segunda-feira, 15 de março de 2010

Pharol de Santa Martha

Jorge Adelar Finatto


Um dos grandes fotógrafos brasileiros, Eduardo Tavares estará autografando seu livro Pharol de Santa Martha, na próxima quarta-feira, 17 de março, a partir das 19h30min, na Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que fica na Rua Ramiro Barcelos, 2705, atrás do Planetário, em Porto Alegre.

A publicação resulta da conviência amorosa do autor com o antigo farol de 1890, cujo nome original era assim mesmo, com ph e th.  Desde 1982 Tavares frequenta o local, situado a 15 km de Laguna, Santa Catarina.

Sempre que pode, ele ocupa uma casinha do Morro do Céu e de lá observa a maravilha. São praias, lagoas, dunas, sambaquis, a flora e a fauna, a vila e seu povo, a pesca, o turismo, o farol iluminando tudo no inverno e no verão. Eduardo remete o leitor a esse ambiente único e também conta a história do lugar.

O livro  tem formato elegante, 264 fotos coloridas e texto do próprio autor. São 68 páginas de beleza e sensibilidade, em papel cuchê, pelo preço de R$ 35,00. Pedidos podem ser feitos pelo email ete@terra.com.br.

Jornalista com notável currículo, Eduardo lecionou na UFRGS e trabalhou em revistas como Veja e Manchete, entre outras.

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Foto: Eduardo Tavares

A solidão segundo Heitor dos Crepúsculos

Jorge Adelar Finatto

 


Somos poucos e invisíveis. Habitamos os Campos de Cima do Esquecimento.
 
O outono amadurece nas ruas da velha cidade. É quando, no silêncio de antigos retratos, as imagens ganham vida própria e passam a viver outra existência. Um certo rumor habita o silêncio.

O fantasma-mor de Passo dos Ausentes diz que desistiu de aparecer e desaparecer no ar feito nuvem de neblina. Heitor dos Crepúsculos afirma que o motivo é simples: a canseira que isso lhe dá.

- Materializar-se, desmaterializar-se, não apenas cansa, como é parte de um formalismo que perdeu a razão de ser neste lugar, - declara.

- É um ritual desnecessário em Passo dos Ausentes, onde todos padecem do fenômeno da invisibilidade.  A cidade e seus habitantes nem ao menos figuram no mapa do Rio Grande do Sul, - constata Heitor.

O nosso lugar no universo é um mistério.
 
Somos personagens de um mundo em extinção.

A cidade não existe oficialmente, apesar dos inúmeros pedidos nesse sentido feitos ao Estado ao longo do tempo, todos denegados. E, no entanto, somos uma das cidades mais antigas da Província de São Pedro. Surgimos logo depois da destruição da Missão de São Miguel Arcanjo pelos exércitos de Espanha e Portugal. Essa história já abordamos no documento A cidade perdida: as origens, neste mesmo espaço.




As pessoas nada sabem da nossa cultura, das nossas origens, do nosso sentimento e da nossa história. Vivemos isolados. Em parte devido às difíceis condições de acesso pelas encostas das montanhas. Também influi o fato de sermos uma pequena comunidade com cada vez menos habitantes. Um outro aspecto tem a ver com a indiferença dos governantes e dos meios de comunicação, que só vêem o que lhes interessa.

Simplesmente não nos vêem, não nos conhecem, não nos sentem.

A Sociedade Histórica, Literária, Filosófica, Geográfica, Artística, Geológica e Astronômica de Passo dos Ausentes, presidida pelo filósofo Don Sigofredo de Alcantis, decidiu incluir Passo dos Ausentes na carta estelar da constelação de Atlântida, como forma de melhorar a nossa autoestima. É onde hoje figuramos no universo.

De certo modo Heitor tem razão de abandonar certas formalidades fantasmagóricas na Terra dos Ausentes. Anda pelas ruas como um de nós. Ninguém estranha.

A única norma fantásmica da qual Heitor não abre mão é a que diz respeito a jamais deixar-se fotografar. Isso, segundo afirma, seria expor-se demasiado, até mesmo para um fantasma com costumes e idéias liberais como ele.

O lugar preferido de Heitor dos Crepúsculos, na verdade, são dois.

