domingo, 8 de agosto de 2010

Com licença, realidade: chegou a hora da ilusão (2)

O Cavaleiro da Bandana Escarlate


Estou num café, sentado diante da xícara fumegante de cappuccino. O livro de contos do Juan Carlos Onetti aberto ao lado. Para quem estava há quatro meses sem sair de casa, nas cercanias da Praça Maurício Cardoso, em Porto Alegre, esse é um belo momento.  A convite do blog escrevo essas linhas sobre o Festival de Cinema de Gramado. O que mais posso querer da vida? 

Quando saí de Porto Alegre, chovia, fazia frio e a melancolia tomava conta do lugar. Aqui o clima é outro. Faz muito frio, neva  de vez em quando, garoa, mas, pelo que vejo, ninguém está pensando em se matar, por enquanto. Através das paredes envidraçadas do café vejo os infelizes que andam na rua, onde a temperatura agora beira zero grau.


A praça, na frente do cinema em que acontece o festival, está quase deserta. O sino da igreja tocou. A fria madrugada  avança através dos pinheiros e paredões de basalto. Entre a dureza da vida e a transcendência, existem caminhos a percorrer. O cinema nos ajuda na travessia. A arte nos torna pessoas melhores, se nos deixamos tocar e não fechamos as portas. 

Eu queria poder voar sobre a torre da velha igreja. Em mim mora um monge rebelde e voador, que passa os dias na biblioteca, avesso aos deveres do templo. Um monge que não quer caminhar no vento gelado até o quarto de hotel a essa hora.

Confesso: as duas grandes estrelas que encantaram minha vida são, pela ordem, Beth Faria e A Feiticeira (Elizabeth Montgomery, infelizmente já falecida). Elas não têm culpa disso. Às vezes, na solidão do hotel, sonho que, ao dobrar uma esquina qualquer de Gramado, dou de cara com uma delas. A emoção é tal que, ao invés de tentar uma conversa, acabo acordando suado, com falta de ar. 

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Na sessão de abertura (sexta, 6 de agosto), dois filmes brasileiros foram exibidos: Bróder e Enquanto A Noite Não Chega. São dois filmes razoáveis, no meu entender; o primeiro, mais razoável do que o segundo.


Bróder, dirigido por Jeferson De, segue a linha do cinema realista, abordando a temática da pobreza, do tráfico e da violência na periferia pobre de São Paulo. Envolve a vivência de amigos e de uma família. É um trabalho sério feito por gente séria. Mas a abordagem está muito colada a uma ideia realista de documentário, como vários dos filmes feitos a respeito. Acho que ainda falta uma boa história sobre o assunto, que não apenas mostre, mas que emocione, enleve, encontre fissuras na realidade, e permita respirar além.

Cássia Kiss participa do filme, com um ótimo desempenho, o que não é novidade. Ela disse tudo no palco, antes da projeção: falar da família, no cinema, é sempre muito importante.

Enquanto A Noite Não Chega, dirigido por Beto Souza, é baseado no livro homônimo do escritor  gaúcho Josué Guimarães, tem uma boa fotografia,  boa trilha musical, muito bons atores, Miguel Ramos e Clênia Teixeira. É um filme correto, mas arrastado.  E há um excesso de lágrimas nos olhos dos personagens interpretados por Miguel e Clênia.

Quando sobram lágrimas no palco e na tela, elas acabam faltando na plateia, nos olhos do espectador.

O cinema argentino me deixou mal acostumado nos últimos anos, com obras raras como Clube da Lua, O Filho da Noiva, O Segredo dos Seus Olhos e por aí vai. O uruguaio O Banheiro do Papa é outro filme incrível. Gosto de ver boas histórias na tela, e boas histórias são, em geral,  as histórias bem contadas, que nos fazem viajar de corpo e alma com elas.

Mas a opinião de alguém que não entende de cinema, mero espectador como eu, deve ser vista, no mínimo, com muita cautela. O indispensável é que cada um veja os filmes.
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Fotos: J. Finatto

sábado, 7 de agosto de 2010

A página infinita da internet *

José Saramago

Acabamos de sair da conferência de imprensa de São Paulo, a colectiva, como dizem aqui.

