segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Queremos a eternidade perdida de volta

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto
 
 
Eu tinha muitas coisas para te escrever, contudo, não quero estar escrevendo com tinta e pena. Espero, porém, ver-te logo, e havemos de falar face a face. (A Terceira de João, 13, 14)
 
A nossa passagem pela vida não se eterniza senão através da palavra escrita. Afinal, é a arte, por enquanto, a única eternidade de que dispomos.

A obra do escritor e do artista é essa tentativa de resposta à imensa interrogação que nos envolve.

Estamos soltos e sozinhos no cosmos a bordo do pequeno planeta azul. E não temos nada além da promessa de Deus para nos resgatar e livrar do buraco negro do esquecimento.

Queremos a eternidade perdida de volta.
 
A palavra anda à procura de transcendência, de algo vivo e duradouro, alguma coisa que não se perca, que nos livre do peso das horas e do vórtice da transitoriedade.

Escrever é uma maneira de afirmar que a morte não terá a última palavra.

O texto olha os seres, suas histórias e sentimentos. 

Para isso foram criadas as palavras, para essa eternidade de papel e tinta, para essa busca do encontro.
  
Levantar todos os dias, folhear um livro, olhar a cara no espelho, sair de casa, ir à vida, é um ato de enorme coragem.
 
Qualquer texto, poema, romance, conto, diário, anotação no guardanapo, no caderno ou na tela do computador, tenta salvar o instante que passa.

Escrevemos e lemos enquanto não se realiza a promessa.
 

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Amor

Jorge Adelar Finatto


 
Amor, filme do diretor e roteirista austríaco Michael Haneke, coloca em discussão os limites de alguém que se torna cuidador de uma pessoa inválida. E o próprio sentido de viver daquele que é cuidado em condições de invalidez. Com excelentes desempenhos de Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva, a obra é uma das candidatas ao Oscar de melhor filme deste ano. As premiações serão conhecidas em 24 de fevereiro próximo e adianto que Amor já tem o meu voto.
 
Saí do cinema com a sensação de ter sido atropelado por um trem. Chocado por ver até onde pode chegar o desespero das pessoas diante de uma situação em que a doença muda completamente a vida para pior. O nosso despreparo em lidar com a dor, o sofrimento e a iminência da morte é enorme.

No caso do filme, um casal de professores de música, ambos aposentados, vê-se diante da doença da mulher. De repente, Anne sofre um derrame, um lado do corpo fica paralisado. A paralisia é progressiva, chegando ao ponto de não poder mais fazer nada por si, passando a depender em tudo do marido Georges.

O casal, na faixa dos 80 anos, foi companheiro por décadas, partilharam a vida, a profissão e a família (tem uma filha casada e netos). Amor propõe o problema de como enfrentar a doença de uma pessoa querida. Georges recusa-se a internar Anne, passa a assisti-la integralmente, com o auxílio eventual de uma enfermeira (conto só o início da história e paro por aqui).

O grande mérito do filme, a meu ver, é trazer à reflexão as diferentes maneiras de encarar esta situação.
 
Os avanços da medicina fazem com que se viva mais hoje. Algumas doenças não matam como antes, a vida é prolongada. Às vezes a pessoa sobrevive com prejuízos da saúde mental (sai do ar ou passa por períodos de ausência) e física, necessitando de atenção permanente. O que fazer?
 
Alguns optam por "terceirizar" os cuidados, pagando uma clínica ou hospital. Para quem tem dinheiro e não quer "se incomodar" é o mais cômodo, sem dúvida. Paga-se e está tudo resolvido. Será?

Anne fez o marido prometer que não iria colocá-la no hospital e ele atendeu. A partir daí entram em cena questões éticas e práticas.

O fato é que, se hoje vivemos mais do que antes, precisamos estar preparados para cuidar uns dos outros em caso de doença. Mas em geral ninguém está.

A sociedade na qual vivemos, embalada pela publicidade, funda-se no ideal do consumo sem limites e da felicidade eterna. As aparências valem mais do que tudo (vide a maior parte do que se publica no facebook, as caras e bocas das fotografias, etc.), acredita-se ou finge-se acreditar que viver passa sempre longe da dor.

A vida, nessa visão de pouca valorização do humano, deve ser só prazer, glamour, crescimento individual, conquistas, realizações, viagens, sexo, bem-estar total e constante. Não se vê o sacrifício em prol do outro como uma possibilidade. Todo limite ao prazer precisa ser afastado, qualquer sofrimento, escondido.
  