Um deles é o Café Somos Poucos, um recanto aprazível, com gerânios nas janelas, perto da Praça do Esquecimento. Ali se pode tomar o delicioso cappuccino dos suspiros, acompanhado do inefável sonho do oblívio.

Heitor senta-se no fundo do café. A pequena mesa fica ao lado de uma janela que tem sempre metade da veneziana fechada, a seu pedido.

- Gosto de ficar aqui lendo, é o meu ponto de observação das palmeiras, da estrada de ferro e das ausências que povoam esse não-lugar - observa.
 
O outro lugar de Heitor dos Crepúsculos é a velha estação de trem abandonada. Está desativada desde 1951. A antiga maria-fumaça permanece na gare, como nos tempos dos trens de passageiros. Mas nunca ninguém mais viajou como antes.

Dos Crepúsculos aparece na estação, nas tardes cinzentas, pra conversar com seu amigo Juan Niebla, 86 anos, músico cego que toca bandoneón pra alegrar os invisíveis passageiros que não chegam mais. Niebla, apesar disso, não abandona o cargo público para o qual fez concurso e foi nomeado aos 15 anos, em 1927, ficando cego logo em seguida. Permanece no seu posto aguardando a volta do trem de ferro.
 
- No dia em que o trem voltar a nossa cidade, subindo as íngremes montanhas outra vez, estarei aqui para receber os viajantes - diz ele.

Às vezes, Niebla e Heitor saem a caminhar sobre os dormentes até desaparecer na névoa que aqui em Passo dos Ausentes é permanente. Em certas ocasiões, Heitor faz movimentar a maria-fumaça e eles saem em breves passeios pelo caminho dos pinheiros, na margem sinuosa do Rio da Ausência.
 



O trem, que nunca mais desceu os temerários paredões de basalto da Serra dos Ausentes, contorna perigosos peraus nas cercanias da cidade, descortinando ao longe uma das mais belas vistas do planeta. O trem fantasma depois volta para seu lugar na estação.

Numa de nossas conversas, Heitor dos Crepúsculos confidenciou o quanto a solidão lhe pesa no coração.

O fantasma gosta de me visitar vestindo o negro capote, nos dias de chuva, no escritório.

- Como já disse uma vez, um fantasma só se torna fantasma porque ama a vida e não aceita volatilizar-se em definitivo. Sonha a impossível permanência entre os vivos. Sempre me sinto sozinho, o que não é de espantar para alguém que se matou, num momento de bobeira, aos 27 anos. O anoitecer é o pior momento do meu dia. Queria ter sido uma pessoa mais leve, mais feliz, com mais fé. O que se há de fazer?
 
Continua Heitor:

- À noite é quando fica mais escuro dentro da minha alma. Saio a me procurar pelos corredores, escadas e sótãos do meu ser abandonado. Sinto essa falta de ser que sempre me acompanhou. Durmo por exaustão, é como cair num poço. É estranho como certas ausências nos acompanham pela vida e atravessam o umbral conosco.

- A noite me invade e me desconcerta. Esse frio e esse vento me habitam. Vivi, vivo (modo de dizer) no chapadão dos Campos de Cima do Esquecimento. Um tempo sem relógios.
 
- Os dias caem do calendário como as folhas no outono.

- Nasci em Passo dos Ausentes, aqui me criei.  O meu melhor amigo sempre foi Juan Niebla. Não me evita como os outros.

Niebla costuma dizer:

"Pra mim, nunca morreste, Heitorzinho. Não sei se és um fantasma como dizem, nessa altura pouco me interessa. Se fores, tanto faz. Sou músico e sou cego, moro nessa lonjura, um pouco fantasma também. O importante é que me visitas. Como vês, aqui na estação tudo é muito solitário. Sou eu, meu bandoneón e este banco. Ainda bem que estás por perto.
 
"Acho que somos todos uns desarraigados neste mundo, uns pobres coitados, cada um traz o irremediável dentro de si, só que uns escondem melhor o desamparo do que os outros".

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A cidade perdida: as origens:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/06/cidade-perdida-as-origens.html

Um fantasma quer conversar:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/05/um-velho-fantasma-quer-conversar.html

A claridade do coração:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/04/claridade-do-coracao.html
 

sábado, 13 de março de 2010

O Clube da Esquina

Jorge Adelar Finatto




O que nos dizia o Clube da Esquina no vendaval das nossas vidas pequenas e massacradas na década de 1970? Dizia que era possível ir muito além da pobreza material e espiritual daqueles dias. Dizia que valia a pena acreditar na amizade, no encontro, na ousadia, na transgressão do ódio e da hipocrisia.

