sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Conversa de amigo

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


O leitor do blog é companheiro de viagem. Conversamos na jornada como o vento conversa com os pinheiros e a Lua na tarde de Passo dos Ausentes.
 
A idéia de que a internet cria um ambiente de convivência e troca é estimulante. Um lugar onde todos podem ser ao mesmo tempo leitores e escritores. Emissores e receptores de mensagens, sem a atitude meramente passiva que assumimos diante de um jornal, revista, meios eletrônicos, etc.
 
Por outro lado, ninguém deve ficar tempo demais diante do computador, esquecendo a vida real em nossa volta. Isso nos levaria ao isolamento e sua multidão de fantasmas. Somos gente e necessitamos da presença física do outro.
 
Precisamos de convívio, encontro real com pessoas reais.
 
Não sei quantas pessoas estão do outro lado da tela, mas isso não importa. A qualidade de quem lê é que faz a diferença.
 
As manifestações dos leitores são escassas, é verdade, quase não existem. Mas às vezes tenho a impressão de ver um leve movimento na cortina da janela virtual, anunciando que alguém parou e, por um breve instante, deu uma olhada para o interior da sala.
 
A grande arte, a arte superior e civilizada é, sem dúvida, a leitura. Ler é traço de humanismo, empatia, generosidade, curiosidade. Eu me considero, antes de tudo, um leitor, um leitor esforçado que encontra recompensa no seu esforço. Além de estar sempre com um livro por perto, tenho descoberto bons blogues, com riqueza de informação, análise, imagens e criação literária.

A palavra bem escrita tem espaço garantido no coração do leitor, independente do meio onde esteja veiculada.
 
Ler e escrever são a prova acabada de que o ser humano foi criado para ser convivente nessa curta passagem existencial.
 
O filósofo Jean-Paul Sarte (1905-1980) disse: "o inferno são os outros", com sabedoria. É este outro, algumas vezes tão diferente e outras tão parecido conosco, quem, afinal, no ato de nos "infernizar", nos completa, nos dá sentido, nos faz querer ser melhores do que somos.
 
Esta prosa me lembra um poema de Robert Frost (1874-1963), grande poeta norte-americano que viveu perto da natureza e que apreendeu, como poucos, a poesia transcendente que dimana das coisas simples. É com os versos de Frost que digo até logo, desejando uma boa sexta-feira a todos.
 
Hora de conversar*
  
Quando da estrada um amigo me chama
Refreia seu cavalo e anda a passo
Não fico parado e olho à volta
Para todas as colinas que não capinei
E grito de onde estou: “O que é?”
Não, não como se houvesse um tempo para conversar.
Enterro minha enxada na terra fofa
A lâmina para cima a cinco pés de altura
E ando: vou até o muro de pedra
Para uma conversa de amigo.
 
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*Poemas Escolhidos. Robert Frost. Editora Lidador Ltda. Rio de Janeiro, 1969. Tradução de Marisa Murray.
 

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Somos todos de uma distante galáxia

Jorge Adelar Finatto
 
Imagem da galáxia espiral NGC 1637*

 
A idéia de que alguém na Islândia, na China ou na galáxia espiral NGC 1637, a cerca de 35 milhões de anos-luz da Terra (na constelação do Rio Erídano), está lendo estas linhas dá o que pensar. Revela o poder da palavra na internet, capaz de estreitar distâncias, suavizar o tempo, mitigar solidões.

Se é verdade que somos todos estrangeiros neste estranho universo, resta ao menos a esperança de encontrar pelo caminho pessoas pra partilhar a vida, tornando a viagem menos solitária.

Escrever num blog, raro leitor, é como escrever com lápis de cor numa nuvem. Ninguém sabe no que vai dar, mas é bonito ver as letras coloridas no fundo branco.

A palavra impressa passa o sentimento físico de permanência, ao contrário do ciberespaço, no qual domina a sensação de extrema fugacidade.

Estamos acostumados a pensar no papel como se nele a palavra estivesse a salvo do tempo, do desaparecimento.

Mas a impressão de perenidade não deixa de ser uma quimera.

A imensa maioria dos livros está condenada ao esquecimento por falta de leitores. Sobrevivem alguns fisicamente nas estantes, mas é uma existência sem brilho e sem alma. Na verdade, vivem no escuro e no pó. A luz de olhos humanos não ilumina suas páginas fechadas.

Só está vivo o texto (virtual ou impresso) quando encontra um leitor que o descobre e retira do claustro.

O resto é silenciosa espera na biblioteca (ou na nuvem da internet).

