terça-feira, 30 de março de 2021

Me acordem quando a pandemia passar

 Jorge Finatto

Nubes 2. jfinatto

Hoje, no trem, um homem disse: "Sofro muito. Queria ir pra cama dormir e só acordar daqui a um ano". Falava por ele, mas também por mim.                                      

                                                     Rodolfo Walsh*

Muitas madrugadas ele passa em claro. Lê no escritório desde revistas antigas até livros de arte, passando por ensaios, romances, quadrinhos, etc., numa voragem de leituras como nunca experimentou antes. É preciso domesticar a insônia, expulsar os pensamentos ruins. 

Quando cansa de ler,  perambula de um lado a outro da casa. Um fantasma como os que habitam os retratos nas paredes. Um deles, em especial, toca-o. Aquele em que aparece com a mãe. Devia ter 4 anos e parece tímido, mas está de bem com a vidinha.

Um dos problemas de envelhecer é que perdemos a mãe. Ele anda pela casa à espera de que os mortos saiam dos retratos para uma reunião de família. Não sabe o que a mãe diria a respeito dessa angústia. Provavelmente mandaria tomar um chá de camomila e depois dormir. "Para de te atucanar. Tudo vai passar." Que é, talvez, o melhor a fazer. Gostaria de acordar só depois que a peste fosse embora. 

Medo? Falta de paciência para enfrentar o restante da terrível pandemia que, no Brasil, rivaliza com os piores desastres recentes da humanidade? Sim, isso também. Mas, acima de tudo, uma bruta exaustão, mais de ano vivendo a realidade traçada com tintas de horror.

A palavra mais falada hoje no Brasil é morte. Mas chega, já passou da hora de enriquecer o vocabulário, diz ele. Que tal substituí-la por re-viver, re-encontrar, re-abraçar, res-suscitar (estamos em plena Quaresma)? Para isso precisamos res-peitar as regras que impedem a propagação do vírus. O resto vem junto, pensa. E volta pro escritório.

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*Ese Hombre y otros papeles personales. Ediciones de La Flor. 3ª ed, pág. 266. Buenos Aires, 2012. Tradução livre do fragmento: Jorge Finatto. Palavras do escritor a propósito da morte da filha Vicki (María Victoria).

2 comentários:

  1. Jorge, o que me chamou atenção foi o desfecho do texto: “O resto vem junto, pensa.” Isso me fez relembrar: “Buscai primeiro o Reino de Deus e tudo mais vos será acrescentado”(Mateus. 6,33). Esse é o caminho e estás trilhando corretamente. Sim, apesar da “bruta exaustão” e da “falta de paciência para enfrentar o restante da pandemia”, ainda encontras inspiração para escrever belíssimos textos que são verdadeiros refrigérios da Alma. Vejo nisso que estás, primeiramente, em busca dos valores espirituais que são eternos, em detrimento dos bens materiais que são efêmeros... Abraço, meu amigo, e obrigado.  

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    1. Atapoã, que bela lembrança do texto de Mateus!Eu me sinto muito pequeno para "compreender" Deus. Não passo nem perto. Creio que ele é imenso demais para minha compreensão. Mas "sei" que ele está por aí. E peço que ele intervenha sem muito tardar no planeta e especialmente no Brasil, onde o absurdo, a falta de todo senso se instalou e governa o país. É muita tristeza, luto por todo lado. Muito obrigado pelas palavras, amigo. Fica com Deus! Um abraço.

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