Surpreende-me que vários jornalistas me tenham perguntado pela minha condição de blogueiro quando tínhamos atrás o anúncio de uma exposição estupenda, a que é organizada pela Fundação César Manrique no Instituto Tomie Ohtake, com os máximos representantes e patrocinadores, e com a apresentação de um novo livro à vista. Mas a muitos jornalistas interessava-lhes a minha decisão de escrever na “página infinita da Internet”. Será que, aqui, melhor dito, nos assemelhamos todos? É isto o mais parecido com o poder dos cidadãos? Somos mais companheiros quando escrevemos na Internet? Não tenho respostas, apenas constato as perguntas. E gosto de estar escrevendo aqui agora. Não sei se é mais democrático, sei que me sinto igual ao jovem de cabelo alvoroçado e óculos de aro, que com os seus vinte e poucos anos me questionava. Seguramente para um blog.

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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Publicado originalmente em 25 de novembro, 2008.
A grafia é a de Portugal.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Memória na câmara escura (2)

Frederico Vasconcelos


O Hermeto e o Sivuca (conheci pessoalmente o último) são dois gigantes. O que me impressiona em ambos é o fato de terem, em comum, nascido em região pobre, do Nordeste, ambos na infância sem condições de ter um instrumento ou um rádio. Salvo erro meu, os dois ouviam música a partir da janela do vizinho. Não sei de onde vinha tanta musicalidade. Meu pai fazia um bico como discotecário da Rádio Jornal do Comércio, no Recife, nos finais de semana. Eu ia com ele. Conheci figuras incríveis, como Luiz Gonzaga, Sílvio Caldas, Bob Nelson, entre outros. Sivuca entrava, pedia para papai colocar um disco. Ele ouvia, não tirava o instrumento da mala. Em seguida, entrava no auditório e tocava melhor do que o original. Toco piano - também amador - mas na juventude dei canjas em boates, restaurantes e "inferninhos" no Recife, locais que nós frequentávamos para ver e ouvir os profissionais, tentar "copiar" alguma coisa. É meu segundo teclado, como costumo dizer. Lembro-me de ter ouvido o Hermeto, com seu trio, numa das idas ao Recife, acompanhando uma cantora famosa. Detalhe: naquela época, ele tinha cabelo bem curto...


Toquei com um grupo de estudantes num baile (final de rodeio, lá chamavam de "vaquejada") na terra natal de Sivuca, na Paraíba. A noite toda, um homem simples, talvez um peão, ficou ao lado do piano, calado, desconfiado, vendo tudo que eu fazia. Cismado, como dizem lá. Pois bem, num intervalo, com forte sotaque, ele perguntou: "Você conhece Sivuca?". Respondi: "Conheço, para mim é o maior músico do mundo". O homem abriu um sorriso e até hoje não sei o que ele quis dizer com o seguinte comentário: "Ainda bem que você pensa assim..."

A Rádio Jornal do Comércio, no Recife, era uma potência, na época (muitos anos depois, já em São Paulo, comprei um rádio de ondas curtas, Zenith, e o manual indicava apenas duas rádios brasileiras: a Tupi, de SP, e a Rádio Jornal do Comercio, do Recife). O grupo Pessoa de Queiroz, usineiros, investiu na formação de uma orquestra, "importando" músicos e instrumentos da Europa. Pois bem, trouxeram um órgão eletrônico e ninguém sabia tocar. Sivuca começou a mexer no instrumento, à tarde. À noite, inaugurou o órgão no programa de auditório.

Eu vi essa cena: Sivuca dando "dicas" a um flautista da orquestra da TV, sobre como explorar melhor a embocadura...

Generoso, ele me viu "batucando" no piano do estúdio. Disse-me que eu deveria estudar.

Optei pelo jornalismo. O outro teclado.

Há mais de um ano, tenho aulas semanais com Cláudio Soares,  excelente professor de piano. Como leio mal e porcamente, e toco mais de ouvido, fazemos "rearranjos" de músicas de jazz e MPB. Como não tenho mais tempo para me dedicar à leitura, e ele é compreensivo e talentoso, eu fico a maior parte do tempo no teclado. E ele escreve - e reescreve - as pautas.

Semanas atrás, perdi no metrô um caderno com um ano de arranjos. Ainda bem que ele copiou a maior parte das peças.

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Este texto de Frederico Vasconcelos, como o anterior (post de  31 de julho), resulta de uma troca de e-mails  entre mim  e o jornalista. Entendendo que essas histórias, pelo  valor cultural  e pela forma como são contadas pelo autor, devem chegar a outras pessoas, pedi autorização para publicá-las. De forma generosa, Frederico concordou, esclarecendo que não pretende fazer história com episódios e observações pessoais. Estou certo de que os leitores sentirão o mesmo encanto  que sinto quando leio esses  belos relatos. J. Finatto

