do pátio, entre os plátanos, passava o arroio, levando o céu e as nuvens no seu espelho, fazendo rumor sobre os seixos, conversando com os canteiros da horta.

O arroio rompia desde o interior verde da mata e levava mundo afora meus barcos de papel e as folhas das árvores.

Nas águas claras a nossa vida se refletia, misturada ao azul do infinito e à cor luminosa dos peixes.

O mundo era cálido e suave como ninho de passarinho.

A casa se enchia com aroma de cravo, mel, açúcar queimado e canela. Quando acordava, sobre a mesa da cozinha estavam os doces que tinhas feito.

Nunca houve um mundo mais terno do que aquele que construíste ao meu redor. Nem existiu abraço mais consolador e verdadeiro ao teu menino.

Tecias com tuas mãos delicadas o ofício de guardiã do tempo e da minha alma.

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* A Ninfa Inconstante, Guillermo Cabrera Infante, p. 16. Coleção Literatura Ibero-Americana, Folha de São Paulo, 2012.
  Texto revisto, publicado no blog, pela primeira vez, em 25 de agosto, 2012.

sábado, 24 de setembro de 2016

A palavra viva de Carlinhos Oliveira

Jorge Finatto

caricatura de José Carlos Oliveira, por Amarildo Lima¹
 
Artistas e intelectuais: é justamente a minha família. Somos uma raça que se destaca em qualquer parte do mundo pela pobreza sem drama, pelo desleixo e pelas pupilas ardentes de curiosidade. Em solidão somos sombrios, sempre ruminando um ódio qualquer ou uma insatisfação que é quase um alimento, mas reunidos somos alegres, informais, carentes de afeto e generosos. (trecho da crônica O lar dos artistas)²                                                     
                                                            José Carlos Oliveira


TENHO COMPRADO livros em sebos (alfarrabistas como se diz em Portugal). Livros que, em geral, estão fora de catálogo ou são de difícil acesso. O que me chama atenção é o bom estado dos volumes que adquiri. Em nenhum deles encontrei uma assinatura, um risco, uma sublinha ou garafunha. As páginas estão limpas como se tivessem saído ontem da gráfica.

Tão diferente dos meus livros, nos quais faço notas a caneta nas páginas, sublinho, coloco a data e o local onde os comprei, se estava chovendo, o meu sentimento naquele quando. Os meus são livros cheios de rastros.

Quero falar de um em especial, dos vários bons livros que encontrei nos sebos. Trata-se de Flanando em Paris, do escritor José Carlos Oliveira (1934-1986). Natural de Vitória, Estado do Espírito Santo, publicou suas crônicas durante muitos anos na imprensa e foi um dos grandes do gênero no Brasil. Pois este livro tem sido um dos meus melhores companheiros ultimamente.

Impressiona como o autor está vivo nestas linhas. A intimidade que estabelece com o leitor, nunca forçada, é admirável. É um diálogo espiritual entre pessoas que estão à vontade numa mesa de café, olhando a vida em volta, com tempo para sentir e conversar.

Vejo, engulo, assimilo, transformo: quando a digestão se completa, estou mais rico. Mas a digestão é lenta, são necessários anos de ruminação. (trecho da crônica O artista sem fome - 1)³

O texto encantador de Carlinhos Oliveira é cálido, cúmplice, convivente. Acompanha o leitor em sua árdua jornada pelo dia, na dura faina de viver. Instiga-o a olhar o mundo e refletir, sem perder a poesia do cotidiano.

Flanando não é um livro de impressões de um turista qualquer pelas ruas de Paris, cidade que amava e onde esteve algumas vezes. São cartões-postais da alma de um artista da palavra de profunda e abrangente sensibilidade.

Pequeno na estatura, vespertino e notívago, escasso em recursos financeiros, mas com enorme poder de observação e registro do humano, escreveu estas páginas memoráveis.

São crônicas solidárias com as pessoas, seus conflitos, alegrias e sofrimentos. O escritor não se conforma com a desumanização e não se dá por vencido, apesar da dureza da existência.

Os textos espelham o olhar de um poeta, filósofo, jornalista, arqueólogo do espírito, antropólogo das esquinas e cafés parisienses. Um observador profundamente brasileiro e ao mesmo tempo universal.

Só posso dizer que é uma leitura venturosa. Flanando em Paris é um coração pulsante e belo no corpo da língua portuguesa.


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¹Blog do Amarildo:
https://amarildocharge.wordpress.com/2011/07/30/jose-carlos-oliveira-caricatura/ 
²Flanando em Paris. José Carlos Oliveira. Seleção, organização e notas por Jason Tércio. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2005.
³idem.
 

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Noites austrais

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 
 
O planeta girava em lentos círculos. Aquela rua de chão batido era um grão à deriva no universo. Em certas noites geladas de junho, a conversa avançava pela madrugada. Na cozinha, em volta do fogão a lenha que ardia, cada um contava uma história, um caso real ou inventado. As notícias eram poucas. O rádio, quando pegava alguma estação, fazia  zumbido de mil abelhas. A luz elétrica de tão fraca era uma claridade escura. O menino tinha  vindo ao mundo há cinco, seis anos. Estava vivo contra todas as expectativas devido à saúde frágil. Era bom adormecer no colo da avó ouvindo vozes na velha casa de madeira de pinheiro. Era bom fazer parte daquele retrato perdido no tempo.  Era uma dádiva estar vivo no labirinto. Riscos de estrelas atravessavam o céu, caíam num lugar misterioso ali perto. Sobreviventes na longa noite austral, as pessoas observavam a geada encobrindo a escuridão lá fora. Águas subterrâneas corriam limpas debaixo das casas, afloravam nos poços, encanamentos, regavam secos sentimentos, derrubavam muros de ódio, lavavam a sujeira dos corpos, das almas. Para onde foram aquelas vozes? - pergunta o coração do menino - para onde correram aquelas águas?
 
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Texto revisto, publicado antes em 26 out. 2010.