A tendência predominante diante do infortúnio é de querer terceirizar os cuidados com a doença. Mas até que ponto isso é eticamente aceitável? O amor, a ternura e o respeito acabam quando se apresenta o tempo mau?

Penso o seguinte, na busca de possíveis respostas.

Se eu amo fulana(o), se vivi com fulana(o) a maior parte da minha vida, se tive filhos com fulana(o), se viajei e fui feliz com ela(e), se juntos construímos uma história, uma família, um patrimônio, é razoável abandonar fulana(o) quando ela(e) adoece e não pode cuidar de si mesma(o)? E quando fulana(o) não me reconhece mais, porque a doença me apagou de sua mente? Fulana(o) não será mais fulana(o) por isso, devendo ser descartada(o) da minha vida?
 
Fulana(o) ainda é fulana(o), só que agora doente. A consciência diz que devo fazer tudo ao meu alcance para cuidá-la(o). É o mínimo ético no caso. Vai ser difícil, a vida vai ficar duríssima, a alegria vai diminuir muito, mas faz parte da nossa condição. Vou buscar ajuda, principalmente na família, para manter a pessoa em casa.
 
Um dia, talvez, eu serei o fulano e não gostaria de ser abandonado, "suicidado" ou simplesmente assassinado "por amor", tendo em vista as minhas notórias limitações. Porque enquanto houver um sopro de vida e consciência pretendo continuar vivo, tentando prosseguir.

Haverá situações em que alguém não poderá ser cuidador, por impossibilidade física, emocional ou material. Aí a solução será diferente, provavelmente com hospital ou clínica.
 
Falar é fácil, eu sei. Fazer é outra história. Não existem soluções prontas. Estou apenas pensando e sentindo alto com você, raro leitor.

Mas não me entra na cabeça saltar fora da carroça no momento em que o outro torna-se o doente ou o demente da relação. Sempre lembrando que posso vir a ser o outro do outro.

Viver e amar é mais que um anúncio de bebida, lingerie, automóvel ou férias numa praia paradisíaca. E mais belo também, apesar de tudo.

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A fita branca, outro filme de M. Haneke, trata das origens do nazismo:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/05/as-origens-do-nazismo.html

Jean-Dominique Bauby:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/04/o-prisioneiro-do-escafandro-e-o-bosque.html 

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Escrito do amor perecível

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto. São Francisco de Paula
 

Poderia jurar amor eterno à pequena borboleta que agora cruza a beira do lago. Ela carrega no coração, como eu, a melancolia antecipada da partida iminente do jardim.

Está escrito que nosso tempo é breve. Teremos de deixar o jardim que tanto amamos. E não sabemos o que nos espera além dele. Talvez exista um outro jardim depois desse.
 
Levaremos a saudade dos dias vividos entre as flores, as fontes, os córregos, as árvores. Não concordamos, claro, com dias assim tão escassos. Mas o que fazer? Nosso coração pulsa nas têmporas.
 
Os dias ruins e a rotina nunca nos tiram a vontade de viver. 
 
A borboleta escreve minúsculos bilhetes que vai soltando ao vento. Amamos as magnólias, as rosas, as nuvens e os hibiscos.

Escreveu a borboleta estas palavras na folha de um plátano:

Eu só queria mais um dia para estar no jardim e dizer do meu amor a cada um dos seus habitantes. Quero que ao menos recordem de mim quando lerem estas palavras.

Lembrem meus voos silentes e suaves. De como amei o farelo, o miúdo da vida.

Estou prestes a deixar o jardim e isso me dá tanta tristeza.

Quero deixar escrito este amor perecível.

Antes de cair e secar no chão.
 

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Os desolados

Jorge Adelar Finatto

 
photo: J. Finatto

 
As manhãs fogem do escuro.

A solidão é um negro capuz que se veste nos retirados da dor.

Tive medo de ver os escombros. Os difíceis haveres do abandono. Havia uma mulher chorando naquele breu. Quem? Não divulguei.

O coração humano gira em estranhos círculos. O traçado torto da vida. Quem puder se segure, senão cai no perau. Eu, quando escuto gente chorando, sinto névoa andando à volta.

Coisas que vi. Meu coração barroco. Aquele choro me doeu. Mas eu fui. Foi quando meus olhos divulgaram ela. A mulher era uma visão sob a pérgula. Eu não sabia o que era beleza até aquele quando.

Estava sentada num banco de pedra ao lado de uma camélia vermelha, perto da fonte. Havia uma escada com seis degraus que terminava no ar. Ligava parte alguma a lugar nenhum. A casa desmoronada no íntimo da pessoa.