O blog é uma esquina invisível onde amigos se reúnem pra conversar. Um meio de comunicação aberto a todos, lugar de encontros, região de claridades.
 
Escrever na nuvem, portanto, é uma maneira de resistir. Uma ilusão, quem sabe, mas ajuda a viver.

Estou falando essas coisas talvez porque é madrugada, o outono chegou nos Campos de Cima do Esquecimento. Faz frio lá fora e eu olho para o céu pontilhado de cintilações, tentando descobrir uma janela aberta, com alguém debruçado nela, na NGC 1637.
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*Imagem produzida e divulgada pelos astrônomos do Observatório Europeu do Sul, no norte do Chile,  em 20 de março, 2013.
Texto revisto, publicado em 23 de março, 2013.

domingo, 6 de outubro de 2013

Monsieur Jardin du Bonheur

Jorge Adelar Finatto
 
 
estação de trem no dia da chegada de M. Jardin. photo: j.finatto


Du Bonheur, Monsieur Jardin du Bonheur. É natural de uma colônia do interior de Gramado. Vem de uma nobre linhagem de espantalhos da região do Valais, nos Alpes suíços. No Brasil, os Bonheur fixaram-se na Serra gaúcha no fim do século XIX.

Ele desembarcou na estação de trem de Passo dos Ausentes no final dos anos 1940, pouco antes da melancólica desativação do transporte ferroviário em nossa região, os Campos de Cima do Esquecimento. Estranhável pela roupa velha, amassada e colorida, pelo chapéu de palha desfiado nas extremidades e pelo sotaque que mistura português, alemão e francês, logo na chegada atraiu muitos olhares.

Com uma surrada mala de couro na mão, caminhava com as finas pernas em arco e com os ombros levantando e baixando, alternadamente, feito gangorra. Assim que desceu do trem, foi em direção a Juan Niebla, o músico cego que tocava bandoneón na gare para alegrar os passageiros. Indagou se sabia onde podia encontrar trabalho, esclarecendo que era espantalho profissional. Niebla indicou a minha casa. Desde então ele vive aqui comigo.

Nunca precisei de um espantalho. Niebla me encaminhou Jardin para fazer troça comigo, e divertiu-se muito com a situação.

Percebi nos primeiros dias que Jardin jamais seria um espantalho convencional. É, na verdade, um subversivo do ofício. Não veio ao mundo para assustar aves em plantações e jardins, nem tampouco pessoas, estas por natureza tristes e sofridas.

Jardin é um espantalho vivo e alegre. Veio ao mundo para fazer graça às crianças e espantar a tristeza dos mais velhos.

Contemplativo, revela-se amigo do livre pensar e dos livros, que lê tanto de pé como sentado no jardim e no quintal, encostado na vetusta carreta coberta de vasos floridos. 

É bom conversador e tem livre acesso à minha pequena biblioteca.

Gosta de chá de maçã com canela. Vem ao escritório três ou quatro vezes por semana para pôr a conversa em dia e beber seu chá. Costuma observar demoradamente o Vale do Olhar. É quando sinto certa nostalgia no claro azul daqueles olhos. Às vezes, na minha ausência, ele se recosta na poltrona de couro marrom perto da janela, cobre-se com a manta de lã e dorme feito um menino.
 
À noite, quando a solitude e o frio pedem lareira acesa e aconchego, vamos para a sala dos fundos, de onde se avista, muito longe, o Contraforte dos Capuchinhos. Dali se vêem as muitas faces das estrelas que rebrilham a anos-luz de distância.

É quando mais gosto de ouvir as histórias do meu amigo, que emigrou da mansidão da colônia para o meu singelo jardim e, sobretudo, para o meu coração.
 
Jardin é meu confidente e também o é dos pássaros. Leva a vida a folhear seus livros e fazer anotações debaixo do pinheiro-mor. De vez em quando, assume a missão de seus ancestrais. Vai para o meio do jardim, estende os braços horizontalmente e abre um largo sorriso.

Nesse momento recebe a visita de muitos pássaros que lhe pousam nos braços e no chapéu. Para atraí-los traz sempre nas mãos grãos de alpiste.
 
A barba por fazer, as botas escuras, uma espiga de milho em cada bolso do casaco, a camisa quadriculada com retalhos coloridos e a gravata-borboleta azul dão-lhe um aspecto jovial. Uma capacidade de observação além do comum faz de Jardin um ser diferente. 
 
Um dia comentei que sua aparência lembrava a figura de um poeta antigo ou talvez um filósofo.
 