Frederico Vasconcelos é jornalista, repórter especial da Folha de São Paulo. Mantém o Blog do Fred (blogdofred.folha.blog.uol.com.br) ,  um dos mais importantes e acessados da área do sistema judicial brasileiro.
Pelos seus trabalhos, recebeu, entre outros, o Prêmio Esso, o Prêmio Bovespa de Jornalismo, o Prêmio BNB de Imprensa, o Prêmio Icatu de Jornalismo Econômico e foi finalista do "Premio a la Mejor Investigación Periodística de un Caso de Corrupción", do Intituto Prensa y Sociedad e Transparency International Latinoamérica y El Caribe.
Nas horas vagas, dedica-se a outro teclado: toca piano (Jazz e MPB).
E-mail: fvasconc@folhasp.com.br
Fotos: Hermeto Pascoal (www.hermetopascoal.com.br) e Sivuca (www.sivuca.com.br)

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Post scriptum

Jorge Adelar Finatto

Foi um dia difícil aquele 31 de agosto de 2009. De madrugada, em torno de uma e meia da manhã, li, quase por acaso, o texto intitulado Despedida, em que José Saramago (falecido no último dia 18 de junho, aos 87 anos) declarou que encerrava ali seu blog O Caderno de Saramago. Motivo declarado: precisava de tempo para escrever um novo livro.

A notícia era uma tristeza.

Divulguei a informação no site Judiciário e Sociedade (na época, não tinha ainda blogue), tão logo publicada na rede. Até onde sei, o autor português era o único Prêmio Nobel de Literatura a manter um blogue. Isso revela a atitude participante, corajosa e humilde de um escritor consagrado que vinha cotidianamente à internet compartilhar suas opiniões, inquietações, esperanças, sentimentos e valores (penso que cada post pode ser um ato de criação literária e, no caso de Saramago, com certeza era) com leitores do mundo inteiro, em tempo real.

Era uma exposição rara, sabendo-se que o mundo virtual não é exatamente um território fraterno e transparente, havendo de tudo para qualquer gosto, principalmente para o mau gosto.

Pois Saramago deu-nos o exemplo, veio ao encontro de todos.

Escreveu belas e importantes palavras durante o tempo em que manteve o blogue, iniciado em setembro de 2008. Tornou a web mais sensível, inteligente e, sobretudo, mais humana. Ajudou a dar forma mais digna e mais viva ao mundo virtual.

No mesmo texto em que se despedia, acrescentou um PS, no qual deixava uma fresta aberta. Dizia que, se sentisse necessidade de comentar ou opinar sobre algo, poderia eventualmente voltar ao blogue.

Aqueles leitores que, como eu, levaram fé no PS foram recompensados: leram mais alguns raros posts que ele colocou no ar. Mas nunca mais voltou a ser o que era, aquela presença quase diária na vida de muita gente. Acredito que a saúde foi um dos principais motivos que determinaram o afastamento.

A internet ainda é um ambiente muito pobre em cultura e humanismo. É um lugar inseguro, onde sobram maldades, loucuras, vaidades e faltam exemplos, conteúdos, generosidades. Por isso, a presença de um Saramago foi tão fundamental quanto enriquecedora.

Sempre fui freguês do Caderno. Os textos foram reunidos depois em dois livros. Mas confesso a falta que sinto do blogueiro Saramago. O escritor, contudo, está muito vivo nas obras, na palavra partilhada.

Recomendo a visita ao site da Fundação José Saramago e, nele, um passeio pelo Caderno em seu ambiente natural. Certamente, é uma das melhores coisas que existem na internet e já faz parte de sua história.
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Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
 O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/
Foto: Saramago. Fonte: FJS

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Com licença, realidade: chegou a hora da ilusão

O Cavaleiro da Bandana Escarlate


Estou em Gramado desde domingo à noite. Vim na minha motocicleta 250, calça Lee, manta de lã amarela, jaqueta de couro, bota. Anos 70. Vim no segredo do codinome. O alaúde atravessado nas costas. Trouxe no bornal um livro de contos de Juan Carlos Onetti, o escritor uruguaio (filho de mãe brasileira), e a Serpente Encantadora, reunião das colunas do Telmo Martino, publicadas no Jornal da Tarde, de São Paulo, entre 1975/85.

Alberta de Montecalvino me mandou um e-mail (gostava mais quando ela escrevia cartas), pedindo para eu escrever impressões sobre o Festival de Cinema de Gramado. Não posso recusar nada à grande dama de Passo dos Ausentes. Devo-lhe coisas, isso e muitas mais. Sou devoto da Senhora da Biblioteca.


Nada entendo da arte cinematográfica. Sou apenas alguém que vai ao cinema uma vez por semana. Quando me comovo, eu choro. Sentimental.

