domingo, 7 de junho de 2015

Fama

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 

É possível
que ele seja
o maior poeta vivo
do edifício

trata-se, claro,
de mera
probabilidade:

o prédio é muito habitado
lápis e papel todos têm
sensibilidades contidas
trabalham na calada

mas até o momento
que se saiba
nenhum vizinho
lhe retira os louros
e ele pode dormir
tranquilo

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Do livro O habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Tratado geral das marés

Jorge Adelar Finatto 
 
photo: jfinatto


O rio noturno, povoado de estrelas, atravessa a cidadezinha em busca do mar. Na volta, traz o céu pintado de azul, conchinhas para guardar segredos e peixes para iluminar a vida.
 

terça-feira, 2 de junho de 2015

Verde

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 

Das minhas cinzas faço um verde
nesse verde nasce um menino
eu sou o menino que acompanha este menino

somos filhos da fome do dia
como os potros que morreram cedo
nossos irmãos

na nossa rua nenhum deus mora
eis porque choramos quando o dia acaba
ou brilhamos como duas adagas ao sol

nossa canção
a invasão dos dias
nossa matéria
o que está na sombra e não tem nome

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Do livro de poemas Claridade, Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Editora Movimento, 1983.

 

domingo, 31 de maio de 2015

A rosa vermelha

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 
Ultimamente aquela frase não saía da cabeça de Maria Eulália:
 
A morte é um preço alto a ser pago por uma rosa vermelha.
 
Desenterrou-a, como um raro diamante, do conto A Rouxinol e a Rosa,¹ do escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900).² A triste beleza dessas palavras tocou-a profundamente.
 
Algumas pessoas passam pela vida tão em silêncio que ninguém lhes presta atenção. Levam a existência tão distantes do amor que mais vegetam do que vivem. Vivem, por assim dizer, a cappella.
 
Em algum momento algo desmoronou dentro da nossa personagem. O mundo em volta foi perdendo a cor, o sabor e o sentimento. O calor humano começou a rarear.

Na ilha solitária onde foi habitar, Maria Eulália não tinha a quem oferecer e nem de quem receber uma rosa vermelha.
 
Pensou que não podia procurar alguém que não via há muitos anos para oferecer a rosa. Seria vista talvez como louca ou supercarente. Detestava a ideia de demonstrar que estava afogada em solidão.
 
Naquele dia de fim de maio, descobriu que, para algumas pessoas, o único jeito de receber uma rosa vermelha é a morte. Aí percebeu a terrível verdade escondida na frase de Wilde. E soube então, com lágrimas no coração, que ela fora escrita para gente como ela.

Nesse momento teve a certeza de que não estava disposta a pagar o preço. Secou os olhos, arrumou-se e foi até a floricultura onde comprou um buquê com doze rosas vermelhas que colocou no centro da mesa da sala de jantar.

Depois, como era sábado, prendeu o cabelo e foi limpar o apartamento. 
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¹Oscar Wilde. Contos Completos. Edição bilíngue. Editora Landmark, São Paulo, 2013.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

A barbárie nossa de cada dia

Jorge Adelar Finatto

Estação Hidráulica Moinhos de Vento. P.Alegre.  photo: jfinatto
 

A barbárie invadiu nossas vidas. A sociedade brasileira se habituou ao sangue derramado.

As agressões e assassinatos acontecem a toda hora nas ruas do país. A tragédia virou rotina nas páginas dos jornais, já não causa espanto. Virou fato normal e nada se faz para dar um basta na situação.

As desculpas são sempre as mesmas: faltam recursos para o combate ao crime, para construir prisões decentes, para a saúde, para a educação, para a moradia, para as creches, para o transporte, para o saneamento, para a alimentação, para o emprego, para a cultura, para os espaços de lazer e convivência. Mas curiosamente sobram - e como sobram! - recursos para a corrupção e a gestão temerária.

Ninguém se importa verdadeiramente, enquanto não acontece com alguém próximo. Acredita-se - ou finge-se acreditar - que a desgraça deve ser enfrentada como sendo algo pessoal. Não é.
 
A nossa capacidade de indiferença ultrapassou todos os limites. Vivemos uma realidade doentiamente individualista, escondidos atrás de grades e sistemas de segurança que nada resolvem.

Cada um recolhido no seu casulo de silêncio e medo, pouco se importando com o que acontece ao vizinho. É melhor nem saber.
 
O espaço público virou território de bandidos. À solta e agindo livremente, eles são os donos das nossas cidades. São eles que, de fato, governam dentro de suas leis próprias e de seus códigos perversos.
 
Os maus exemplos de conduta, que induzem todo o processo, vêm desde os mais altos escalões da vida nacional. A inexistência de um projeto de nação responsável, humano e solidário está levando o país à autofagia. O Brasil está se destruindo assustadoramente.

Enquanto isso, vende-se a ideia de que a vida vai melhorar com ajustes na economia, o que é uma visão distorcida das coisas. A vida do brasileiro só irá melhorar com educação que permita a construção de valores. Não é só uma questão de melhorar os números da economia, mas, antes e acima de tudo, de formar consciências.

Os bilhões e bilhões manejados pela corrupção demonstram que o problema primacial do Brasil está longe de ser a crise econômica, esta simples consequência dos desmandos. É, isto sim, a falta de competência, respeito e honestidade na administração do patrimônio público.

Reduzir os impasses do país, como se está tentando fazer, à mera questão econômica é, no mínimo, subestimar o poder de percepção, a inteligência e o sofrimento do povo.

A ausência de responsabilidade social e a indiferença pelo bem comum abriram as portas à selvageria e explodiram qualquer ideia de vida em sociedade em nosso país.