A comparação trouxe-lhe certo encanto: 
 
- Vivo longe das vaidades desse mundo, existo modestamente, em contato com a natureza, tagarelando com os pássaros que me visitam em busca dos farelos que trago sempre nos bolsos e nas mãos. Por isso amo a poesia.
 
Antes de sair do escritório, Jardin abriu a estante e pegou O Caminho do Campo *, obra do filósofo existencialista alemão Martin Heidegger (1889-1976), famoso habitante da Floresta Negra.
 
Leu estas linhas em voz alta:
 
“O carvalho mesmo assegurava que só semelhante crescer pode fundar o que dura e frutifica; que crescer significa: abrir-se à amplidão dos céus, mas também deitar raízes na obscuridade da terra; que tudo o que é verdadeiro e autêntico somente chega à maturidade se o homem for simultaneamente ambas as coisas: disponível ao apelo do mais alto céu e abrigado pela proteção da terra que oculta e produz. Isto o carvalho repete sempre ao caminho do campo, que diante dele corre seguro de seu destino.”
 
Acrescentou Monsieur Jardin:
 
- Essa é a parte boa do pensamento heideggeriano, em oposição à outra, sombria e inaceitável, que se envolveu com o nazismo, o que é simplesmente grotesco para um filósofo (e para qualquer ser humano dotado de um pouco de sensibilidade e inteligência), manchou-lhe a biografia. Triste.

O controvertido filósofo, digo eu, concordando com meu amigo, nunca veio a público dar explicações (que devia) e nem desculpou-se. Nunca pediu perdão. Silenciou. Isto é trágico para um pensador.

Monsieur Jardin despediu-se, sumindo na escada, deixando no ar um aroma de ervas silvestres.

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Sobre o problema do ser. O Caminho do Campo. Martin Heidegger. Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1969. Tradução de Ernildo Stein.
 

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

A fala de Arlequim

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. A mascarada. Veneza


Querer eu quero, e o querer é tudo. Cumpro os regulamentos do invisível.

De silêncio em silêncio, as difíceis passagens. Eu sinto no calado.

Os comedimentos. A pessoa sonhada tem certos jeitos. De não se deixar ver, nem tocar, nem sentir, nem sonhar. Os caprichos do ser amado.

As magnólias me doem no inverno de tão belas. Eu lírico. Os tormentos do amador. A musa é do tipo nem aí. Não sabe de mim.

Arlequim ao relento eu sou. Os rigores da lira me dilaceram. Vivo no austero das horas. Sinto no meu segredo.

Ela não me vê. Eu a vejo. Amador.
 
A musa é só o motivo. Eu sou o seu adamastor.

O que dorme no banco da praça. O que mora dentro do casaco e da manta. O do chapéu ridículo. O que fala algaravias no café. O que não suporta gritos. O que senta no cais a olhar as faluas e gaivotas.

Caminho à beira dos meus penhascos.
 
Ruínas são coisas que habitam no íntimo da pessoa. O que se fala e o outro não entende. Um diz aurora, a musa entende anoitecer. As palavras, tonterias.

Sentimento é o ora-veja da vida. Cultivo distância, alimento paciência. A musa e seu mistério e seu desdém.

O ser sonhado tem certos olhares. A musa vive num jardim secreto que eu mesmo inventei. A trança de linho desce pelo muro escarpado do castelo. Eu romântico.
 
A vida gira no esconso das horas cinzas.

Os trapos coloridos do meu coração ao vento.

Amador, amador.
 
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photo: Cena veneziana. Veneza, 2011.
Texto revisto, publicado em 30 de outubro, 2010.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

O cinamomo

Jorge Adelar Finatto
 
photo do cinamomo: j.finatto
 

Existe um edifício na rua Dona Eugênia, esquina com Lucas de Oliveira, no bairro Petrópolis, em Porto Alegre, que tem um pequeno jardim em frente. Neste jardim vive um velho cinamomo.
 
Passei por lá no último sábado, o tempo estava um pouco nublado e frio. Caminhava rumo à banca de jornal que tem ali perto, onde costumo ir quando estou pela cidade.
 
Sempre que passo naquele lugar olho para o meu amigo cinamomo. Às vezes me pergunto se ele ainda se lembra de mim. Eu jamais poderia esquecê-lo. Morei naquele edifício quando tinha nove, dez anos.

O cinamomo fazia parte das brincadeiras da gurizada do prédio e da rua.
 
Pouca gente sabe - até porque existem hoje poucos cinamomos na cidade - mas essa árvore tem minúsculas flores que, na primavera, produzem um dos mais doces e suaves perfumes que conheço.

