sexta-feira, 14 de outubro de 2011

"No mar estava escrita uma cidade"

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto, 2008


No próximo dia 31 de outubro, será o aniversário de nascimento de Carlos Drummond de Andrade, que, se fosse vivo, faria 109 anos (nasceu em 1902 e morreu em 1987).

Esta fotografia fiz em 2008, num dia meio sol, meio nuvem. Uma lembrança do grande poeta brasileiro, com quem tive a rara felicidade de manter contato em 1985. Lembro esse fato no post que publiquei com o título A memória do coração, em 11 de abril de 2010, aqui no blogue.

O verso do título é de Drummond, gravado no banco de sua escultura, diante do mar, na Avenida Atlântica, Copacabana, Rio de Janeiro.  É um verso do poema Mas viveremos, de seu belo livro A rosa do povo (1945).

Drummond é um desses essenciais na literatura brasileira e sua poesia é universal.

No site oficial do poeta, há um breve e rico documentário sobre ele - O Fazendeiro do Ar - feito por Fernando Sabino e David Neves. Vale a pena ver:

http://www.carlosdrummond.com.br/

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Mais sobre Drummond:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/04/memoria-do-coracao.html

 

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Oceânica vigília

Jorge Adelar Finatto


A viagem transoceânica, por avião, impõe rigores a quem não dorme. Sinto admiração (ponhamos assim, ao invés de inveja, que é uma coisa triste) pelos viajantes que conseguem dormir no voo que une os continentes que o mar separa.

Os passageiros insones, como eu, são invadidos pelo medo ancestral de voar. Mais ainda: voar à noite. E, terror dos terrores: sobre o oceano.

Alguns, pelo contrário, sentem-se tão à vontade que não só repousam como roncam. A vida, para esses, é um estar em casa permanente.

O que fazer às quatro da manhã, na cabine metálica, a dez mil metros de altitude, e no escuro?

Assisto, em geral, a dois ou três filmes, após ter lido muitas páginas do livro de viagem, a revista de bordo e as outras compradas antes de embarcar. Depois escuto música, especialmente se é bossa nova, gênero que nos transmite a ideia de que voar vale a pena e que, mesmo na solidão, pode haver poesia.

De vez em quando, sintonizo a pequena tela no canal da rota, onde aparece a posição da aeronave. Quando mostra a passagem pelas ilhas vulcânicas de Cabo Verde, na costa da África, sinto um certo alento. A viagem de doze horas se encaminha para a parte final.

O surgimento da aurora ilumina o oceano, colhe o pássaro em pleno voo. Nas suas entranhas, os primeiros movimentos dos viajantes a acordar. É servido o café da manhã. A insônia agora tem companhia. A vida segue para quem dormiu e para quem não dormiu. O novo dia chega cheio de vida para todos.  A grande ave, enfim, vai pousar. Graças a Deus.

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photo: j.finatto

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

A chuva de vestido

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto

De sol passou a chuva. Assim, sem aviso. Veio um vento, nuvens correram. Bateram uns trovões danados, luziram clarões. Caíram os primeiros pingos. Quase tudo ficou calado, submerso no som da chuva.

Estava sentado no café, numa mesinha de frente, atrás do largo vidro da janela. Lia alguma coisa e olhava a praça do outro lado da rua. Um peixe com grossas lentes no aquário.

Apareceu então aquele vestido vermelho, correndo, iluminando o coração deserto.

Soaram em mim uns acordes de Joaquín Rodrigo, sei lá, a tristeza e o sonho do Cavaleiro da Triste Figura.

De longe não se via a dona do vestido. Só a mancha vermelha atravessando a praça, em diagonal, entre os canteiros de rosas. Uma visão fugidia, deslizante, da direita para a esquerda, em linha descendente.

Um vestido vermelho andaluz. Naquela praça que chovia. Na tarde do coração deserto.

sábado, 8 de outubro de 2011

Segredos do implúvio

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


I

Dizem
que escrever
poemas
é ofício
de pouco valimento

mas pouco se revelou
sobre a memória da sombra
as paredes úmidas
da velha casa de madeira
o esquálido corredor
onde se morria
um dia todos os dias
sem notícia
sem amanhã

II

alguém precisava
recordar
os soturnos habitantes
da rua humilde
na cidade serrana

lembrar o cheiro
de suas vestes
as pedras soltas
na porta das casas

os casacos pretos
nas manhãs de geada

III

nada ou muito pouco
se disse
dos segredos do implúvio

eu me pergunto por que
esse vazio em torno

estaria no silêncio
acre das caves
o destino de partir?

trabalho lento
nas escarpas
do coração

IV

não fossem
os trilhos
do trem
o barulho santo
do trem
atravessando
a madrugada
criando ao menos
em tese
a possibilidade
da fuga
muitos teriam
desistido de tudo
ali mesmo
como fez Chico
o Esquecido

V

o coração não é
assim mero

cresce em segredo
na dura colheita

não se esvazia
o coração
como se esgotam
as cisternas

VI

alguém precisava contar
a náusea persistente
a longa e tortuosa estrada
que desce na Capital

melhor não inventar
histórias
de castelos e linhagens
que nunca existiram
e se houve
federam
como podem feder
as escadarias
dessas obscuras passagens
perdidas no planeta
que recolhem
seres rastejantes

VII

o que se registra
no tombo do tempo
é que há um menino
imóvel
à beira da jovem defunta

naquele lugar
a despedida
com alguma flor
sussurros abafados

ele pergunta
onde ela foi habitar

o que vê
é a morte
e seu absurdo trabalho
convertendo em pó
a luz dos olhos

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Do livro O habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.
Foto: J.Finatto

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Um conto chinês

Jorge Adelar Finatto



Mais uma vez um filme argentino me tira de casa. Desta vez foi Um conto chinês, que tem no papel central esse grande ator que é Ricardo Darín (O filho da noiva, O clube da lua, O segredo dos seus olhos). A presença de Darín é motivo justo e esperado para esse movimento tão antigo quanto civilizado que é sair da caverna para ir ao cinema.