Mostrava que nada podia amputar nossos sonhos, nossa criatividade. A vida podia e devia ser bonita.

O Clube da Esquina não tinha carteirinha, nem endereço, tampouco piscina e sede campestre. Era um lugar espiritual onde as pessoas se reuniam em qualquer dia, qualquer hora, qualquer estação do ano. Os sócios espalhavam-se pelo Brasil.

A senha dos frequentadores do Clube estava no jeito, no olhar, no modo de ser, na amizade verdadeira, na busca.

Muitos construíram saídas existenciais frequentando o Clube da Esquina. Ali se cultivavam encontros, pomares de alegria, viveiros de afeto. Um modo diferente de olhar a vida num país que tinha perdido o encanto e a esperança.

Uma maneira diferente de traduzir essa coisa tão velha que é o indivíduo estar no mundo, mergulhado numa paisagem sombria, sob sol e chuva, e seguir adiante, apesar de tudo.

Construções melódicas e letras inusitadas, instigantes, sensíveis, tão diferentes do que tinha sido feito até então.

O fundo musical da minha adolescência foi inventado pelo Clube da Esquina, de Milton Nascimento, Lô Borges e companheiros de estrada. Estamos falando dos anos 1970. O famoso clube mineiro vinha dos anos sessenta, quando Milton tinha vinte e poucos anos e havia feito músicas eternas como Travessia (em parceria com Fernando Brant) e Morro Velho, que chamaram a atenção do mundo.

O Clube da Esquina, disco lançado em março de 1972, trazia um recado urgente. Era uma música nova, numa época difícil. As portas estavam fechadas para a juventude. Os ares das montanhas de Minas Gerais, o sertão, as veredas, as paisagens de concreto, vidro e aço das grandes cidades, a loucura da história, tudo vinha junto nas canções. O antigo e o moderno.

A impressão é que nada de importante escapava dos integrantes do Clube. Eram poetas lúcidos e líricos, profundamente brasileiros, latino-americanos, um canto universal.

Havia no trabalho daqueles jovens músicos e compositores muito de cinema, leitura de filosofia, literatura, conhecimento da arte em geral, que os levava a uma reflexão atual sobre a vida, a risco, a céu aberto. O paredão da censura e do medo não lhes caía bem, o grupo rejeitava com coragem esse tipo de interferência.

Eu estudava com meia bolsa numa escola particular de Porto Alegre, na qual havia filhos de famílias de classe média e alta. Quando vim a ter a minha primeira jaqueta Lee, americana, esse vestuário já saíra de moda.

Sempre estive fora de moda naquela escola. Ir todos os dias pra casa, no bairro distante, no ônibus velho e lotado, era de certa forma um alívio. As pessoas mais afortunadas não conseguem esconder certa estranheza diante dos pobres, quando eles entram no seu ambiente.

Mas a leitura e a música, duas coisas relativamente acessíveis, abrem caminhos ensolarados.

No Clube da Esquina não se barravam pessoas pela classe social ou qualquer outra. Aprendi a olhar nos olhos dos outros, sem ter vergonha de ser pobre e não ter as coisas materiais que, para muitos, são importantes. Havia outras riquezas.

Foi um amigo da escola, filho de militar de alta patente do Exército, quem comprou o primeiro Clube da Esquina. Me convidou para ouvir o disco. O cara tinha até um quarto só pra ele! Passamos muitas tardes de nossas vidas de adolescentes dentro do Clube.

Podíamos, então, sair em viagem com O tem azul (Lô Borges e Ronaldo Bastos):
Coisas que a gente se esquece de dizer
Frases que o vento vem às vezes me lembrar
Coisas que ficaram muito tempo por dizer
Na canção do vento não se cansam de voar
Você pega o trem azul
O sol na cabeça
O sol pega o trem azul
Você na cabeça
O sol na cabeça

O Clube da Esquina era a gente andando no meio do mundo. A gente vivendo numa realidade seca, mas com esperança.

Os militares ocupavam o poder de forma truculenta. Do outro lado, pessoas estavam na luta armada. O país se matava. Não havia conversa, não se encontravam saídas. Era o tempo dos assassinatos, dos sequestros, da tortura, dos banimentos, dos assaltos a bancos, das emboscadas, da violência como única forma de luta.

