domingo, 27 de janeiro de 2019

Graciliano, tanto mar

Jorge Finatto
 
Estátua de Graciliano Ramos.
Maceió. photo: jfinatto
 
PASSEI uns dias em Alagoas, quase todos na Praia do Francês. Descobri o mar mais lindo que vi até hoje. No início, achei o pessoal introvertido. Mas aos poucos, puxando conversa aqui e ali, descobri pessoas afáveis, gentis, educadas, mais reservadas que expansivas. Um lugar que pretendo voltar.
 
Entre outros motivos (além de rever o mar morno, verde e hialino), para conhecer o Parque Memorial Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga. Território de resistência e de afirmação do povo que veio da África na maldição dos navios negreiros e que aqui fundou um país. O Brasil profundo é criação do negro.
 
photo: jfinatto
 
Um dia fui até a Livraria Leitura, no Parque Shopping, em Maceió. Estava na terra do grande Graciliano Ramos e não podia deixar de comprar um livro dele. Escolhi Alexandre e outros heróis, livro de causos alagoanos contados por Graciliano. Textos escritos depois de publicados seus romances fundamentais. Obra de excelência, portanto. Graciliano, autor de Vidas Secas,  está entre os autores que mais li.
 
Em Maceió o carro percorreu a avenida à beira-mar ao longo da qual estão as belas praias da capital. Foi lá que pedi ao motorista para parar a fim de eu fotografar a estátua de Graciliano Ramos. O escritor diante do mar verde-azulado sem fim. Sem fim como o espírito, o engenho e a arte do velho Graça.
 
 photo: jfinatto
 

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Saudade do mar

Jorge Finatto
 
Praia do Francês. photo: jfinatto
 
O MAR, sempre ele, leva o pensamento longe, muito longe, muito além da África que está em frente, basta seguir sobre uma linha reta e ela nos levará direto para uma praia africana. Aqui da Praia do Francês, em Alagoas, esta proximidade da Mãe Terra África é ainda maior do que no Rio Grande do Sul.
 
O azul desse mar que ora é verde chega a doer nos olhos. Caminhando, vemos os peixes e a areia a nossos pés, tudo muito claro, ensolarado. Água morna e transparente,  boa de se deitar nela e ficar olhando o céu, uns poucos brancos retalhos de nuvem sobre o azul.
 
Praia do Francês. photo: jfinatto
 
Infinito lá e cá no mar. Parece que esses momentos nunca terão fim. Decerto nunca terão. Porque isso tudo foi feito para viver e brilhar. Para deleite de Deus e nosso.
 
Daqui alguns dias virá outra viagem, frio, neve, caminhos molhados, mala nas costas, trem. Perambular noutras querências. De querência em querência, a vida pulsando, mundo grande, maior do que os nossos sonhos. Coração batendo diante de tanta beleza.
 
Praia do Francês. photo: jfinatto
 
photo: jfinatto
 

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

La donna è cieca, lei vede tutto

Jorge Finatto
 
 

A MULHER é cega, ela vê tudo. Com visão diferente: se o mundo das aparências lhe foge, ela toca o chão com a bengala e apalpa os corpos e objetos para decifrá-los. Contudo, o mundo abissal dos corações lhe é familiar. Ela transita pela intimidade das coisas.

Estou falando de Emma, personagem do belo filme italiano A cor escondida das coisas (Il colore nascosto delle cose), que no Brasil levou o título Emma e as cores da vida, de 2017, dirigido por Silvio Soldini. Com excelentes desempenhos de Valeria Golino (Emma) e Adriano Giannini (Teo).

Nada é fácil na vida de Emma. A duras penas teve de orientar-se no mundo sem luz, desde que, ainda menina, perdeu a visão. Habitou grandes soledades, desenvolveu com paciência e obstinação a ciência de resolver-se sozinha. Multiplicou-se em intuição e percepção. É osteopata de ofício.