A mulher, sua triste alma, aquela ruína. Me aproximei no cuidadoso jeito. Era uma tarde de junho como essa. O frio, frios.

A mulher - a visão - fez sinal para eu parar e esperar.

O que fiz nos respeitos. Ela se levantou, arrumou o vestido, olhou o céu. Entre as duas mãos largou a face e os cabelos de linho, depois seguiu sozinha. O tempo andou.

Eu vivia no lugar perdido, arrostando sol e vento, sem eira nem beira.

Os loucos dias no sanatório do mundo. Os ermos. Caminhos que se andam.

Um dia de fina luz de primavera ela veio em minha direção, pegou no braço meu. Caminhou, caminhamos. Em silêncio. Palavras que se dizem sem falar. Aconteceu a brilhante estrela caindo no meu caminho.

O punhal que me rasgava por dentro foi saindo, saiu.

Nos acolhemos, reunimos as raras pertenças.

Me tornei sentimento. Sentimentos.
 
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Texto publicado em 03/05/2010.
 

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Série Retratos 8



"A Catedral", escultura de Auguste Rodin (1840 - 1917)
Museu Rodin, Paris. photo: j.finatto



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Autor da photo: Jorge A. Finatto
Pedidos de cópia ou reprodução podem ser feitos ao autor pelo e-mail j.finatto@terra.com.br
 

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Tragédia de Santa Maria

Jorge Adelar Finatto

A dor diante do trágico acontecimento de Santa Maria é infinita. Manifesto minha solidariedade e profundo sentimento aos familiares e amigos dos que perderam a vida.
 

Mulheres escritoras

Jorge Adelar Finatto
 

Margaret Atwood. Foto do site oficial da escritora*


Estou lendo um livro muito interessante da escritora canadense Margaret Atwood, nascida na cidade de Ottawa em 1939. Trata-se de Buscas Curiosas**, conjunto de textos avulsos nos quais a autora aborda assuntos relacionados a sua experiência de escritora e leitora, desde a infância até a maturidade.

Os textos ocasionais, como os chama, foram escritos no período de 1970 a 2005.
 
Nunca tinha lido nada desta autora que é poeta, romancista, contista, ensaísta e roteirista. Entre suas premiações estão o Booker Prize de 2000 por O assassino cego e o Príncipe das Astúrias de 2008. Peguei o livro na estante da livraria levado pela intuição, gostei do título e da capa, li alguns trechos ao acaso (a força do acaso) e acabei comprando.

Não me arrependi. Margaret Atwood é uma escritora obstinada no seu trabalho e uma observadora que lança luzes generosas sobre aquilo que escreve.
 
Ela não mitifica o ato de escrever, tem uma visão realista do ofício. Ao mesmo tempo, é capaz de voar com as palavras e olhar o mundo lá do alto com ternura. Escreve simples e claro.
 
Chamou-me a atenção, entre outros, o texto Nove começos, em que fala sobre os problemas que as mulheres escritoras enfrentam diante de certa mentalidade preconceituosa. Diz ela:
 
"É preciso ter uma quantidade considerável de coragem para ser escritora, uma coragem quase física, do tipo que se precisa para atravessar um rio sobre troncos flutuando. (...)

Uma proporção de fracassos vem embutida no processo de escrever. A lata de lixo não evoluiu sem motivo. Pensem nela como o altar da Musa do Olvido, a quem você sacrifica seus primeiros rascunhos malsucedidos, as provas de sua imperfeiçao humana. Ela é a décima musa, aquela sem a qual nenhuma das outras pode funcionar. A dádiva que ela lhe oferece é a liberdade da segunda chance. Ou de tantas chances quantas você quiser arriscar."(pág. 167).

Nada como ouvir alguém que tem algo a dizer sobre a difícil condição do escritor e o faz de forma tão lúcida quanto inspirada. Margaret Atwood fala de verdades que se aplicam a mulheres, e também a homens, que se lançam no turbulento e belo caminho da escrita.

Agrada-me a sinceridade com que a escritora encara os mais diversos assuntos, discorrendo com desenvoltura a respeito de livros, autores e situações vividas. O livro prende a atenção e em nenhum momento se mostra pesado, pelo contrário, nos leva por paisagens variadas com profundidade e sutileza.

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*Margaret Atwood:
  http://www.margaretatwood.ca/index.php
 **Buscas Curiosas, Margaret Atwood. Tradução de Ana Deiró. Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2009.