O meu velho cinamomo está lá, florido, soltando seu perfume em mais uma primavera das nossas vidas. A todos distribui seu aroma generosamente.

De certa forma, somos sobreviventes de um tempo e de um jardim.
 
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Texto revisto, publicado em 27 de setembro, 2010. 

domingo, 29 de setembro de 2013

Xico, Vasco e Iberê

Jorge Adelar Finatto

O homem da flor na boca (Um ato de amor à vida).
pintura de Iberê Camargo, 1992.
 
Saber desenhar é um dom maravilhoso. Eu não sei desenhar um ovo. Por isso admiro quem domina essa arte. Amo a pintura e gosto de visitar exposições.
 
Conhecer desenho é fundamental pra quem quer ser pintor ou escultor. A arte abstrata contribuiu muito para o desprestígio da pintura no Brasil e no mundo. Abandonou-se o figurativo, caiu-se no risco tosco, nos espaços vazios, abusou-se do sem sentido. Com exceções que vêm de artistas que já tinham um trabalho anterior fincado na figura. Exemplo entre nós: Manabu Mabe.

O abstrato de Manabu tem beleza e espírito. Passa emoção.

A maior parte do que se chama de arte abstrata é coisa de gente que nunca aprendeu a desenhar. Faltaram às aulas, negaram-se a estudar. Não podia dar boa coisa.

Van Gogh, por exemplo, desenhava muito bem. Fazia figuras humanas e inanimadas com rigor. Ele nunca traía o objeto. Observei de perto algumas coisas que ele pintou na França. Concluí que ele as desenhou tais como eram, embora não fosse um mero copiador, um retratista.

Em Van Gogh os objetos ganham a forma que assumem em sua alma. O essencial da coisa está lá. O resto ele inventa.  A pintura emerge da carga emocional que coloca nos traços, da técnica refinada, da explosão das cores.

No vento e na terra, 1991. Iberê Camargo
 
Visitei na sexta-feira passada (27/9) a exposição Xico, Vasco e Iberê, o ponto de convergência, na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. É uma mostra concisa e interessante para quem deseja ter uma idéia do trabalho desses importantes artistas gaúchos (embora nascido em Traun, na Áustria, Xico construiu sua vida e sua obra no Rio Grande do Sul).
 
Xico Stockinger (1919-2009) e Vasco Prado (1914-1998) foram escultores e Iberê Camargo (1914-1994), pintor.

Os três tiveram vidas longas que lhes permitiram construir uma obra singular. Cada qual a seu modo, marcaram a história da arte no Rio Grande do Sul e no Brasil.

Colegas de ofício e contemporâneos, eles manifestaram através do trabalho sua visão de mundo, sua inquietação existencial, sua razão de viver, suas esperanças.

Na série Gabirus, Xico faz da arte instrumento de denúncia, mostrando em bronze criaturas massacradas por condições sub-humanas de vida no Brasil, gente com carência alimentar e que, devido à subnutrição, tem seu desenvolvimento biológico comprometido. Ele desvela a solidão desses seres profundamente sofridos, desarmados e impotentes diante da realidade, como a figura da mãe com a criança morta ao colo.


Gabirus, bronze. Xico Stockinger. 1996

Gabirus. Xico Stockinger. 1996

De Vasco estão expostas algumas esculturas em mármore, bronze e madeira, centradas na figura humana, composta e decomposta em traços expressivos numa composição que perpassa o tempo. O ser humano com sua herança genética e cultural permanece através dos séculos. É o tema do escultor.

Acrólito. 1965/1994.
madeira e bronze.
Vasco Prado.
 
Acrólito, detalhe.

Iberê apresenta suas figuras sombrias e atormentadas, vocacionadas à solidão, à melancolia, ao sofrimento, com poucas frestas para a esperança (quase nenhuma).

Parece que, para Iberê, só pode haver magia e claridade nos pátios da infância. O resto é duro e áspero itinerário no desespero. Uma obra implacável com a condição humana.

Num país e num Estado onde a arte ainda é um luxo para muito poucos, é preciso saudar iniciativas como as da FIC em proporcionar acesso gratuito às exposições e outras atividades, o que confere um caráter social ao trabalho da instituição. Na sexta-feira havia muitos estudantes adolescentes fazendo visitas guiadas aos acervos. Recebiam informação e formação preciosas. A isso eu chamo esperança.

