sábado, 3 de agosto de 2019

Horacio Quiroga num dia frio

Jorge Finatto
 
photo: Horacio Quiroga. Wikipédia.
 
Um velho rádio de válvulas que funciona como se fosse ontem. Um pouco do noticiário, desligo. É muita realidade demais. Um dia frio, muito frio, nesses inícios de agosto. Com a bênção de um fogão a lenha. Depois, no toca-discos, a Suíte Popular Brasileira, de Heitor Villa-Lobos. 
 
Lendo o Diário* do jovem Horacio Quiroga (1878-1937), a viagem de Montevideo à Europa, de navio, 24 dias entre céu, mar e saudade. Os dias passados em Paris, assim assim. O olhar do escritor em formação:
 
Abril, 30, 1900. 2.30 p.m. En Notre Dame. La misma impresión general que el Pantheon, La Madaleine, y de todos los monumentos de París, muy pobre, debido al color oscuro, sucio y manchado de todas las paredes. El interior, gótico puro (...) Estoy en la cúspide de Notre Dame, después de subir 345 escalones en caracol. Lo primero que me ha llamado la atención han sido los canalones para el agua - en forma de pescuezo de bicho raro,  rectos e avanzando a la calle (...)
 
A falta de dinheiro torna sem graça os dias vividos em Paris:
 
Sábado, 09, junio. 9 p.m. Un poeta griego de la decadencia dijo: 'La patria está donde se vive bien.' Es un gran pensamiento. Por qué he de decir yo que no hay como París, si no me divierto? (...) estoy en lo verdadero diciendo que Montevideo es mejor que París, porque allí lo paso bien; que el Salto es mejor que París, porque allí me divierto más.
 
A literatura é feita por gente de carne e osso, que sente frio, cansaço, alegria, dor de dente, fome. Às vezes tudo junto. Os livros são depoimentos de passagens pelo mundo. Embora às vezes não pareçam. Eu desconfio de autores que não esbarram nessa coisa difícil, faminta, suja, flébil, encantadora.

A morte é só um suspiro. Uma lágrima que seca. Impostergável ausência. Depois passa.

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* Diario de París. Horacio Quiroga. pp. 58/91. Faro Ediciones. Montevideo, 2018.
 

quarta-feira, 31 de julho de 2019

O rinoceronte branco

Jorge Finatto
 
Crédito será dado tão logo identificado o autor. fonte: internet.
 

1. ESCREVER é o oficio mais solitário do mundo. Escritores são seres isolados. Vivem longe dos homens. Como solitários viajantes do universo que nunca mais voltarão à Terra, precisam escrever para não esquecer.
 
2. Tive uma namorada, na adolescência, que reclamava porque eu não fazia sexo com ela. Dizia que eu era paternalista. Mas eu achava  tão bom ficar conversando e olhando pra ela que nem precisava sexo. Era talvez um modo diferente de transar. Mas ela não entendeu assim. Não demorou muito, terminou comigo, claro. E eu fiquei sem aquele sexo gostoso.
 
3. Observei e fotografei muitos seres e lugares. Posso dizer que a coisa mais linda que vi nessa vida foi o rinoceronte branco.

E a mais impressionante: o silêncio de Deus.
 
4. Já morri e ressuscitei várias vezes. Espero continuar assim: morrendo de vez em quando; ressuscitando sempre.
 
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O rinoceronte branco está quase extinto por caça humana.
 

domingo, 28 de julho de 2019

Iniciação à obra de José Gurvich

Jorge Finatto
Texto e photos
 
Reprodução do ateliê de José Gurvich. Museu J. Gurvich. Montevideo.
photo: jfinatto
 
O Museu Gurvich, em Montevideo, é um belo espaço na Peatonal Sarandí. Ocupando um antigo edifício restaurado, apresenta a obra de José Gurvich (1927-1974), o notável artista uruguaio de origem judaica. Nascido na Lituânia,  aos cinco anos foi com a família para o Uruguai, fugindo da vida difícil e da perseguição aos judeus. Na nova pátria a família humilde busca adaptação, o que não demora a acontecer. Na escola primária, o nome original do menino - Zusmanas  Gurvicius - é alterado para José Gurvich. Ele começa a desenhar muito cedo.
 
Em 1942 ingressa na Escola Nacional de Belas Artes e, em 1944, passa a frequentar o ateliê do pintor e mestre Joaquín Torres-García, que o influencia e inspira. Participa de várias exposições coletivas do grupo do ateliê, no qual depois leciona. Entre 1954 e 1956 viaja para a Europa e Israel. Visita museus, estuda e pinta. Primeira exposição na Europa, em Roma, na Galeria San Marco.
 
