Jorge Finatto
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photo: jfinatto |
a Mauro Carboni
a vida de todos os dias, a que eu sempre quis {textos e imagens: Jorge Finatto}
Jorge Finatto
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a Mauro Carboni
Jorge Finatto
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photo: jfinatto |
Um belo pôr do sol iluminou a copa dos pinheiros, dos plátanos e dos telhados, hoje, aqui na montanha. Vermelho suave no início, depois rosicler, viva aquarela.
Uma pintura delicada num tempo desesperado. Um concerto de trompa alpina a céu aberto. Um mergulho na maravilha.
Clareira de luz em meio à treva absoluta.
Jorge Finatto
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bergamotas. foto: jfinatto |
A tentação da carne leva os mortais a cometer loucuras. Apaixonados e obsedados, esquecem todo o resto e submergem na vertigem luxuriante dos sentidos. Estremecem, deliram, lambuzam-se. Depois, prostram-se saciados diante do prato vazio.
Eu parei de comer carne. Acolhi o mantra: não matarás do reino animal para teu sustento. Sublimei a tentação, tornei-me um ser frugal. Clorofilizei-me.
Inaugurei uma nova dieta: verdes alfaces, tenros chuchus, meigas ervilhas-tortas, nédias melancias, socados abacates, recatadas couves-flores, risonhas bergamotas. Sem esquecer o inefável melão gaúcho, as inolvidáveis morangas e as voluptuosas batatas-doces.
Substituí o verbo matar pelo plantar. Troquei os rebanhos pela horta; o peso pela leveza.
Jorge Finatto
Em breve estaremos todos mortos e com saúde.
Esta parece ser a lógica negacionista que renega medidas recomendadas por médicos e cientistas para enfrentar a covid-19. De tanto não fazer o que precisa ser feito, o Brasil está com transmissão e óbitos em níveis elevadíssimos. Só nas últimas 24 horas morreram 4.249 pessoas, conforme dados oficiais, alcançando o total de mais de 345 mil mortes.
Os números terríveis saem todos os dias à tarde, estragando as restantes horas do dia. E dizer que com lockdown ou, pelo menos, distanciamento social rígido por cerca de 21 dias, fornecendo às família necessitadas auxílio para manter-se em casa, milhares de vidas poderiam ser salvas, como ocorreu recentemente em Araraquara e Manaus.
Eu já vi muita estupidez na vida. Nada se compara, contudo, ao que acontece hoje no país. O mau jeito dos governantes em lidar com a crise sanitária, com poucas exceções, e a falta de união nacional em torno do combate à hecatombe produzem efeitos nefastos.
Quem ainda não perdeu um parente, um amigo ou conhecido? Quem, sendo pessoa razoável, não teme por sua família e por si? Quem não sofre com o noticiário vertiginoso dando conta de hospitais superlotados, unidades de terapia intensiva esgotadas, médicos e enfermeiros em prolongado estresse diante dos casos que são obrigados a ver e administrar todos os dias?
Quem não se sente abalado ao saber das mortes sem oxigênio, sem que o doente (isolado) tenha um familiar ou amigo a quem dar a mão?
Já se fala que o número de mortos poderá superar o de nascimentos no Brasil.
Por que a razoabilidade foi expulsa do nosso país? Por que esse bate-boca diário e infernal sobre política e temas tão mesquinhos que em nada ajudam? Em que momento nos tornamos isto, um lugar onde a morte e o sofrimento invadiram o cotidiano de forma avassaladora? O que foi feito de nós?
Que triste mensagem estamos transmitindo ao mundo! Que assustadora visão: a imensa caravana de mortos indo para os cemitérios!
A percepção negacionista da realidade e seu discurso venceram entre nós. Resta saber quantas pessoas mais perderão a vida devido ao obscurantismo. Porque hoje, no Brasil, o que mais se faz é contar e numerar cadáveres, esquecendo-os em seguida.