Teoricamente, vivemos todas as liberdades democráticas. Na prática, porém, nunca a vida foi tão agredida e desprezada.

Esta é a terrível herança que estamos construindo.
 

sábado, 23 de maio de 2015

Eu ia tomar o bonde amarelo

Jorge Adelar Finatto
 
photo: Museu Virtual Memória Carris. Prefeitura Municipal de Porto Alegre.
Imagem de José Luís Kieling Franco

 
Eu ia tomar o bonde amarelo
e dar um giro pela cidade
mas não existe mais o bonde amarelo
nem eu tenho dez anos

me engano ou essa cidade
mudou de endereço
se não, como explicar tanta gente
desconhecida nas ruas
e os amigos perdidos nas esquinas
do tempo do bonde?


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Do livro Claridade, Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Conversa na estação

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 
Sou como os trilhos cobertos de hera da estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes. Vive em mim o sentimento das chegadas e partidas dos trens, o vai-vem humano, o sentido da transitoriedade das coisas.

Digo sempre às magnólias do meu jardim: nunca esqueçam de mim. Me chamo Juan Niebla, músico de profissão. Meu instrumento é o bandoneón. Tenho 89 anos, sou cego desde os 16. Ditei essas linhas fugidias ao poeta Heitor dos Crepúsculos.

As sombras espalham suas sedas sobre mim. O pior cego, digo eu, é o que não consegue mais sonhar. Realidade sobeja desfaz a alma, empareda o coração.

À noite todas as coisas se dispersam. É quando o peso de existir se concentra em tons de solidão. Sozinho no escuro, altas horas, recordo minha mãe e o menino que eu fui. Eu mesmo acendo o fogo no fogão a lenha e preparo o café, que bebo fumegante com os biscoitos comprados na padaria de Mocita de La Vega.

Ligo o rádio elétrico na mesa da cozinha e fico escutando estações do Uruguai e Argentina. Nesse momento toca o Noturno nº 2 de Chopin, que eu amo. Nesses enquantos, convoco seres que povoam o território do oblívio: pais, irmãos, primos, primas, tios, tias, amigos, certa mulher, um perfume, pessoas que não estão mais aqui, mas é como se estivessem. Não quero deslembrar. Sou formado por essas criaturas.

Muitas vozes falam através de mim e do bandoneón, a voz dos ausentes. Sim.

Habito o interior de uma pintura, dentro de um lago profundo e silencioso. Ali me sento e lembro. E sonho também. E rezo nesses confins.

Vivo tão ausente que, às vezes, passo por mim e não me reconheço. Quando estou há muitos dias desaparecido, saio a me procurar, saber o que houve, por onde andei, o que fiz, com quem falei. As ausências.

Amanhece. Estou na velha estação de trem, sentado no banco de madeira, de peroba rósea, com o bandoneón ao colo. Espero o próximo comboio. Dizem que nunca mais virá. Eu tenho fé que sim, sim, um dia chegará, e quando isto acontecer estarei aqui para receber os passageiros com música.
 
Sou o músico da estação, fui contratado por concurso público em 1940, quando tinha 15 anos. Trabalho desde então na estação do trem de ferro. Atuo também na Banda Municipal e na Orquestra de Câmara de Passo dos Ausentes. Deus e os amigos sabem.
 
Sou cego e minha luz vem da música. A música é a minha claridade. O ambiente à minha volta começou a perder o foco. Um dia as formas e os contornos do mundo me abandonaram. Passei a ver borrões de luz. Até que veio a escuridão completa.

Trago recordações felizes de quando enxergava. A nossa casa entre as árvores na margem do Lago da Ausência. A face da minha mãe me olhando e rindo enquanto estendia roupa no varal.

Os pássaros e os peixes, mil cores. Lembro com clareza o azul e o branco.

O frio nesta época é excessivo. Recolho-me cedo da tarde ao Café dos Ausentes, que fica na estação. Passo horas conversando com o dono do estabelecimento, Nefelindo Acquaviva. Danado inventor de aparelhos voadores, seguidamente se espatifa no chão com seus inventos. É um milagre que ainda esteja vivo. Coisas voam sem parar na cabeça do meu amigo.

Ultimamente, Nefelindo anda mais contemplativo que de costume. Eu conheço esse silêncio. Nesse estado de espírito, limita-se a navegar pelos céus de Passo dos Ausentes no seu dirigível que pode carregar até três pessoas. Eu sou um dos costumeiros e raros passageiros.

Ninguém quer pôr a vida em risco numa geringonça voadora qualquer. Eu não ligo. Embarco no pássaro-invenção do amigo. Gosto de sentir o vento batendo na cara quando sobrevoamos o Vale do Olhar em direção ao Contraforte dos Capuchinhos. Um dia ainda vamos atravessar o oceano, ele promete. Eu acredito.

Converso muito, também, com o fantasma de Heitor dos Crepúsculos, suicida arrependido que perambula pela ruas e praças de Passo dos Ausentes. Um bom sujeito, uma das tantas almas perdidas que vagam pelos Campos de Cima do Esquecimento.

No cair da noite, volto pra casa com meu capote de lã azul-marinho, meu chapéu de aba, os óculo escuros, o bandoneón que levo nas costas como mochila e a bengala de bambu cor de açúcar queimado, construída especialmente para mim pelo honorável Akira Munefusa, sensível artista e poeta que vive numa cabana na beira do Lago da Ausência.

Anoiteço outra vez.

Vou tomar café com meus fantasmas.
 
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Do livro Histórias de Passo dos Ausentes. Registro na Biblioteca Nacional, Escritório de Direitos Autorais, nº 663.190, livro 1.277, f.. 316.