quinta-feira, 18 de abril de 2013

Calle de los suspiros

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto


De não ver os olhos estão vazios.
De não escutar os ouvidos estão ocos.

Um dia encontrei no mapa aquela cidade ao sul.
Um lugar que nasceu num tempo muito antigo.
Nela havia uma rua chamada Calle de los suspiros.
Fui até lá como atrás de um segredo.

A rua dos suspiros está povoada de passos perdidos.
Os fantasmas ocupam as casas coloniais.

Quem mora na rua dos suspiros?

A moça da janela olha as buganvílias.
O homem que não sai de casa vê seres incorpóreos nos telhados.
A luz das luminárias é amarelo calmo.

À noite se ouve nas pedras a batida de cascos de cavalos que não existem mais.

A rua dos suspiros é um camafeu pregado no oblívio.

Os ventos se reúnem na calle antes de sair a galope pelo mundo.

A dor envelheceu nesta rua.
Neste lugar, todos sofrem para dentro.

Há um salão de baile desabitado com mesas no escuro.
A orquestra foi embora carregando a música e os casais que dançavam.

A rua dos suspiros habita um retrato caído no tempo.

Quem chora a essa hora na calle deserta?

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Foto: J. Finatto
Imagem de Colonia del Sacramento, Uruguai.
Texto publicado no blog em 18/12/2010.
 

terça-feira, 16 de abril de 2013

As massas polares

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto
 

A solidão é um negro espantalho que habita os corações.

Agora chegaram as massas de ar polar. Aqui nos Campos de Cima do Esquecimento é assim: aos primeiros movimentos de violoncelo do outono, o tempo se enregela.

Estava arejando livros antigos sobre a escrivaninha, aproveitando uma réstia de sol que penetrava pela clarabóia*, quando o ar gelado da tarde começou a tomar conta.

As primícias do inverno mandam notícias.

Lá fora os ramos e as folhas perdem viço. Tentei resistir só com a blusa de lã, mas não teve jeito. Resgatei o capote azul-marinho do armário.
 
O frio antecipado traz de volta costumes, reclama providências. Na tarde de domingo, fui até o pinheiro mais robusto do quintal ver se havia caído alguma pinha. Ainda não. As pinhas permanecem penduradas nos verdes galhos, entre grimpas pontiagudas.

Cozinhar pinhão, na chapa do fogão a lenha, é um dos prazeres do frio. 
 
Enquanto olhava a copa da araucária, deu-se que, no profundo azul do céu, passou voando - num vôo suave e elegante -  uma ave de longo pescoço e asas de larga envergadura. Era vôo alto, coisa de duzentos metros, em direção ao poente. Senti gratidão.

As andorinhas já não voam por estas paragens. Partiram em arribação para o Norte, em busca de dias cálidos. Neste canto do planeta, a circulação das seivas diminuiu.

As massas polares vêm me lembrar também que faltam abraços no mundo. Faz muito frio nas almas.

Vertem lágrimas nos olhos das estátuas nas praças. 

Mas alguns ainda são capazes do humano gesto. Trazem o sol dentro de si. Esses herdarão a primavera. 
 
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*Nos textos do blog, continuo usando a ortografia atual, e não a do acordo ortográfico, conforme o Decreto 7.875, de 27/12/2012, que postergou a obrigatoriedade das novas regras, no Brasil, para 1º de janeiro de 2016. Até lá, ambas as nornas estão em vigor.
Sobre o assunto:
O acordo ortográfico fazendo água:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/03/o-acordo-ortografico-fazendo-agua.html
 

segunda-feira, 15 de abril de 2013

A boca oca

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto
 


a
li
te
ra
tu
ra
é
um
belo
caminho
mas
porém
contudo
sem
fim                        

(infinitos
 livros
 vogam
 nas estantes)

eu
finito                               
                                     
(silêncio
 da
 boca
 oca)

um
de
nós
terá
de
se
adaptar                
           
 

sábado, 13 de abril de 2013

Efêmera canoa

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Canoa no Guaíba
 

Diante de Porto Alegre, atravessa lenta e quase invisível uma canoa.

Vista do continente, parece uma figura saída de um velho livro de fotografias. Recordação de um passado distante.

Observo-a deslizando no rio, em mansa e agonizante viagem em direção ao crepúsculo.

O homem atrás do peixe e do repouso.

O pescador e o peixe à sombra da cidade desolada.

O observador, na beira do rio, alimenta a ilusão de beleza e permanência do instante.

O olho faminto registra o calado movimento, a passagem da canoa em seu delicado itinerário.

Nenhuma imagem é tão bela como a cidade espelhada no seu rio.

A canoa, a cidade, o homem, o peixe, habitam o efêmero.

Todos rumo ao oblívio.

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Texto revisto, publicado antes em 24, fevereiro, 2012.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Cinema de rua

O Cavaleiro da Bandana Escarlate



Este é um blog primitivo. Se o leitor observar, notará vestígios de textos escritos a caneta em guardanapo de papel. Me disseram que o autor desta página pode ser visto em cafés, lendo e rabiscando coisas. Essas anotações ele depois datilografa no computador. O editor do blog é do tempo da máquina de escrever. Para ele, o notebook nada mais é do que uma vetusta olivetti com luzes dentro. Às vezes, desconfio que, em menino, banhou-se nas águas do Dilúvio.

Este é, portanto, um blog arcaico, com raros e valentes leitores. Aqui não se ouvem músicas nem sons temáticos, não se encontram imagens cambiantes nem filmes. Tudo se passa como no tempo do cinema mudo. O fazedor da página deve amar Charles Chaplin (1889-1977).