Teo e Emma

Mas é sobretudo vidente, do tipo que vê com o cérebro e com o coração. Sim, desse tipo de gente de que o planeta está quase vazio. Por estar aberta ao encontro e ao amor, acaba por encontrá-lo. Justo no seu caso.

Comovente ver sua disposição em direção à amizade, ao afeto, à beleza, sem coitadismo. Ela quer, mas sem desespero, sem que o outro entre na sua vida e faça o que bem quiser. Ela quer, ela pode ser independente contra todas as dificuldades que sua condição impõe.

Com simplicidade e sabedoria, Emma abre portas e janelas na escuridão de todos os dias. Para si e para os outros.
 

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Borges e Rilke

Jorge Finatto
 
cidadezinha de Sierre, Suíça. photo: jfinatto
 
Nossos nadas pouco diferem; é trivial e fortuita a circunstância de que sejas tu o leitor destes exercícios, e eu seu redator.* 
   Jorge Luis Borges
 
Faz algum tempo estive em Sierre, no Cantão do Valais, Suíça, para visitar o pequeno Castelo de Muzot onde viveu o poeta Rainer Maria Rilke entre 1921 e 1926. Nele o poeta concluiu as Elegias de Duíno, além de construir a parte final de sua obra.
 
Visitei também a fundação que leva seu nome na cidade. Depois fui a Rarogne à procura do túmulo do poeta. Uma visita afetiva como quem procura um velho parente a quem só se conhece em fotografia. Esse parentesco espiritual que se estabelece entre poetas e leitores. Já escrevi sobre detalhes curiosos desta visita aqui no blog.
 
Em ambos os lugares não havia viv'alma além de mim. Em Rarogne, além das ruas vazias e do silêncio,  nevava. Quase dava para ouvir os flocos escorregando no ar, caindo sobre a tarde. Na metade da montanha alpina, estava o túmulo, no chão, solitariamente posicionado ao lado de uma igreja, distante dos outros túmulos do cemitério interiorano.
 
Dali se avista o vale entre as enormes montanhas cobertas de neve em direção a um infinito horizonte cósmico. Não por acaso o próprio Rilke escolheu aquele lugar para última morada quando descobriu que estava com leucemia.
 
Em Genebra pensei visitar o Cimetière Plainpalais onde se encontra o túmulo de Borges.  Mas desisti. Creio que esgotei minha capacidade de ir a cemitérios-museus depois do Père-Lachaise, em Paris, do Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, e desse pequenino de Rarogne.
 
Talvez porque Borges esteja ainda muito vivo na sua Buenos Aires, e é fácil encontrá-lo nas calles e bibliotecas do mundo.
 
O fato é que ambos estão demasiado vivos nos livros que escreveram. Nenhum deles poderá queixar-se da posteridade que parece tratá-los muito bem, obrigado, dispensando-lhes carinho semelhante aos que possuem Dante, Shakespeare, Pessoa, Eliot, Bandeira, Frost, Bashô, Drummond e outros mortos imortais.
 
Quanto a mim, acho que já estou um pouco gasto pelo tempo para ficar visitando cemitérios, sendo recomendável deles manter esperta distância. Atento à máxima que nos diz: "quem não é visto não é lembrado".
 
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Primeira poesia. Jorge Luis Borges. pág. 15. Tradução de Josely Vianna Baptista. Companhia das Letras, São Paulo, 2007.
 

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Hay vida antes de la muerte?

Jorge Finatto
 
photo: j.finatto
 
 
EM MONTEVIDÉU, os grafites, em geral, têm espírito. As inscrições, desenhos e pinturas em muros e fachadas das ruas montevideanas não perdoam a superficialidade. Uma vez lidos, não deixam o caminhante em paz.
 
Pressentindo que seria um absurdo virar as costas e seguir indiferente, resolvi fotografar e trazer comigo alguns. Na ocasião, eu andava caminhando nas cercanias do Teatro Solis.

Vejam este: Hay vida antes de la muerte?

