quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Alfonsina y el mar

Paulo Fabris
Médico e escritor, Porto Alegre




Mercedes Sosa e Atahualpa Yupanqui foram, segundo o maestro Júlio Medaglia, os representantes maiores daquilo que se convencionou chamar latinidade. Os dois cantavam com clareza, simplicidade, exatidão, transformando todas as canções em hinos sinfônicos, folclóricos, coletivos. Quem não lembra de Gracias a la vida, Volver a los 17 e Alfonsina y el mar?

Alfonsina, por sua vez, foi uma personagem real e única: nasceu na Suíça, filha de pais ítalo-argentinos, mas com apenas 10 anos de idade vivenciou o fracasso econômico, a doença e a morte do pai e daí em diante todas as dificuldades que levaram a que abreviasse a sua infância; teve então que trabalhar como costureira e operária, até que conseguiu ser aprovada em concurso para professora rural.

Mais tarde fugiu da província com a companhia teatral de José Tallavi, engravidou e teve seu único filho em Buenos Aires. Depois viajou pela Europa, conheceu artistas de vanguarda, escreveu, apaixonou-se e sofreu as dores de muitos amores. Estudiosos da literatura a comparam a Gabriela Mistral, poeta chilena e primeira latino-americana a receber o Nobel de Literatura (em 1945).

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

As amargas, não


Alvaro Moreyra





Agora é tempo de voltar. Para onde? Naturalmente para o céu, onde os anjos, irmãos remotos, que não desceram à terra, estão com a mesma infância e as mesmas asas. Eu não levo as asas com que vim. Desmanchei-as pela estrada. Levo as penas que sobraram. No percurso às avessas, encontro “um certo reino à esquina do planeta”. Dele recebi as primeiras imaginações. Descanso junto das sombras que me formaram assim, uma espécie de exilado. Se eu quisesse confessar do que fui construído, teria que dizer: de alguns poetas de Portugal e de alguns jesuítas de todo o mundo. O resto foi ornato. Bastante me pintaram. Bastante me rebocaram. Fiquei intacto sobre os velhos alicerces, no mesmo pé direito, com o estilo primitivo, de janelas abertas para a luz e para o ar.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Navegador de barco de papel

Jorge Adelar Finatto





O pequeno barco feito com folha do caderno escolar levanta âncora no bolso do homem sério e triste.

Um homem circunspecto, com tantos casos para decidir.

Quem o vê saindo assim para o trabalho, de manhã cedo, terno, gravata e pasta, não imagina o que leva no coração.

Olha o mundo através das grossas lentes dos óculos, carrega perplexidades e sonhos que ninguém percebe.

O barco de papel desliza entre as vagas do dia pesado e cinza.

O navegador sonha a fuga do real, ao avistar o Guaíba da janela do gabinete.

A cidade vive dentro do rio uma existência invertida. No fundo das águas habitam seres harmoniosos, os gestos são calmos, existe esperança.

O navegador planeja o exílio do mar de conflitos e sofrimentos em que mergulha todos os dias.

No fim da tarde, caminha até a beira do rio, retira o barco do bolso, solta-o na água. Larga a pasta, tira a gravata, o casaco, os sapatos, empurra a embarcação e salta para dentro.

Sobre Maria João Pires


José Saramago


Maria João Pires não teve muita sorte com o país em que nasceu. Sessenta anos de carreira (e que extraordinária carreira a sua) justificariam uma homenagem de âmbito nacional capaz de expressar a nossa gratidão por pisarmos o mesmo chão e respirarmos o mesmo ar. Não será assim, pelos vistos, ainda que não lhe venham a faltar na terra portuguesa outras manifestações de admiração e respeito. Foi em casa de uns amigos que a ouvi pela primeira vez, quando ela não passava de uma adolescente que, com o seu frágil corpo, mal parecia haver saído da infância, e que me fez temer se os braços e as mãos lhe chegariam para enfrentar-se ao gigantesco teclado. O piano familiar, vertical, talvez não estivesse em perfeito estado de afinação, mas as primeiras notas saltaram límpidas, cristalinas, dando-me a sensação, não de serem a mera consequência do choque dos martelos com as cordas, mas de haverem brotado directamente dos dedos da própria pianista. Foi o meu baptismo na arte de Maria João Pires. Depois, ao longo dos anos, sempre que ela, já viajante emérita, aparecia por Lisboa a dar os seus recitais, eu lá estava, rogando às potestades celestes que a protegessem do mau-olhado, de um simples sopro de ar que a perturbasse. Talvez por efeito das minhas petições e do crédito que tenho no céu, todos os concertos e recitais de Maria João Pires a que assisti chegaram felizmente ao seu termo. Desta vez, por razões de distância e também de saúde, não poderei estar presente, dar palmas e beijar as suas mãos tão cheias de música, de humanidade, de beleza. Por tudo o que me fez ouvir e sentir, Maria João, obrigado.


Eunice Muñoz lê o texto "Sobre Maria João Pires":

http://caderno.josesaramago.org/wp-content/uploads/2009/11/maria_joao_pires2.mp3

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O Caderno de Saramago. Texto de 09/12/2009

http://caderno.josesaramago.org/.

