Uma Atlântida invertida, é certo, que caiu para o alto e desapareceu a 1.800 metros de altitude.
Somos seres invisíveis, desaparecidos vivos. Mortos na memória oficial e nos meios de comunicação.
Don Sigofredo de Alcantis, nosso filósofo-mor, costuma dizer que fomos fundados por um grupo de índios guaranis e padres jesuítas. Eles vieram de São Miguel Arcanjo, após a destruição da redução ocorrida durante a Guerra Guaranítica, em meados do século XVIII, quando portugueses e espanhóis acabaram com os Sete Povos das Missões.
Don Sigofredo é o guardião da nossa memória.
A barbicha grisalha, entradas no cabelo, o cavanhaque branco em forma de v, as extremidades do bigode levantadas para cima como a perscrutar o misterioso universo, o velho pensador conta histórias sentado no banco da praça ou caminhando em volta dos seus jardins.
Os dias não se contavam em horas, mas em suspiros, afirma ele.
O rumor do vento nas coberturas de capim santa-fé das cabanas, na beira do Rio dos Ausentes, era a música daqueles inícios.
Depois aqui chegaram cinquenta pessoas, entre crianças, mulheres e homens, todos escravos foragidos de estâncias do sul do estado. Livres, integraram-se na comunidade local.
Após, vieram algumas famílias de andaluzes, fugidas da Espanha por razões não muito bem esclarecidas. Os espanhóis tinham sido recebidos com antipatia nas metrópoles do Rio de Janeiro e São Paulo. Traziam na bagagem ideias utópicas de conteúdo socialista.
O tempo passou. Mais tarde subiram as montanhas indivíduos russos, polacos, alemães, italianos, portugueses e um grupo de judeus e árabes que chegaram juntos.
Ninguém sabe ao certo como e por que essas pessoas vieram parar em Passo dos Ausentes.
Toda essa gente tinha em comum algum trauma de perseguição por razões políticas, filosóficas ou relacionadas à cultura e etnia.
Em Passo dos Ausentes, encontraram refúgio e paz para viver, reconstruir sua história, trabalhar e criar filhos. Não demorou muito para que a cidade se tornasse produtora de boa variedade de produtos agrícolas, de artesanato e de utensílios de pequena indústria. A prosperidade ocorreu no auge da estrada de ferro nos anos de 1940. O declínio veio com o fim da ferrovia na década seguinte.
A população da cidade, que não era grande, passou a diminuir. As pessoas começaram a ir embora em busca de um futuro.
A memória e o afeto têm nos preservado da extinção. Mas não sabemos até quando.
Íngremes e tortuosos são os caminhos através dos paredões de basalto.
Muito frio, chuva, vento e neblina nos separam do mundo.
Don Sigofredo diz que é do nosso modo de ser a saudade das estrelas que desapareceram há muitos milênios. A luz desses astros nos chega viajando pela noite do tempo infinito.
Somos testemunhas de uma claridade que se apagou.
Por que não estamos no mapa?
Somos invisíveis como a nossa história e a nossa cultura.
Às vezes nos reunimos na praça para ouvir a pequena orquestra sinfônica. O Concerto para Violão e Orquestra, de Heitor Villa-Lobos, é a música predileta de Don Sigofredo. Acho que é também a música de Passo dos Ausentes.
Somos poucos e invisíveis.
Na solitude das noites de bruma ouvimos as histórias uns dos outros.
Não sabemos o que será da cidade e de nós.
Mas quem sabe alguma coisa nessa vida?
Fotos: J. Finatto