quarta-feira, 10 de novembro de 2010
Construção
Eu sou o que me construo
entre um apocalipse e outro
uma aurora e outra
Sou como essas partículas
de luz
que se expandem no espaço
flutuam nas alturas solitárias
Traço o poema
entre um abismo e outro
uma alegria e outra
e avanço
apesar do nevoeiro
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Poema do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
Foto: J. Finatto
terça-feira, 9 de novembro de 2010
José e Pilar
Uma perda irreparável o acabar de cada dia.
José Saramago*
Assisti ao documentário José e Pilar, de Miguel Gonçalves Mendes, que está sendo lançado no Brasil e em Portugal. O filme mostra como era o cotidiano dos últimos anos de vida do escritor e poeta português José Saramago ao lado de sua mulher, a jornalista espanhola Pilar Del Rio. Saramago morreu em 18 de junho passado, aos 87 anos, na ilha de Lanzarote, situada no arquipélago espanhol das Canárias, onde vivia. A filmagem estendeu-se por três anos.
A sinceridade e a abertura do escritor ao deixar-se mostrar na vida doméstica e no trabalho são tocantes. Não há pose, há o José Saramago inteiro, homem e cidadão. Coisa rara nesses dias. Frases espontâneas, simples e profundas, comentários sobre a vida, a morte, os direitos humanos, a difícil situação do planeta, tudo ele compartilha com a naturalidade de quem conversa em volta da mesa. Aquele que nasceu de uma família muito pobre, na aldeia de Azinhaga, e que consolidou uma carreira literária depois dos 50 anos, tem uma solidez de princípios, integridade e humanismo comparável à das rochas vulcânicas da ilha onde viveu.
O documentário capta o escritor em sua casa e viajando pelo mundo, dentro de aviões, aeroportos, hotéis, em sessões de autógrafo, conferências, entrevistas, homenagens e no dia-a-dia com Pilar Del Rio. Pilar não é apenas coadjuvante do primeiro Prêmio Nobel de Literatura de Língua Portuguesa (1998), é a companheira que trabalha incessantemente, com seu talento e suas ideias, interlocutora permanente. Impressiona o quanto o casal se amava e se completava, cada um com sua individualidade, ambos personalidades fortes.
De tudo que li e vi de Saramago, com o acréscimo deste excelente documentário, fica-me a impressão de que ele foi o escritor mais lúcido, solidário e comprometido com o lado humano que tivemos nas últimas décadas em todo o mundo.
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* Frase dita pelo escritor no documentário.
Foto: José e Pilar. Cena do filme. Divulgação.
segunda-feira, 8 de novembro de 2010
Alberta de Montecalvino
Jorge Adelar Finatto
Veneza é o sonho de toda Colombina. Eu passei a vida em Passo dos Ausentes. O que é esse lugar? Um território perdido no vento. A neblina, o frio e a chuva povoam a cidade o ano inteiro. Habito com amargura e ironia esta estação de fim de mundo.
Casei-me aos 16 anos com Dom Alberto de Montecalvino, o Solitário da Biblioteca. Na época ele contava 69 anos. Desde aquele quando, passei a viver neste austero castelo de basalto e vidro. Hoje tenho 70 anos, sou deveras viúva e, às vezes, me perco nos salões da memória. As intermitências.
Daqui de cima, na larga janela da biblioteca, avisto o Contraforte dos Capuchinhos. Gosto muito dessa visão porque por ali é que se vai embora de Passo dos Ausentes. Mas nunca passei naquela estrada. Dom Alberto me pediu que jamais o fizesse. Os medos. Atendi o bom homem. Passaram-se os anos.
O muito amado do meu coração é Pedrolino. Dom Alberto sempre soube, suportou, era como um pai pra mim. O meigo Pedrolino. Amoroso e fiel. Seu amor é casto e resignado. Tem as delicadezas.
Arlequim é o senhor das labaredas. Inconstante e fútil. Nunca vem ao meu coração. Tem meu corpo, jamais minha alma. Com ele muito me rio, é engraçado, leviano. Incapaz de amar alguém além de si mesmo. Não tem sentimento.
O corpo tem fome e a fome seus apetites. Arlequim é malicioso, egoísta, por isso sabe agradar quando quer. Pedrolino é terno, quase um menino, vai direto ao assunto. Não conhece as sutilezas.
Quem pudera reunir, na mesma pessoa, as gratas virtudes. O mundo humano foi bordado imperfeito, eu sei. Tal felicidade ninguém merece.
Ambos os dois, Arlequim, o devasso, e Pedrolino, o amado, são a minha devoção. Cada qual no seu momento. Sou a Senhora da Biblioteca. Viúva mui constante em negras vestes de luto. Os respeitos a Dom Alberto. Tenho a minha idade. Cultivo as devoções, no discreto.