A luta encarniçada pelo poder.

A estética do Clube da Esquina era a da resistência e do rompimento com o atraso e a falta de imaginação. Em 1972, o antológico disco foi um enorme acontecimento. Entre os participantes estavam Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Lô Borges, Márcio Borges, Beto Guedes, Toninho Horta, Wagner Tiso, Paulo Moura, Nelson Ângelo, Eumir Deodato, além, claro, do próprio Milton. Em 1978, veio à luz o Clube da Esquina 2, com nomes em acréscimo, como Tavinho Moura, Paulo Jobim, Joyce, Ruy Guerra, Novelli, Danilo Caymmi, entre outros.

As pessoas que participavam do Clube da Esquina tinham em comum a inquietação pelo novo, na vida pessoal e no espectro coletivo, sendo a música a via de chegada a este tempo futuro, que já se fazia presente nas letras e canções. Pessoas de diferentes classes sociais, com aspirações de justiça e fraternidade, se encontravam no Clube.

Em 1975, Milton Nascimento apresentou-se com seus amigos em Porto Alegre. Foi no Gigantinho, ginásio de esportes ao lado do Gigante da Beira Rio, do Internacional, à beira do Guaíba. Lembro-me que não ocupamos a arquibancada, o público era pequeno. Sentamos no chão mesmo, à vontade, diante do palco improvisado, a poucos metros dos músicos. Foi um grande e inesquecível show, Milton cantando os "clássicos" que faziam tremer nossos corações. Depois, generosamente, atendeu aos pedidos de músicas extras.

O pessoal do Clube da Esquina não assumiu pose de ídolo. Eram ao natural. Começando pelo primeiro, Milton Nascimento, reservado, com notável intuição, informação cultural e uma capacidade impressionante para decifrar os enigmas do tempo e ver adiante. Com suas músicas, esses artistas iluminaram o nosso duro chão de viver.

Ainda hoje escuto as músicas do Clube da Esquina com o mesmo arrepio, o mesmo alumbramento dos anos setenta do século passado. Como puderam fazer algo tão bonito e ao mesmo tempo tão presente na vida de tanta gente? O trabalho dos integrantes do Clube vinha de outra esfera de consciência, reservas espirituais.

Estavam perto de Deus, dos anjos, dos homens.

Com eles, num domingo qualquer, sem nenhuma perspectiva, aprendemos que Nada será como antes (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos):
Eu já estou com o pé nessa estrada
Qualquer dia a gente se vê
Sei que nada será como antes, amanhã
Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Alvoroço em meu coração
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite
Um gosto de sol


Num domingo qualquer, qualquer hora
Ventania em qualquer direção
Sei que nada será como antes, amanhã
Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Sei que nada será como está

Éramos urbanos, mas, nas canções do Clube, colocávamos os pés também no interior, em estradas de terra, conhecendo nosso país. Andávamos de carro de boi, atravessávamos vales e montanhas, tomávamos banho de rio e de mar.

Nenhum outro movimento musical nos disse tantas coisas, nos tocou tanto, nos projetou para o futuro, em um país que tratava - e ainda trata - seus jovens como marginais.

A obra visceral de Milton Nascimento e seus amigos nos alimentou com vida solidária e convivente.

Um sentido de partilha atravessou a escuridão.

Uma visão de transcendência espalhou-se no cotidiano.

Uma paisagem vista da janela mostrou-nos que a vida pode ser o que fizermos com ela.

Um pouco/muito da existência de muita gente no canto e na voz humana de Milton Nascimento.

No meu bornal de lembranças, lá está o trenzinho passando na frente das montanhas, com o sol atrás, como no desenho de Milton. Aquelas canções seguem dentro de nós pelas ruas vazias, nas salas de espera, nas filas dos ônibus, trens, barcos e aviões, nas calçadas, nos hospitais, praças, na volta do mercado público de Porto Alegre, nos difíceis ambiente de trabalho.

A vida nunca mais seria a mesma.

