quinta-feira, 1 de julho de 2010

Depois de tudo

Jorge Adelar Finatto


Depois de tudo ele quer só um banho. Não o tagarela e desajeitado das enfermeiras. Anseia um banho demorado, com direito de ficar só, recolhido, senhor de seus domínios. Durante o tempo em que esteve longe do mundo e do próprio corpo, viajando na nuvem de morfina, sonhava em sentar debaixo de uma cachoeira e ali ficar um dia inteiro sentindo a água cair.

Havia muitas árvores nesse lugar, camélias brancas, pássaros, um ar carregado de fragrância de mato, bom de respirar. Havia também uma mesa larga e comprida, onde gente da família e amigos se encontravam para o café da tarde. Até  os desaparecidos se chegavam na mesa para conversar com ele. Até mesmo o pai, imemorial ausência, surgiu no sonho e o abraçou calidamente, como nunca antes fizera.

Reencontrou o córrego da infância, entre os pinheiros. Caminhou sobre os seixos, olhou o movimento ligeiro e colorido dos peixes na água. Recordou o jeito da  saíra entrar e sair do ninho. A suave luz de maio a tudo envolvia.

Agora está de novo em seus domínios,  o hospital ficou pra trás. Embaixo do chuveiro, a água morna escorrendo na cabeça, no corpo, ninguém pra segurá-lo, virá-lo dum  lado pra outro feito joão-bobo. Sob a água, sentindo os seixos nos pés, o vento leve na face, os peixes no córrego, conversas na mesa larga dos afetos, ele celebra a dádiva de estar vivo.

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Foto: J. Finatto

terça-feira, 29 de junho de 2010

Queremos bem a Goethe

Jorge Adelar Finatto


Não tenho tempo nem a necessária disposição para, a essa altura, aprender alemão gótico. O muito pouco que sei do idioma de Goethe aprendi com Púbi Mann, o maior germanófilo vivo de Passo dos Ausentes. O Púbi esteve ontem aqui em casa, bastante preocupado com uma notícia publicada na Folha de São Paulo, edição de 26 de junho passado, de autoria de Lucas Ferraz. Diz  a matéria que um acervo com mais de seis mil volumes, reunindo obras de autoria de Johann Wolfgang  von Goethe (1749-1832) e outras a seu respeito, está guardado sem o devido cuidado na biblioteca do Ministério da Justiça, em Brasília.

Trata-se, conforme o adido cultural da Alemanha, Holger Klitzing, de uma coleção impressionante. Talvez seja o mais importante conjunto de livros sobre o grande escritor alemão na América latina. Há obras do final do século 17, entre elas algumas artesanais e ilustradas a ouro. A maior parte foi editada entre 1780 e 1860 e está escrita em alemão gótico seiscentista. Outras foram escritas em alemão contemporâneo, inglês, francês, italiano, espanhol e português.

Os livros foram comprados pelo governo brasileiro há cerca de 40 anos, quando era Ministro da Justiça Alfredo Buzaid, que gostou muito da coleção, à venda na livraria Kosmus, do Rio de Janeiro. Segundo livreiros, o preço pago então, Cr$ 80.000,00 - equivalente hoje a quase R$ 70.000,00 - estaria muito abaixo do valor real.

Conforme noticiado, o governo diz que irá restaurar a rara coleção até 2011.

Púbi Mann está inconformado, porque os livros apresentam  mofo, estão em estado sofrível, desorganizados e sem possibilidade de consulta pelo público.

- Os livros estariam melhor cuidados aqui em Passo dos Ausentes - , disse Púbi, que é o guardião da nossa pequena biblioteca.

Dom Sigofredo de Alcantis, nosso filósofo, inteirou-se de tudo o que estava se passando. Ele e Púbi são os únicos da cidade que entendem alemão gótico. Em certas tardes, reúnem-se para ler, em voz alta, textos de Goethe na Praça da Ausência, na presença de estudantes, para os quais, em seguida, fazem a tradução , transmitindo noções do idioma alemão.

Depois de planejar uma ida a Brasília para tentar influir no destino e na salvação do importante acervo, Púbi Mann e Dom Sigofredo desistiram da ideia, devido às peculiares condições atmosféricas reinantes aqui nos Campos de Cima do Esquecimento. 

A chuva, a neblina, a geada, o vento e o frio não nos dão trégua  o ano inteiro. Vivemos, a duras penas, a 1.800 metros de altitude, nem sequer estamos no mapa do Rio Grande do Sul. Somos poucos e invisíveis. Ninguém chega, ninguém sai.  A única estrada que nos liga ao mundo está, como sempre, intransitável. Em suma, não há nada de novo sob as névoas eternas de Passo dos Ausentes. Mas queremos bem a Goethe.

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segunda-feira, 28 de junho de 2010

Postais do portal do inverno

Jorge Adelar Finatto


Agora é o tempo da longa espera do sol.

O outono passou com seus pássaros tristes,  suas árvores desabitadas.




O inverno é  um filme de cinema mudo.









 



Agora, espessas nuvens povoam o céu.



As sementes sonham com a claridade. 
 


A primavera é a promessa que amadurece em silêncio no  secreto movimento das seivas.

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Fotos: J. Finatto

sábado, 26 de junho de 2010

À sombra de uma oliveira


"Mas não subiu para as estrelas,
 se à terra pertencia". 

 Memorial do Convento



José Saramago repousará no Campo das Cebolas, após remodelação no local, em frente à Casa dos Bicos, sede da Fundação José Saramago, à sombra de uma oliveira centenária que será transplantada da sua aldeia natal, Azinhaga, para Lisboa.


A frase do "Memorial do Convento" estará inscrita em pedra de Pero Pinheiro. 
 