Não me julguem tão depressa. Poupem-me da vossa moral de almanaque. De metafísica e solidão o cemitério está cheio. Conheço os reveses. Eu vivo os enquantos.
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Texto publicado no blog em 14/6/10.
Baltasar Garzón espera condenação por investigação de crimes do franquismo amnistiados*
O juiz espanhol Baltasar Garzón afirmou-se hoje convicto de que está a ser preparada uma sentença condenatória contra si, depois ter sido processado por prevaricação por querer investigar os crimes do franquismo amnistiados.
Garzón, 55 anos, disse no entanto que não se arrepende da iniciativa que tomou, apesar da mesma ter levado à suspensão das suas funções como magistrado da Audiência Nacional a 14 de Maio passado.
“O que quero é que esta situação transitória termine e que haja um resultado qualquer que ele seja, mas se me perguntar qual pode ser, claramente penso que o julgamento está já estabelecido e pré-determinado”, disse aos jornalistas, à margem do Estoril Film Festival, iniciativa na qual participa como convidado.
Questionado sobre qual será a decisão da justiça espanhola, respondeu: “Nesta altura é difícil pensar que não é uma sentença condenatória”.
“Não se chegaria até aqui se não fosse para um resultado desses”, considerou o juiz que se tornou conhecido por ter conseguido em 1998 a detenção do ex-ditador chileno Augusto Pinochet e lutou também contra a impunidade de crimes da ditadura argentina.
“Não posso arrepender-me daquilo que decidi em função da atividade judicial com análise das resoluções e das leis aplicadas ao caso, interpretando-as com o objetivo de investigar esse crimes e proteger as vítimas”, afirmou, sublinhando que atuou com base em queixas das associações de memória histórica e de vítimas particulares e seguindo o procedimento que tinha tomado em casos similares.
Baltasar Garzón defendeu que é importante que a investigação se faça e lembrou que as queixas contra si partiram de grupos da extrema-direita espanhola.
“Essa investigação é necessária, é conveniente e pode ser defendida legalmente”, disse, acrescentando que, com base na lei interna (espanhola) e na própria legislação internacional sobre direitos humanos e em resoluções dos tribunais internacionais, “é verdadeiramente difícil assumir que se tenha cometido um delito”, ao fazer a interpretação que fez.
O juiz manifestou-se desejoso de que haja uma decisão, embora ainda não tenha sido apontada qualquer data para uma decisão do Supremo Tribunal de Espanha, onde o caso está a ser apreciado.
Aos jornalistas, Baltasar Garzón não deixou de notar que, numa primeira fase, até à sua suspensão de funções da Audiência Nacional a tramitação do processo avançou “de forma rápida ou normal” e desde então isso não tem acontecido.
“Ninguém gosta de estar sentado no banco dos réus”, respondeu o juiz em resposta a uma pergunta sobre como se vê nessa situação, mas sublinhou que a acusação foi feita “por defender uma interpretação da lei, por defender a investigação de crimes que têm a categoria de crimes contra a humanidade” e considerando que “é uma vergonha para Espanha que não se investiguem estes crimes”.
O ‘super juiz’, como é muitas vezes designado, está actualmente como consultor no Tribunal Penal Internacional (TPI), funções que exercerá até Dezembro e não sabe se continuará.
“Em princípio o período (de funções no TPI) ficará concluído em Dezembro. Não estou a pensar fazê-lo (continuar), mas se me pedirem ficarei com gosto, porque o trabalho é interessante e há muitos casos abertos nos quais estou a trabalhar como consultor e estaria interessado em acompanhá-los”, afirmou o juiz, sem desvendar o que pensa fazer no futuro.
*Notícia extraída do site da Fundação José Saramago em 7/11/2010
http://www.josesaramago.org/
Fonte: publico.pt
A grafia é a de Portugal.
Cláudio Accurso na Feira do Livro
Jorge Adelar Finatto
No país desigual que temos, os saberes em
ciências sociais estiveram presentes em sua modelagem ou servem apenas para explicá-lo?
Essa frase de Cláudio Accurso nos dá uma ideia do percuciente caminho que percorreu na elaboração de Aportes de Desenvolvimento Econômico, obra que autografará nesta segunda-feira, às 15h30min, na Feira do Livro de Porto Alegre.
Economista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Accurso não se limita ao domínio exemplar da técnica do seu metiê. Vai muito além, a bordo do substrato humanista que impregna o saber científico. Leva-nos a pensar com sentimento, provando, uma vez mais, que não existe sabedoria longe do coração.