Jorge Finatto
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photo: jfinatto |
Jorge Finatto
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Nubes 2. jfinatto |
Hoje, no trem, um homem disse: "Sofro muito. Queria ir pra cama dormir e só acordar daqui a um ano". Falava por ele, mas também por mim.
Muitas madrugadas ele passa em claro. Lê no escritório desde revistas antigas até livros de arte, passando por ensaios, romances, quadrinhos, etc., numa voragem de leituras como nunca experimentou antes. É preciso domesticar a insônia, expulsar os pensamentos ruins.
Quando cansa de ler, perambula de um lado a outro da casa. Um fantasma como os que habitam os retratos nas paredes. Um deles, em especial, toca-o. Aquele em que aparece com a mãe. Devia ter 4 anos e parece tímido, mas está de bem com a vidinha.
Um dos problemas de envelhecer é que perdemos a mãe. Ele anda pela casa à espera de que os mortos saiam dos retratos para uma reunião de família. Não sabe o que a mãe diria a respeito dessa angústia. Provavelmente mandaria tomar um chá de camomila e depois dormir. "Para de te atucanar. Tudo vai passar." Que é, talvez, o melhor a fazer. Gostaria de acordar só depois que a peste fosse embora.
Medo? Falta de paciência para enfrentar o restante da terrível pandemia que, no Brasil, rivaliza com os piores desastres recentes da humanidade? Sim, isso também. Mas, acima de tudo, uma bruta exaustão, mais de ano vivendo a realidade traçada com tintas de horror.
A palavra mais falada hoje no Brasil é morte. Mas chega, já passou da hora de enriquecer o vocabulário, diz ele. Que tal substituí-la por re-viver, re-encontrar, re-abraçar, res-suscitar (estamos em plena Quaresma)? Para isso precisamos res-peitar as regras que impedem a propagação do vírus. O resto vem junto, pensa. E volta pro escritório.
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*Ese Hombre y otros papeles personales. Ediciones de La Flor. 3ª ed, pág. 266. Buenos Aires, 2012. Tradução livre do fragmento: Jorge Finatto. Palavras do escritor a propósito da morte da filha Vicki (María Victoria).
Jorge Finatto
Livraria Miragem, São Francisco de Paula. foto: jfinatto |
ELE me empresta seu caderno de poemas às vezes. Eu não leio nada, porque tenho preguiça e não entendo muito de poesia. Mas sempre ouvi dizer que poetas são pessoas bacanas. Só que não têm dinheiro. E são sentimentais também.
Pra mim o meu amigo é poeta dos maiores do mundo. Não temos muitos aqui nos Campos de Cima do Esquecimento. Tudo que ele fala tem alguma coisa diferente e estranha a gente. E fico eu pensando nas coisas abismadas que diz. Como estas que anotei:
- Borboleta é uma coisa tão bonita que nunca devia de morrer.
- Joaninhas, como os cegos, são muito caladas mas percebem tudo ao redor.
- Nuvens parecem inofensivas mas quando ficam bravas despejam cachoeiras e raios pelas ventas.
- A mulher do vizinho pode ser muito angulosa mas é bom passar longe de sua geometria.
- O gato é vaidoso, autossuficiente e feroz (que o digam os ratos) como todo felino. Gosta de dormir no colo de seu dono como criança inocente.
- Fernando Pessoa não foi um poeta. Foi um dicionário de poetas. É um milagre da língua portuguesa e de todas as línguas.
- Os livros não têm resposta pra tudo, é verdade, nem podem nos salvar. Mas nos ajudam a viver. Abrem caminhos para o que não conhecemos, fora e dentro de nós. Nos completam e mexem com nossas certezas.
- Os escritores trabalham como um moinho que vai sentindo e meditando as coisas da vida, re-moendo os fatos e as circunstâncias, deles extraindo sentidos. O resultado são palavras que nos entregam com a suma dessa experiência e suas revelações.