Milton gravou mais uma vez a amizade, no Clube da Esquina 2, na canção Que bom, amigo, de sua autoria:
Que bom, amigo
Poder saber outra vez que estás comigo
Dizer com certeza outra vez a palavra amigo
Se bem que isso nunca deixou de ser
Que bom, amigo
Poder dizer o teu nome a toda hora
A toda gente
Sentir que tu sabes
Que estou pro que der contigo
Se bem que isso nunca deixou de ser
Que bom, amigo
Saber que na minha porta
A qualquer hora
Uma daquelas pessoas que a gente espera
Que chega trazendo a vida será você
Sem preocupação

O Clube da Esquina, sem carteirinha de sócio e sem sede, nos acolheu e tratou como irmãos.
Como disse Milton, no excelente livro Os sonhos não envelhecem*, do poeta, escritor e autor de letras de canções Márcio Borges:

“E mais uma vez penso que o Clube não pertencia a uma esquina, a uma turma, a uma cidade, mas sim a quem, no pedaço mais distante do mundo, ouvisse nossas vozes e se juntasse a nós. O Clube da Esquina continua vivo nas músicas, nas letras, no nosso amor, nos nossos filhos e quem mais chegar”.

O Clube da Esquina, solto no espaço como nuvem, tem a porta de entrada no nosso coração.


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Foto: capa do disco Clube da Esquina, 1972.
*Os sonhos não envelhecem. Histórias do Clube da Esquina. Márcio Borges, p.358. Geração Editorial, São Paulo, 1996.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Cuba e os direitos humanos

Jorge Adelar Finatto

As ditaduras são feitas de cadáveres e prisões. Não existe a figura do bom ditador.

Sejam de direita ou de esquerda, ditaduras são igualmente infernais.

Após a morte do pedreiro e dissidente político Orlando Zapata Tamayo, 42 anos, em 23 de fevereiro de 2.010, em consequência de 85 dias de greve de fome, o psicólogo e jornalista cubano Guillermo Fariñas, 48 anos, também está em greve de fome, desde 24 de fevereiro. As informações mais recentes dão conta de que é muito preocupante seu estado de saúde.

Fariñas afirma que está pronto a sacrificar-se, se o governo de Cuba não libertar 26 presos políticos que estão com a saúde debilitada em prisões da ilha.

Os irmãos Fidel Castro Ruz, ex-presidente, e Raúl Castro Ruz, atual líder político de Cuba, não se mostram dispostos a permitir a democratização e nem a rever a forma de tratar os opositores do regime de partido único (Partido Comunista de Cuba).

A Revolução Cubana, vitoriosa em 1959, liderada por gente como Fidel Castro e Ernesto "Che" Guevara, combateu a ditadura do general Fulgencio Batista, que, entre outras violências, tratava com brutalidade os inimigos políticos.

Os atuais dirigentes cubanos repetem a intolerância contra os adversários. Dados do Departamento de Estado dos Estados Unidos informam a existência de 194 presos políticos em Cuba.

Informações divulgadas na imprensa mostram que a revolução trouxe avanços sociais a Cuba, principalmente em áreas como educação e saúde. É um país pequeno, que tem hoje cerca de 12 milhões de habitantes.

O embargo econômico imposto pelos Estados Unidos só tem colaborado para a falta de avanços políticos em Cuba. A posição americana é um obstáculo ao fim da ditadura e fortalece o discurso persecutório dos governantes cubanos.

Fidel Castro, seu irmão e sequazes cometem o erro essencial de todos os ditadores: acham-se insubstituíveis, e não admitem a transição democrática do poder. Consideram-se melhores e mais preparados do que todos os outros cidadãos e só eles sabem o que é bom para a sociedade.

O governo cubano não reconhece a existência de presos de consciência e afirma que o que há são mercenários a serviço dos Estados Unidos, alegação que não convence mais ninguém.

O que se pergunta é quantas prisões e mortes mais serão necessárias para que se estabeleçam o diálogo e o respeito aos que pensam diferente do governo em Cuba.

É uma violência aos direitos humanos um mesmo grupo manter-se no poder por tanto tempo, afastando a população da democracia, negando-lhe direitos políticos.

Não existe justificativa, do ponto de vista ético, político e social, para essa eternização, que só é possível mediante a eliminação da liberdade e, às vezes, da própria vida de quem é contrário ao sistema.