Em Israel vive e trabalha como pastor no Kibutz Ramot Menashé, dedicando-se também à sua obra plástica. Expõe na Galeria Katz em Tel Aviv. Casa-se em 1960 com Julia Añorga ("Totó"), nascendo da união, em 1963, o único filho, Martín José. Em 1967 expõe em Montevideo, ganhando reconhecimento como importante artista nacional. Radica-se em Nova York em 1970 e desenvolve intensa atividade. Morre aos 47 anos, de ataque cardíaco, em 1974.
 
Vale a pena embarcar num avião no Brasil e ir a Montevideo só para conhecer o Museu Gurvich. Estive lá por ocasião da inauguração em novembro de 2015. Daquela vez, com o ambiente movimentado e ainda se ajeitando, não tive uma idéia clara do trabalho. Agora, em visita mais tranqüila e demorada, conheci melhor.

José Gurvich é um criador de mundos como todo grande artista. Alguém que surpreende com sua capacidade de invenção e de compor narrativas pictóricas e esculturais. Sua obra tem grande poder de comunicação. Emoção e técnica andam de mãos dadas. Ele alcançou um requinte e uma simplicidade que são fruto de muito estudo e trabalho.

Duas séries, entre outras, servem para ilustrar o tamanho deste artista: a das narrativas bíblicas e experiência judaica, incluindo os terríveis pogrom (expulsão dos judeus de seus lares e países na Europa). E as pinturas que produziu enquanto viveu no bairro Cerro, em Montevideo, retratando seus personagens, suas vidas simples e sua afetividade.
 
Não sou crítico de arte, digo o que sinto diante do que vejo. E José Gurvich me emociona. Tem originalidade e vigor. Fiz algumas fotos dos quadros e esculturas. Um dia para visitar o museu é pouco. Pretendo retornar e rever o universo do artista.

Ganharíamos muito se uma exposição de Gurvich viesse ao Brasil.
 
photo com reflexo.
 
 
O abraço. Cerâmica, c. 1960.
 
detalhe do quadro Pogrom, 1969.
 
Pareja (casal). Óleo sobre gesso e madeira. 1965

A anunciação de Sara. têmpera sobre papel. 1969.

Museo Gurvich.
 

sábado, 27 de julho de 2019

Um futuro talvez

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto

 
O QUE EU penso da situação do Brasil? Considero uma das piores que já testemunhei. Não vejo trabalho suficiente neste governo nem projetos capazes de construir um país mais justo e humano. Não há sequer uma retórica razoável por parte de quem dirige a nação. Fala-se muito, e mal, o tempo todo. E pensa-se pouco.

O governo da hora, além de não traçar um caminho claro para tirar o país do abismo, mostra-se incapaz de acender a esperança da população. Sinto-me profundamente frustrado com o rumo das coisas. Como milhões de brasileiros desempregados, desalentados e deprimidos, que esperavam algo melhor. 
 
Não me coloco entre os que defendem o atual governo (como poderia?) nem entre os que o atacam ferozmente como se fosse a quintessência do mal. Por quê? Porque ele é a óbvia conseqüência de desgovernos anteriores. Os últimos governos prepararam o terreno para a terrível realidade econômica e social que vemos hoje.

A discussão sectária que se trava não faz nenhum sentido. Não existem angelitos nem de um lado nem de outro. Enquanto uns e outros se digladiam, o Brasil afunda e o povo sofre. Precisamos avançar.
 
Impressionante a força do obscurantismo entre nós. Mas eu acredito no poder dos bons exemplos e dos bons gestos. Nos indivíduos pensantes, sensíveis e solidários que são agentes de transformações humanizadoras à margem da política tradicional. Juntos podem alguma coisa. Talvez com eles seja possível um futuro. 
 

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Dançarino cubano em tarde lilás

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto

 
BAILARINO CUBANO desliza passos voláteis na Peatonal Sarandi ao som de rumbas, merengues e salsas. O pequeno aparelho de cd encostado na parede, o cesto colocado em frente para recolher as doações dos passantes. A tarde é fria, o céu é lilás (nunca vi um céu assim antes).
 
O dançarino tem uma graça natural e parece não tocar o chão com seus pés mágicos. O corpo leve evolui em trejeitos e meneios encantadores. A ginga e a alegria dos movimentos mostram que é possível levitar acima da dureza da vida e da tristeza.
 