Fundação José Saramago

http://www.josesaramago.org/

A grafia é a de Portugal.

ermo. Devez, por razões de distância e também de saúde, não poderei estar presente, dar palmas e beijar as suas mãos tão cheias de música, de humanidade, de beleza. Por tudo o que me fez ouvir e sentir, Maria Jo

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Celebro a vida que virá



Jorge Adelar Finatto





Un petit espoir très féroce:
c’est moi!
Robert Lalonde


Ainda não nasci
sequer faço parte da paisagem
escuto uns gritos do outro lado: não estou

a sombra é apenas o começo
do previsível caminho
que vai dar na aurora

ainda não nasci
no entanto, é para breve

celebro a vida que virá
rompendo a escuridão
explodindo em alegria
como a primavera depois do inverno

sei onde isso terminará:
flor no extremo do ramo
beleza enchendo o vazio

faço do silêncio
um grande bosque
onde borboletas passeiam
pássaros inventam a claridade
com seu canto

imagina uma faísca que, súbito, paira no ar
uma palavra procurando um oco de boca
uma pequena luz que cresce: sou eu


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Foto: Jorge Finatto
Poema do livro O Fazedor de Auroras,Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Dois poemas de Heitor Saldanha


 capa de A Hora Evarista



Hoje enquanto tiver dinheiro
                                            beberei
Depois
           entregarei ao garçom
                                  meu relógio de pulso
                                    meus carpins de nylon
meus óculos de tartaruga (que nome bonito)
                         minha caneta tinteiro
e continuarei bebendo
                                  bebendo
                                  sem literatura
                                          sem poema
                                                  sem nada.
Só.
Como se o mundo começasse agora.
Estou nesses conscientes estados de alma
em que não posso me salvar
                                    e nem salvá-la.


& &  &


ANDAMENTO

De que estarei me despedindo hoje?
Há em mim uma clara ressonância de
                                                     despedida.
Mas não devo saber,
                              nem é preciso saber.
Creio que vim
                     pra dizer um dia
                                        na cara do mundo:
hoje estou me despedindo.
E as criaturas boas do meu sangue
                        abririam a boca
que lhes cortasse o ímpeto inexpresso.
Claro que estou me despedindo.
                Hoje sou mais criança do que nunca.

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Heitor Saldanha (Cruz Alta 1910 - Porto Alegre 1986).
Poemas extraídos do livro A Hora Evarista, Instituto Estadual do Livro, Editora Movimento, Porto Alegre, 1974.


Depoimento do escritor José Louzeiro


Eis-nos frente a frente a um senhor poeta.
Um dos mais importantes que temos: Heitor Saldanha. Extremamente meticuloso e profundamente retraído, vemos Heitor Saldanha circunscrito na área daqueles poucos que desconfiam do que fazem e, por maiores que sejam os elogios ouvidos, preferem o aprofundamento no trabalho.
                        
                                    José Louzeiro, Jornal do Escritor, Rio de Janeiro, 1969.

Entrevista com Heitor Saldanha

Jorge Adelar Finatto


Heitor Saldanha

 
exploro o pulso da forma
para poder deformá-la
e passo
sou minha ultrapassagem
(Heitor Saldanha)


Conheci o poeta Heitor Saldanha nos idos e sobrevividos de 1980.

A descoberta de sua poesia foi uma forte revelação. O elevado nível de criação poética e o apurado trato da linguagem colocam-no entre os principais autores do gênero no Rio Grande do Sul e no Brasil. Por essas coisas que a gente não consegue entender, permanece desconhecido.

Nascido na Serra do Caxambu, município de Cruz Alta, em 28 de abril de 1910, ao longo da vida Heitor fez várias coisas. Tocou viola, cantou versos de improviso, foi funcionário da Viação Férrea e servidor público, entre outras atividades. Acima de tudo, foi um homem comprometido com o humanismo e a poesia, sempre atento ao que se passava com os semelhantes.

A indiferença jamais fez parte do seu modo de ser.

A infância passou-a na região serrana de Cruz Alta, entre bichos e os rios Fiúza e Caxambu. A mãe do poeta, Dona Amélia Gonçalves Dias Saldanha de Vasconcelos, era descendente do poeta Gonçalves Dias. O pai, Otávio Saldanha de Vasconcelos, era repentista, tocava violão, cantava, tinha temperamento expansivo e escrevia bilhetes que encantavam o filho.

Em meados de 1946, junto com Raymundo Faoro, Sílvio Duncan, Luís Carlos Maciel, Vicente Moliterno, Pedro Geraldo Escosteguy, Fernando Castro, Joaquim Azevedo e outros, fundou o Grupo Quixote, que seria reconhecido em todo o país por sua atividade cultural. Em 1947 os integrantes do grupo lançaram a revista Quixote, cujo lema era uma frase do filósofo espanhol Miguel de Unamuno: “Vamos fazer uma barbaridade”. O Grupo desenvolveu intensa agenda literária e artística até o ano de 1961, quando deixou de existir.

No início da década de 1950, Heitor decidiu ir trabalhar nas minas de carvão da cidade de São Jerônimo, perto de Porto Alegre. Durante dois anos e meio desceu ao fundo do poço e viu como era a vida dos mineiros, com o sentimento e o olhar de um mineiro. Ali encontrou o tema do livro “As Galerias Escuras” (1969), obra considerada um marco da poesia social brasileira. Os mineiros souberam do livro e deram de presente ao poeta uma lanterna de mina, a única possibilidade de luz nas escuras galerias.

Em 1958 foi viver no Rio de Janeiro, onde permaneceu por doze anos, retornando depois a Porto Alegre. Aqui viveu até a morte em 1986. No Rio fez relações com Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, de quem foi muito amigo, Aníbal Machado, Ferreira Gullar, os irmãos Campos, João Antônio, Moacyr Félix, entre outros.

A obra de Heitor Saldanha possui voz luminosa, e fala por muitos.

Quem lê seus poemas sabe que está diante de um grande poeta, dono de um lirismo e de uma visão de mundo que penetram de forma vertical na experiência humana. Ao mesmo tempo, seus versos descolam-se da realidade e viajam até a mais alta transcendência.