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Lançamento da Editora da UFRGS, IEPE e Centro de Estudos e Pesquisas Econômicas da universidade federal.
sábado, 6 de novembro de 2010
O coração da neblina
Um vasto silêncio. O viajante entrou na fotografia. Atravessou para o outro lado. Caminhou na névoa como se andasse dentro de si mesmo. Pisou na grama a esmo, interiorizou-se na paisagem em busca de algo, talvez de alguém que um dia ele foi e se perdeu. Aqui fora, só o que vê são vultos ao redor. Não vislumbra mais rostos como antigamente, não sente o seu coração nem o das pessoas batendo. Agora quando acorda tudo lhe parece estranho. O espelho mostra uma face sem expressão, uma boca onde a palavra já não habita. Há um banco solitário na praça vazia desse olhar. Esse olhar de nuvens. A tarde caiu no interior do retrato. Ficou frio. Ele deitou e dormiu embaixo de uma árvore com o casaco por cima como fez uma vez aos 20 anos. Está feliz naquele lugar como há muito não acontecia. Está sozinho, mas se sente inteiro. Não entende como a vida foi escurecendo dentro dele. Invadiu a fotografia tentando se afastar do labirinto e se encontrar. Um vento leve e úmido bate-lhe na cara. Por enquanto ele pode ficar ali, longe de tudo, distante do mundo. Ninguém vai procurá-lo naquele território ausente. Mais tarde, só mais tarde, retornará. Quem sabe reencontrará a palavra e o sol na saída do retrato.
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Foto: J. Finatto
quinta-feira, 4 de novembro de 2010
Os desolados
Jorge Adelar Finatto
As manhãs fogem do escuro. A solidão é um negro capuz que se veste nos retirados da dor.
Tive medo de ver os escombros. Os difíceis haveres do abandono. Havia uma mulher chorando. Quem? Não divulguei.
O coração humano gira em tristes moinhos. O traçado torto da vida. Quem puder se segure, senão cai no perau. Eu, quando escuto gente chorando, sinto breu andando à volta.
Coisas que vi. Meu coração barroco. Aquele choro me doeu. Mas eu fui. Foi quando meus olhos a divulgaram. A mulher era uma visão sob a pérgula. Eu não sabia o que era beleza até aquele dia. Estava sentada num banco de pedra cercado de camélias vermelhas, ao lado da fonte. Havia uma escada com seis degraus que terminava no ar. Ligava parte alguma a lugar nenhum. A casa desmoronada no íntimo da pessoa.
A mulher, sua tristeza na alma, aquela ruína. Me aproximei no cuidadoso jeito. Era uma tarde de junho como essa. E fria, fria. A mulher - a visão - fez sinal para eu parar e esperar. O que fiz nos respeitos. Ela se levantou, arrumou o vestido, olhou o céu. Entre as duas mãos largou a face e os cabelos de linho, depois seguiu. O tempo varou a vida.
Eu vivia no lugar perdido, arrostando sol e vento, sem eira, sem beira. Os loucos dias no sanatório do mundo. Os ermos. Caminhos que se andam.
Um dia de fina luz de primavera ela veio em minha direção, pegou no braço meu. Caminhou, caminhamos. Em silêncio. Palavras que se dizem sem falar. Aconteceu a brilhante estrela caindo no meu caminho.
O punhal que me rasgava por dentro foi saindo, saiu.
Nos acolhemos, reunimos as raras pertenças.
Me tornei sentimento. Sentimentos.
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Tive medo de ver os escombros. Os difíceis haveres do abandono. Havia uma mulher chorando. Quem? Não divulguei.
O coração humano gira em tristes moinhos. O traçado torto da vida. Quem puder se segure, senão cai no perau. Eu, quando escuto gente chorando, sinto breu andando à volta.
Coisas que vi. Meu coração barroco. Aquele choro me doeu. Mas eu fui. Foi quando meus olhos a divulgaram. A mulher era uma visão sob a pérgula. Eu não sabia o que era beleza até aquele dia. Estava sentada num banco de pedra cercado de camélias vermelhas, ao lado da fonte. Havia uma escada com seis degraus que terminava no ar. Ligava parte alguma a lugar nenhum. A casa desmoronada no íntimo da pessoa.
A mulher, sua tristeza na alma, aquela ruína. Me aproximei no cuidadoso jeito. Era uma tarde de junho como essa. E fria, fria. A mulher - a visão - fez sinal para eu parar e esperar. O que fiz nos respeitos. Ela se levantou, arrumou o vestido, olhou o céu. Entre as duas mãos largou a face e os cabelos de linho, depois seguiu. O tempo varou a vida.
Eu vivia no lugar perdido, arrostando sol e vento, sem eira, sem beira. Os loucos dias no sanatório do mundo. Os ermos. Caminhos que se andam.
Um dia de fina luz de primavera ela veio em minha direção, pegou no braço meu. Caminhou, caminhamos. Em silêncio. Palavras que se dizem sem falar. Aconteceu a brilhante estrela caindo no meu caminho.
O punhal que me rasgava por dentro foi saindo, saiu.
Nos acolhemos, reunimos as raras pertenças.
Me tornei sentimento. Sentimentos.
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Foto: J. Finatto
Texto publicado no blog em 03/5/2010.
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