sábado, 22 de agosto de 2020

Tempo/espaço à beira do abismo

Jorge Finatto

photo: jfinatto


Nesse tempo/espaço à beira do abismo... Começar um texto com essa frase é um grande espanta-leitor. Eu mesmo ando atrás de palavras que me levantem do chão, deste chão de pandemia com mais de 113 mil mortos pela covid-19 no Brasil. Este calcinado chão da realidade brasileira cuja desumanidade derruba qualquer um. 

Como cultivo um jardim (gosto da vida), reescrevo o título: Tempo/espaço à beira de um jardim.

Eu já tive mais esperança no nosso país. Quando achava que poderíamos dar um passo adiante depois das últimas eleições, com um basta à corrupção e ao cinismo, o resultado é este que aí está. A reafirmação do atraso, da ignorância, do autoritarismo, da indiferença. A lava-jato sob ataque em diferentes níveis. A inexplicável e inacreditável ausência de um médico à frente do Ministério da Saúde em plena pandemia.

Minha decepção também quanto a nós como sociedade, educados que fomos pra não atentar para o coletivo e só ter em conta o próprio umbigo, "cuide de você, esqueça o resto e suba na vida". As ruas selvagens das nossas tristes cidades são o retrato acabado deste infeliz mantra.

Adolescência. Um pobretão em escola de classe média alta sonha alcançar uma profissão, por ele e por aqueles que não tiveram a mesma chance. Sofre os olhares e gozações de praxe por estudar com bolsa de estudos, vestir-se como pobre, não ser claro nem ter olhos azuis, ir de ônibus ou a pé pra escola, não viajar nas férias, não ter dinheiro pra nada. 

Quando um dia conseguiu comprar a primeira calça Lee americana, a grife já tinha saído de moda há tempos. Não perdeu o jeito, foi adiante e realizou seus principais objetivos: conquistou uma profissão e construiu uma família. Foi muito além do preconceito e do pouco caso dos "mestres e colegas".

Queria viver num país infinitamente menos egoísta e desigual. A corrupção mutila o futuro de meninos e meninas que nunca terão oportunidade no ensino e no trabalho. Um crime contra toda a sociedade.

Mas é preciso não perder de vista o sonho em um país melhor. Ele constrói-se na cabeça e nos gestos de pessoas que levam a honestidade e o sentimento de justiça a sério, que lutam por isso no seu dia a dia. Essa prática começa dentro de casa, nas coisas mais simples. Depois ganha o mundo. 

Com esse espírito, agarrado no que resta de esperança, vou vivendo e cultivando meu jardim.

2 comentários:

  1. O teu lúcido texto fez-me lembrar de uma passagem de Ortega Y Gasset: "Debaixo de toda a vida contemporânea encontra-se latente uma injustiça profunda e irritante: a falsa suposição da igualdade real entre os homens. Cada passo que damos entre eles mostra-nos tão evidentemente o contrário que cada caso é um tropeção doloroso." (A Desumanização da Arte). Abraço, amigo.

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    1. O filósofo e sua visão profunda e penetrante das coisas do mundo. A nossa condição, a existência difícil. A espiritualidade nos leva além das trevas. Não podemos ficar só na matéria. Obrigado pela citação. Não conhecia este pensamento. Um abraço, Atapoã!

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