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photos: j.finatto

Iberê Camargo e a escrita da solidão:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/03/ibere-camargo-e-escrita-da-solidao.html
 

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Os esquecidos e os lembrados

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto.Aparados da Serra, RS.
 


Integração
 
tem dias que me sinto
tão em tudo
que me parece que não vou morrer
construo-me a cada instante
no próprio ar que respiro
me pouso longe
tranqüilo
onde no olho do pássaro
o vôo já está completo
onde no pouso do pássaro
fica vibrando a distância
que a ave traz inserida
ao repentino do vôo
duma iminente partida
são as pequenas coisas
que fazem a nossa vida
eu vivo o que deslimito *
 
                            Heitor Saldanha
 
Nunca entendi bem os motivos que fazem de certos escritores ilustres desconhecidos. Embora tenham um bom trabalho literário, permanecem na sombra. Ao passo que outros, com pouco ou nenhum mérito, são convidados para almoçar todos os dias no Olimpo dos deuses das letras e  ocupam generosos espaços nos meios de comunicação.
 
O livro, na minha visão, é um objeto espiritual, antes de qualquer coisa. Quanta ingenuidade! Na visão dominante, livro é negócio como outro qualquer. Existe uma luta de facão, no mundo editorial, para impor autores no mercado. Tudo ou quase tudo passa pelo departamento comercial.

O que se vê é que não há mais divulgação desinteressada em jornais, revistas e meios eletrônicos. Tudo tem um preço. A começar pela colocação de livros nas livrarias, onde cada setor tem um valor, dependendo da localização. Provavelmente existem exceções, poucas.

Torna-se cada vez mais comum ver detentores de espaços escritos/falados/televisados, na imprensa, propagandearem, sem nenhum pudor, suas próprias produções, de forma insistente. Apropriam-se dos veículos de informação como se fossem algo pessoal e não social.

Claro que há escritores de qualidade que conseguem furar o bloqueio. Mas o sistema em vigor é altamente excludente e privilegia a homogeneidade autoral em vez da diversidade. Trocam-se os nomes dos escrevinhadores, mas o texto é sempre o mesmo.

A tal ponto a mesmice se instalou, que dificilmente veremos surgir, hoje ou no futuro próximo, no Brasil, um escritor com a sintaxe genial de João Guimarães Rosa. O ambiente é totalmente desfavorável à literatura enquanto invenção.
 
Criadores de talento, em todas as áreas, amargam na úmbria do anonimato. O fenômeno não começou agora. Mas atualmente está muito pior do que há 20 anos.

O tempo, às vezes, faz justiça e resgata alguém que ficou esquecido na álgida furna. Mas o tempo é um senhor muito velho, de longas barbas de nuvem, e tem lá seus muitos lapsos de memória.

O que restou de democrático, no fim das contas, é a internet, pelo menos enquanto não vier um marco civil criando uma internet ruim para pessoas comuns como nós e uma outra, rápida e poderosa, para os grandes meios de comunicação.

Na literatura, como na vida, uma atitude é essencial: persistência. Um escritor apenas razoável talvez não se torne um escritor brilhante. Mas, com trabalho e coragem para evoluir, poderá melhorar muito o resultado de sua escrita.

O que importa é não publicar qualquer coisa, e não desistir nunca. Além disso, temos a eternidade pela frente, porque ninguém se importa mesmo.

Não falo essas coisas por mim, que já fui inscrito no livro-tombo do esquecimento em vida, escritor interiorano, cronista de temas pastorais, correspondente do fim do mundo. Falo por autores de real importância que não têm voz. E pelos leitores que não os conhecerão.

Lembro alguns deles, aqui do Rio Grande do Sul, mas existem outros: Jorge Jobim, pai de Tom Jobim; Heitor Saldanha, Henrique do Valle e Paulo Corrêa Lopes, todos excelentes poetas, todos encobertos pela névoa da indiferença.

Se você leu ao menos um deles, parabéns. Se não, procure descobrir em algum livro-velheiro, pois não são editados há muitos e muitos anos (já falei sobre cada um deles no blog). O que escreveram é da melhor qualidade, mas nenhum escritor, crítico, professor ou jornalista se ocupa deles (com raríssimas exceções). Por quê? Eu me pergunto e não sei a resposta. Simplesmente não estão entre os eleitos. Habitam a caverna dos esquecidos.

Alimento meu coração de leitor e minhas estantes com o que vasculho nos sebos. E que as musas não nos abandonem nunca.

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*A Hora Evarista, Heitor Saldanha. Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1974. p. 18.
 
Escrever em língua portuguesa:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/05/escrever-na-lingua-portuguesa.html