Eu não devia ficar me dando ares. Sou convidado a escrever sobre cinema. Mas o fato é que quase não tenho saído de casa. Ultimamente, passo os dias na biblioteca do modesto solar, nas cercanias da praça Maurício Cardoso, em Porto Alegre. Abro as janelas dos fundos pra ver os pássaros no breve jardim. Eles vêm alimentar-se. Sirvo-lhes frutas. Em troca me oferecem o canto, dentro da lógica capitalista de que não existe almoço de graça.

Saio pouco de casa por temperamento e porque tenho medo de assalto. Não tenho mais fôlego pra correr dos bandidos. Fumei durante muito tempo, hoje me falta o ar. Contrariando o médico, ainda fumo charuto escondido, principalmente nos entrementes de uma garrafa de vinho.

Meu físico assaz patético é um convite aos ladrões na via pública.

Uma pequena história: os primeiros filmes que vi foram aqueles do tempo de menino em Passo dos Ausentes. Não havia sala de projeção naquele fim de mundo. Um dia, no final dos anos 1940, o médico da cidade, Dr. Fredolino Lancaster, numa viagem de estudos à Inglaterra, adquiriu um projetor. Na volta, começou a passar filmes na fachada de sua casa, sobre um lençol branco. As famílias levavam cadeiras para assistir às sessões de filmes mudos, que aconteciam no primeiro sábado do mês. Ali conhecemos o grande Carlitos.

Eram as noites mais esperadas do ano. Alberta de Montecalvino se encarregava de distribuir a pipoca. Nefelindo Acquaviva organizava a platéia. Juan Niebla, o músico cego do bandoneón, executava inefáveis melodias, conforme a história se passava na tela e lhe era segredada na concha do ouvido por Heitor dos Crepúsculos.

O miserável andarilho vaga pelo universo com sua surrada roupa, chapéu-coco e bengala. Carlitos mudou nosso modo de sentir e ver a vida. O vagabundo que vive na pobreza, com modos de sobrevivente e dignidade de cavalheiro, nos devolveu alguma coisa que havíamos perdido pelo caminho. Assistir a um filme de Carlitos é receita infalível contra depressão e vontade de morrer.
 
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Foto: Chaplin como o vagabundo Carlitos (11 de abril de 1915). Autoria não informada. Fonte: Wikipédia. Texto publicado em 2 de junho, 2011.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Encher o chapéu com folhas de outono

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto
 
 
Escolhi esta tarde cinzenta pra caminhar por caminhos de silêncio e folhas arrastadas no chão. O coração quis fugir da sala fechada e da tristeza dos últimos dias.

Fui respirar um pouco do ar transparente de abril. Desapareci entre as árvores na distância como quem desaparece ao penetrar numa luminosa aquarela.
 
O silêncio só era cortado aqui e ali pela voz de algum pássaro ou pelo rumor das folhas dos plátanos na passagem do vento.
 
Uma paisagem fora do tempo. Um território só sentimento. Um instante longe da dor, perambulando nos Campos de Cima do Esquecimento.


photo: j.finatto
 
 
A bordo do chapéu de palha e dos óculos de fundo de garrafa lá me fui, misturado nas cores outonais como quem vai em busca da urgente seiva pra continuar vivo. 
 
Tem dias em que é preciso estancar a ampulheta e sair por aí numa tarde cinzenta.

Encher o chapéu com as folhas do outono, e andar, andar e andar pela aquarela até flutuar sobre os telhados e sobre a copa das nuvens.
  

terça-feira, 9 de abril de 2013

In memoriam

Jorge Adelar Finatto
 

Romeu Marques Ribeiro Filho
Fonte: site Tribunal de Justiça do RS
 

Porque sois uma bruma que aparece por um pouco de tempo e depois desaparece.
      Tiago 4: 14

A morte tece sua teia invisível, implacável. Num instante, retira de perto da gente pessoas que nos são queridas.
 
No meio da tarde de quarta-feira (3 de abril) recebi o telefonema dando conta da morte do colega. Ele havia jogado tênis pela manhã. Depois foi para casa pela hora do almoço. Passou mal e, em seguida, veio a morrer do coração. Não houve tempo pra nada.

Um mero e fatal instante: já não estava mais entre nós. Tinha 57 anos, havia se aposentado há alguns meses como desembargador.

Conhecia-o há mais de 20 anos. Tivemos uma convivência próxima quando, em 1991, trabalhamos na comarca de Rio Grande, cidade ao Sul, porto marítimo. Havia então o hábito do convívio entre colegas, não apenas no foro como em almoços e jantares de fim de semana.
 
Tinha admiração pelo ser humano e pelo juiz que ele era. Em Porto Alegre, a convivência diminuiu. Se o interior aproxima, a grande cidade tem o condão de nos distrair do trato diário. O invencível excesso de trabalho e as mil preocupações facilitam o isolamento e, se não nos damos conta, nos distraímos até de viver.

Algum tempo atrás, nos encontramos pela última vez. Era uma época especialmente difícil pra mim em razão de uma doença grave. Como não havia muito o que dizer, ele veio ao meu encontro, me abraçou e me deu um beijo. O gesto me comoveu, e me deu força.
 
Há momentos na vida em que tudo que mais precisamos é de um abraço e um beijo. Infelizmente, não pude fazer isso por ele.

Vou levar para sempre aquele beijo na minha face, enquanto durar a bruma que também sou.
 
A Romeu Marques Ribeiro Filho,  o beijo e o abraço, saudade e afeto, in memoriam.