Faço o que posso pra esconder dos outros meus estados espirituais. Nem sempre consigo.

A vulgaridade é uma coisa que me constrange.

Não me interesso por Fellini ou Charles Chaplin. Mas minha vida não seria a mesma sem Amarcord e Carlitos.

O festival começa oficialmente na próxima sexta-feira, 6 de agosto, e vai até 14. Mas a cidade já está no clima.  Artistas , imprensa e cinéfilos chegam, o cenário está montado. Nos cafés e lobbys de hotéis o assunto é a tela grande. Curtas, longas, trilhas, direção, roteiros, atores.

O frio é de doer.

Estou num hotel ao lado da antiga igreja da cidade . Meu quarto dá para um bosque de pinheiros. Há pouco vi uma arara azul. Dizem que vai nevar.

Na chegada, não distante da entrada de Gramado, existe um motel ao lado de um pequeno cemitério, na beira da estrada. Morte e vida lado a lado, nuas. Ó contradição.

Quem diz que a ficção exagera nas cores é porque ainda não reparou bem na realidade. Enfim, o que quero dizer é que há gosto e nervos pra tudo no mundo.

Só se muda alguma coisa nessa vida com alegria.


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Fotos: J. Finatto

Saiba mais sobre O Cavaleiro da Bandana Escarlate nos posts de 27 de abril  e 29 de julho de 2010.

domingo, 1 de agosto de 2010

O astrônomo do farelo

Jorge Adelar Finatto




O astrônomo do farelo procura a estrela perdida.

Entre o sagrado e o profano da vida pequena, ele busca beleza e arte nas coisas mais simples. Como o explorador de cavernas que, na escuridão e na umidade,  tateia a fresta de luz que o conduz à escondida gruta, onde ainda brilha a primeira claridade do mundo.

Um dia - sempre tem um dia - o astrônomo do farelo perdeu a  sua estrela. Era uma pequena estrela azul e brilhante. Era uma estrela risonha, íntima e calma que habitava sua alma.

A estrela. Quando a tocava com a ponta dos dedos, muito suavemente, ouvia a doce e misteriosa música que vinha do seu interior. Um dia, de repente, ela desapareceu.

Por ela, ele se tornou um homem calado e triste.  Um oco cresceu no seu coração. Ele ficou assim, torto no mundo. Passa as noites olhando o céu. Um homem ferido a bordo de uma louca procura.

O homem que perdeu a sua estrela.
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Foto: J. Finatto

sábado, 31 de julho de 2010

Memória na câmara escura

Frederico Vasconcelos


Belas fotos e belo texto.

No início da carreira, eu gostava muito de fotografar, embora simples amador sem pretensões. Ficava horas no laboratório, na câmara escura, ampliando e cortando fotos. Cartier-Bresson de meia tigela, minha preferência era por fotos em preto e branco.

Tempos depois, para não ser conivente com uma injustiça numa das redações, coloquei o cargo à disposição, o que me custou muito tempo de dificuldades, fora do mercado. Mas não me arrependo.

Fui obrigado, então, a vender meu equipamento de fotógrafo amador. Nunca mais adquiri outro. Isso talvez explique por que visitei mais de vinte países e nunca fiz fotos para mim. Tenho algumas publicadas no caderno de Turismo da Folha, mas foram feitas com equipamento da casa.

Na profissão, aprendi a valorizar o trabalho do repórter-fotográfico. Costumo dizer que o responsável pelos textos pode, a qualquer momento, recuperar informações, refazer relatos. O homem da foto tem apenas aquele momento único para capturar (se bem que as máquinas modernas permitem fazer sequências de flagrantes em grande velocidade; suponho que muitas vezes a grande foto, aquela que vai para as primeiras páginas, é descoberta depois, quem sabe, não percebida anteriormente pelo olho do artista).

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Frederico Vasconcelos é jornalista, repórter especial da Folha de São Paulo. Mantém o Blog do Fred (blogdofred.folha.blog.uol.com.br) ,  um dos mais importantes e acessados da área do sistema judicial brasileiro.
Pelos seus trabalhos, recebeu, entre outros, o Prêmio Esso, o Prêmio Bovespa de Jornalismo, o Prêmio BNB de Imprensa, o Prêmio Icatu de Jornalismo Econômico e foi finalista do "Premio a la Mejor Investigación Periodística de un Caso de Corrupción", do Intituto Prensa y Sociedad e Transparency International Latinoamérica y El Caribe.
Nas horas vagas, dedica-se a outro teclado: toca piano (Jazz e MPB).
Foto: Frederico Vasconcelos, Folha de São Paulo