É bom caminhar sem rumo por essas ruas de inverno cobertas de plátanos em Montevideo. Esta cidade onde a vida dança e acontece longe dos shoppings.

Ciudad Vieja. foto: jfinatto
  

segunda-feira, 22 de julho de 2019

Calles de Montevideo

Jorge Finatto
Texto e fotos

Mirada de Eduardo Galeano. Peatonal Sarandi. photo: jfinatto
 
Estávamos no tradicional Café Facal, na Av. 18 de Julho, tarde de domingo. Quando nos levantamos para ir embora, uma senhora entrada em anos (como se dizia antigamente) disse:
 
- Que pasen bien en Uruguay!
 
O bem que faz ouvir um augúrio assim de uma pessoa estranha, mas que podia ser nossa mãe! A fraternidade dessas palavras sensibiliza o coração do estrangeiro.
 
Os idosos andam em toda parte, de dia e à noite. São respeitados e acolhidos. É comum vê-los sozinhos ou acompanhados, na rua, nos ônibus, cafés, etc. Não têm medo.
 
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Li que o Uruguai está com um problema: a baixa natalidade. A população de pessoas velhas é grande. Daí a preocupação de um psiquiatra do Ministério da Saúde local com relação à legalização da maconha. Entende que devia ser proibido o consumo da droga para adolescentes, legalizando só a partir dos 21 anos pelo menos, e não 18 como prevê a lei. Segundo diz, a maconha influi negativamente no aprendizado, dificultando a apreensão de conteúdos. Por isso, sendo a juventude um capital humano escasso por aqui, corre-se o risco de prejudicá-lo, e ao futuro do país, com o uso da droga.
 
Lembrou, também, que a legalização é só para uruguaios e não se aplica aos chamados turistas canábicos.
 
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Cinemateca de Montevideo
 

En algún lugar de Montevideo...


Sigmund dá boas-vindas


Pocitos


Fuente de los amores...


Esse tronco de plátano foi desenhado por Van Gogh...
 

domingo, 21 de julho de 2019

Charla de Montevideo

Jorge Finatto
 
grafite. Montevideo. o nome do autor será registrado tão logo informado ao blog.
photo: jfinatto


MONTEVIDEO, a cidade do Conde de Lautréamont, do doce de leite, do churrasco, do indefectível mate, de Juan Carlos Onetti, Juan José Morosoli, Galeano e Benedetti, do Teatro Solís, do vinho Tannat, de Nacional e Peñarol, de Torres García. Da Rádio Babel, do Café Brasilero, da gentileza no trato cotidiano, de todas as crianças na escola.
 
Mas é, sobretudo para nós brasileiros, a cidade onde se pode caminhar pelas ruas sem o risco iminente do balaço na cabeça, da facada, do seqüestro, do assalto,  do atropelamento, do estupro. Enfim, um outro planeta pra quem vive no Brasil.

Ostentação, luxo? Nada. As pessoas vivem com a dignidade de quem tem o indispensável. O treinador da seleção nacional de futebol, Óscar Tabárez, 72 anos, é professor de escola pública. Ouvi-lo falar nas entrevistas é uma aula de educação e civilidade. Para ele, antes de ser jogador é preciso ser um bom ser humano. Só convoca atletas que tenham valores éticos. Tão diferente de outros treinadores... Por aí também se explica um país.

Um país como o Uruguai que tem qualidade de vida e cujo governo se preocupa com as pessoas. Não é um paraíso. Mas é um lugar muito mais humano do que outros bem perto daqui, e de longe também. O Uruguai é exceção num mundo profundamente conturbado. Não apenas por coisas como a legalização do aborto e do consumo (regulamentado) de maconha, mas pela implementação de direitos sociais. Conversando com gente na rua e nos táxis, sabe-se que o direito à saúde é uma realidade.

Alguém dirá que o fato de ter uma população pequena (3,5 milhões de habitantes, sendo 1,5 milhão em Montevideo) torna o bem-estar social uma obrigação fácil para o governo. Não é assim. Só a continuidade de gestões sérias e comprometidas com avanços alcança tais resultados. É bom ver isso de perto, confirmando a impressão que tive em outras viagens. A constatação de que um estado social e democrático é possível na América do Sul. O Uruguai é exemplo.

obra do grande artista plástico Torres García. Museu Torres García. Montevideo.
photo: j.finatto