A Argentina faz hoje os melhores filmes do mundo, no meu mui modesto entendimento. Cinéfilos e cineastas devem prestar atenção no que os irmãos que habitam as margens do Rio da Prata estão fazendo na tela. Em menor proporção, mas com a mesma qualidade, estão obras produzidas no Uruguai (O banheiro do papa, entre outras).

Roberto (Darín) é um homem solteiro, na faixa dos 40 anos, que vive um cotidiano solitário e paralisante na sua casa num subúrbio de Buenos Aires, que tem na parte da frente uma ferragem, que administra e da qual é proprietário. É ex-combatente da guerra das Malvinas. Além do trabalho, tem como passatempo procurar e colecionar recortes de notícias absurdas. Um homem ensimesmado, desconfiado, mergulhado na sua pequena vida. Um de nós, em suma.

Um dia conhece Jun, um jovem chinês que veio embarcado, trabalhando num navio mercante, para a Argentina em busca do tio. Um acontecimento os aproxima, levando-os a conviver, apesar de um não entender o idioma e a vida do outro. Roberto vê sua rotina ser invadida contra sua vontade. Abriga o rapaz perdido, o que o leva a experimentar gestos e sentimentos até então desconhecidos. A vida não seria mais a mesma.

Um evento real, ocorrido na China, está na origem da narrativa: uma vaca que caiu do céu.

O filme conta uma boa história, tem bom roteiro, uma câmara simples e correta. É povoado de diversas situações que levam o espectador ao riso, à reflexão sobre a solidão e a solidariedade. Nos coloca diante da fragilidade da existência e dos desígnios humanos, tendo como pano de fundo a única coisa capaz de nos salvar da dureza da realidade, dos outros e de nós mesmos: o amor.

O sentimento que a gente leva depois que sai da sala escura é de que, apesar de tudo, vale a pena estar vivo emocionalmente, em meio ao nada que nos cerca.

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Produção: Espanha e Argentina, 2011. Direção de Sebastian Borensztein. Com Ricardo Darín, Muriel Santa Ana, Huang Sheng Huang, Javier Pinto, Julia Castelló Agulló. 93 min.
Imagem: cartaz do filme.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A pensão dos viajantes solitários

Jorge Adelar Finatto



A cidade é onde o abandono é dono.

As praças vazias onde me quedo ouvindo falecidas conversas.

Bardo obscuro e tabelião em Passo dos Ausentes, eu, Landgrave dos Santos Esquecido, inquilino do absurdo, vivo os interstícios.  Os ásperos padecimentos da humana travessia. A bordo de um frágil e ridículo corpo existo. Ninguém sabe até quando.

Cheio pela borda de cansaços e desejos. Quem houvera nesta vida me escutasse os ais.

Viver é assunto proceloso e bem escuro.

As coisas que não aconteceram são as que mais se afeiçoam na minha lembrança. A biografia que merece os veros registros: a dos não-acontecimentos.

Por isso estou aqui. Me inventando, me contando.

Sou o bardo barroco, ressuscitado em salvadoras prosopopeias. A obsessão pela música interior. Essa que me faço. Conjuro o venturoso canto.

Não me interessa a realidade. Quem tiver a realidade, que a bem guarde e embale.

Sou viajante de um tempo que se esfuma.

A saudade é um retrato em branco e preto na gaveta da memória. Os destroços de cada um.

O meu coração habita um quarto de pensão. A pensão se chama Ao viajante solitário.

Às vezes penso que o mundo é uma grande pensão. A pensão dos viajantes solitários. A existência é um fio de orvalho estendido de manhãzinha sob o sol.

Somos parceiros das nuvens.

Caminho para o lugar mero do esquecimento.

Eu, Landgrave dos Santos Esquecido, inquilino do absurdo, de tudo dou fé e assino. Passo dos Ausentes, nos Campos de Cima do Esquecimento, Rio Grande do Sul.

Primavera, primaveras.

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Do livro Calado observador do fim do mundo, Editora Vésper, Passo dos Ausentes, 2010.
photo: j.finatto

sábado, 1 de outubro de 2011

Hay vida antes de la muerte?

Jorge Adelar Finatto



 
Em Montevidéu, até os grafites têm espírito. As inscrições públicas nas ruas montevideanas não perdoam a superficialidade. Uma vez lidas, não deixam o caminhante em paz.

Pressentindo que seria um absurdo virar simplesmente as costas e ir embora, resolvi fotografar e trazer comigo a inquietante frase.

Hay vida antes de la muerte?
 
Não bastassem as perplexidades e angústias de cada dia, acrescentei agora mais esta ao meu baú de assombros.

Afinal, haverá mesmo vida antes da morte ou seremos apenas tristes fantoches com a boca rasgada e olhos opacos às voltas com o anonimato, o desamparo, a solidão?

O que sei é que há dias em que me sinto vivo. Parece que a morte ainda não foi inventada. Em outros, contudo, viver não vale um caco colorido de vaso quebrado.
 
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Foto: J. Finatto
Texto publicado em 14 de junho, 2011.
Mais sobre a arte do grafite no texto Basquiat, anjo caído, de 28 de novembro, 2010.