O que se espera do governo brasileiro é uma posição firme e clara contra a falta de democracia naquele país e contra a perseguição movida aos que se manifestam por mudanças. É incompreensível, aliás, o já longo silêncio das autoridades brasileiras em relação à escuridão política em Cuba.
 

quinta-feira, 11 de março de 2010

Discreta canção para um guarda-chuva perdido

Jorge Adelar Finatto

Se encontrares por aí 
um guarda-chuva perdido
toma-o na mão
e leva-o contigo

alguém distraído
perdeu-o
sem querer
na casa do vento

não o abandones
por favor
na neblina
do oblívio

acolhe esse amigo
que foi esquecido 
num banco de praça
na tarde vazia
de um domingo

oferece-lhe
afeto e abrigo

um dia talvez 
ele partilhará
a longa solidão
do inverno
contigo


















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Fotos: J.Finatto

quarta-feira, 10 de março de 2010

Breves anotações de um fantasma

Jorge Adelar Finatto

desenho a bico de pena, 1979, j.finatto
 
As dedicatórias, nos velhos livros dos sebos, me comovem.

Dói nelas a solidão de não mais pertencerem a alguém. Estão soltas no mundo como a mão que acaricia o vento. Caíram no alçapão do tempo, o afeto cobriu-se de pó.

Numa estante qualquer perdida no planeta, as velhas dedicatórias sofrem a tristeza da ausência.

                               &       &      &      & 

Abro ao acaso o volume das Elegias de Duíno*, poemas de Rainer Maria Rilke, livro que não visitava há muitos anos. Na orelha está a minha assinatura e o registro de um tempo: abril de 1977.

O primeiro verso da primeira elegia inaugura a perplexidade diante da existência, o recolhimento do ser, a transcendência:

Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos me ouviria?

                               &      &      &      &

Tenho o costume de fazer pequenos apontamentos nos livros que leio. Não me constranjo de sublinhar trechos, tecer comentários nas margens, corrigir alguma coisa que me pareça fora de lugar. Faço isso sem remorso, hábito enraizado como o de cheirar os livros. Cada um tem seu aroma.

Nunca me incomodo de encontrar anotações nos livros comprados nos sebos da vida. Pelo contrário, me interessa saber o que o anterior proprietário escreveu, o que lhe chamou a atenção, as impressões que lhe ficaram da leitura, alguma observação curiosa.

                                     &     &        

Heitor dos Crepúsculos, o fantasma-mor de Passo dos Ausentes, costuma me visitar nos dias chuvosos como hoje, aqui no escritório onde leio, escrevo e, às vezes, desapareço em pleno ar.

Diz ele que os fantasmas são os grandes frequentadores dos sebos. À noite, no silêncio dos corredores desertos, entre estantes pesadas de volumes e o cheiro adocicado no ar, proveniente das páginas envelhecidas, os voláteis põem-se a vasculhar as histórias contidas nas dedicatórias e registros escritos. Sabem que existe vida ali.

Dos Crepúsculos afirma que os fantasmas amam a vida e só por isso são fantasmas.

Observa que eles procuram nos sebos o livro da vida perdida. Esse livro traz o perfume ressequido do tempo, e as marcas dos dias felizes.

- Costumo fazer anotações à margem das outras anotações. No futuro, quem sabe, ao lê-las, alguém vai se lembrar de mim com o mesmo carinho -, confidencia o volátil Heitor.

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* Elegias de Duíno, Rainer Maria Rilke, tradução de Dora Ferreira da Silva. Editora Globo, 2ª edição, Porto Alegre, 1976.

Ilustração em bico-de-pena (1979) e foto: J. Finatto

Coleção de clássicos

Jorge Adelar Finatto

A Editora Abril está lançando uma coleção de clássicos. O primeiro livro tem dois volumes e custa R$ 14,90. Não poderia ser melhor a escolha do título: Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski. Os próximos livros sairão pelo mesmo valor, cada volume, e estarão nas bancas semanalmente.

A coleção terá 30 obras nos gêneros romance, conto, poesia e teatro, com nomes consagrados da literatura mundial. As publicações trazem estudos sobre os autores e suas obras, têm capa dura e são revestidas de tecido. O acabamento é bonito. Um regalo pra quem gosta de livros.

Fiz uma coleção semelhante nos idos de 1980, também lançada pela Abril. São obras fundamentais. Comprava cada volume com dificuldade, apesar do preço acessível. Valeu o esforço.

A boa leitura é um patrimônio cultural e espiritual pra toda vida.