Um banco de jardim possibilitará que os seus amigos leiam fragmentos da sua obra ou observem a paisagem que o Escritor teria da sua janela.

José Saramago está em Lisboa, nos seus livros, mas, sobretudo, nos nossos corações.

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Notícia extraída do site da Fundação José Saramago.
http://www.josesaramago.org/
 
Imagem: Casa dos Bicos, Lisboa. FJS

sexta-feira, 25 de junho de 2010

A viagem do balão vermelho

Jorge Adelar Finatto



O balão é vermelho e tem forma de coração.

A tarde cai vertical e fria em Passo dos Ausentes. O solitário voo do balão é um convite à evasão da realidade. Não sei como ele apareceu aqui nos Campos de Cima do Esquecimento.  Talvez tenha se perdido no itinerário do vento. O fato é que sua breve aparição no céu da cidade foi um grande acontecimento. Os habitantes saíram para as ruas em alvoroço, apontando para o objeto que passava lentamente sobre os telhados. Os meninos correram pela estrada afora atrás dele.


Quem sai a voar num balão vermelho, numa segunda-feira de junho, início de inverno? Quem  será o destemido navegante que decidiu entrar no cesto do aerostato e ir pelo  espaço sem pressa, deixando embaixo os medos, a falta de tempo e de ternura, as angústias e tragédias da vida? De onde virá a força que o faz navegar entre as nuvens, fugindo dos mil nadas que aprisionam a existência?

Desliza no ar gelado, entre o azul e o branco . A bagagem do viajante são as palavras e a memória. Lá em cima, está livre da violência, do tédio e da mesquinharia. O navegante rasga o azul e vai para um lugar onde ninguém poderá encontrá-lo. A viagem de balão é um modo de postergar o absurdo cotidiano, um jeito de  não enlouquecer.

Enquanto o viajante flutua no cesto, a frágil nave se distancia para além das montanhas. Deriva em direção à noite.  Perco-a de vista.  Os meninos voltam para suas casas. A cidade aos poucos volta ao normal. Lá longe desaparece o balão vermelho, levando com ele os delicados fios de que são tecidos nossos sonhos .

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Foto: J.Finatto

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Saramago, Caras e Pessoas

Marcelo Buainain


Para muitos, ao longo dos últimos 10 anos essa imagem do escritor José Saramago se tornou  conhecida, porém poucos sabem da sua história e autoria. O autor não é desconhecido...

O ponto de partida é Lisboa, cidade onde vivi praticamente toda a década de 90. Foi nessa ocasião que tive oportunidade de formar uma parceria com a jornalista Cristina Duran que pautava os entrevistados e eu os fotografava. Momentos especiais foram vividos e compartilhados nas tascas e em nossas residências situadas no bairro de Alfama, quase  à beira do rio Tejo. Deste elo profissional e amizade tivemos o privilégio de fotografar várias celebridades, entre elas Wim Wender, Pedro Almodóvar, Bernardo Bertolucci, Irène Jacob, entre tantas outras.

Tomado por uma certa insatisfação com os clichês fotográficos, concebi o projeto "CARAS E PESSOAS", cuja proposta era apresentar uma personalidade portuguesa sob duas óticas: uma face que espelhasse o normal e a outra, a exemplo da famosa fotografia de Albert Einstein, o insólito, o inusitado. 

Já em campo, empunhando uma Hasselblad e um estúdio ambulante, retratei o então presidente Mário Soares, a atriz Eunice Munhoz, o ator Joaquim de Almeida, o amigo e escritor Pedro Paixão, o pianista Bernardo Sassetti, o cineasta João Botelho, a cantora de fado Amália Rodrigues e, entre tantos outros, João Fiadeiro, Sérgio Godinho, Rui Chafes, Pedro Cabrita, Ana Salazar, Jorge Molder e Júlio Pomar. 

Sensibilizado com o drama humano narrado no livro Ensaio sobre a Cegueira, idealizei para o projeto Caras e Pessoas um retrato do escritor Saramago, enfatizando os olhos, a cegueira, a visão.

Em 25 de fevereiro de 1996, no bairro de Alfama em Lisboa, na residência da jornalista Cristina Duran, tive a oportunidade de focar os olhos e a alma de José Saramago, expressos nesse retrato.

Saramago, a nossa gratidão por acreditar na possibilidade e realização desta imagem.

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Agradeço a Marcelo Buainain a preciosa  e generosa colaboração. J.Finatto

terça-feira, 22 de junho de 2010

Maratona de leitura de «O ano da morte de Ricardo Reis» na Casa Fernando Pessoa

Amigos,
Porque acreditamos que a voz dos grandes escritores só morre quando a nossa voz os deixa morrer, convidamos-vos a ler em voz alta O Ano da Morte de Ricardo Reis, na próxima sexta-feira, dia 25, na Casa Fernando Pessoa. Faremos a leitura integral desta obra, numa maratona que terá início às 12 horas.

Contamos convosco,
Inês Pedrosa
Directora

Leitores confirmados: Pilar del Rio, Leonor Xavier, José Luís Peixoto, António Mega Ferreira, José Mário Silva, Luísa Costa Gomes, Gonçalo M. Tavares, Fernando Pinto do Amaral, Clara Pinto Correia e Patrícia Reis.

Câmara Municipal de Lisboa
Casa Fernando Pessoa
R. Coelho da Rocha, 16
1250-088 Lisboa
Tel. 21.3913270
Autocarros: 709, 720, 738 Eléctricos: 25, 28 Metro: Rato
http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt
www.mundopessoa.blogs.sapo.pt
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Imagem e texto: Casa Fernando Pessoa, Lisboa.