A pergunta me acompanha desde então, veio com a bagagem de volta a Passo dos Ausentes.
 
Não bastassem as perplexidades e angústias de sempre, acrescentei mais esta ao meu baú de assombros.

Afinal, haverá mesmo vida antes da morte ou seremos apenas tristes fantoches com a boca colorida e olhos opacos, às voltas com o sofrimento, a indiferença, o desamparo, o desamor e a solidão?

O que sei é que há dias em que me sinto muito vivo. Parece que a morte ainda não foi inventada. Em outros, contudo, viver parece não valer um caco.

Hay vida antes de la muerte?
 
Sí, sí, sí. Pero, hay días que es mejor olvidar....
 
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Texto atualizado, publicado antes em 14 de junho, 2011.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

A dureza da lei e o intérprete juiz

Jorge Finatto
 
Dura lei, mas lei. Este brocardo é curto, mas em compensação não presta. A vida em si mesma já é tão dura que eu acho um exagero de mau gosto fazê-la ainda mais dura com a dureza da lei.¹
            
ESTA FRASE é da crônica "Crime de casar", escrita por Rubem Braga (1913-1990) para o jornal Folha da Tarde, de Porto Alegre, em 1939. Penso que todo juiz, ou candidato a, devia lê-la. Suscita questões importantes em torno da aplicação da lei. É uma reflexão construtiva, sutil, bem-humorada, irônica, que vem em proveito da difícil arte de julgar.
 
Acredito, como o notável cronista de Cachoeiro de Itapemirim, que a aplicação fria da lei mais escurece do que ilumina. O que é a aplicação fria? É a desconsideração do fator humano.
 
O julgador precisa considerar as circunstâncias pessoais do indivíduo e do meio que o cerca. Estamos falando de processos onde isso tem relevância, não em demandas em que a realidade objetiva se sobrepõe, como quando se discute, por exemplo, matéria técnica de natureza tributária.
 
Mas nas ações que envolvem sentimentos, o estudo e a decisão devem ir além da obviedade da regra jurídica. É necessário aprofundar o exame daquilo que a aparência muitas vezes esconde. Evidente que há uma zona cinzenta em que não é fácil fazer esta avaliação. O desafio é justamente não desistir.

Lá em cima, além, muito além da estratosfera, como diria Alencar, na região puríssima da moral absoluta, faz frio demais, e falta pressão: falta pressão sentimental. A vida humana não é possível sem uma certa pressão.²
  
A aplicação humana da lei é pressuposto essencial para fazer justiça no caso concreto, o que contribui para o aperfeiçoamento da vida em sociedade. Ninguém vive no interior de um laboratório asséptico livre de vicissitudes e imperfeições. Não significa negar validade à norma (salvo quando inaplicável ou inconstitucional), mas operar com lucidez sobre o tecido dos fatos.

A lei deve vir ao mundo real, freqüentar o ambiente humano.

A lei é uma moldura indispensável para a convivência social. O trabalho do juiz consiste em temperar a dureza da lei, sua abstração ideal, com os matizes da vida.

Na verdade, sinto que fiz muito bem em não querer ser juiz. Como simples cidadão, sou respeitador das leis: se fosse juiz, num caso desses, eu a desrespeitaria. E antes ser um bom sujeito que um mau juiz, penso eu.³
 
Se julgar fosse tão só aplicar glacialmente o regramento legal, não precisaria haver juiz. Um computador poderia fazer melhor o serviço e de forma infinitamente mais rápida e barata. Mas isto, por óbvio, não seria fazer justiça.
 
O que se espera do juiz, no ato de julgar, é que concilie conhecimento jurídico e técnica com sensibilidade e humanismo. Diante disso, discordo do mestre Rubem Braga: creio que teria sido um grande juiz.
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¹ Morro do Isolamento. Rubem Braga. Crônica "Crime de casar", pp. 55/57. Global Editora, 7ª edição. São Paulo, 2018.
² idem, p. 56.
³ idem, p. 57.