quarta-feira, 15 de abril de 2020

O Brasil cara a cara

Jorge Finatto

As classes média-alta e rica do Brasil descobriram, enfim, que existem pobres no país. E que esses indivíduos fazem parte daquele contingente ao qual a filosofia, as artes, as religiões e a ciência chamam de seres humanos. Descobriram que essa gente vive em péssimas condições, sem moradia digna, sem alimento, sem água tratada, sem esgoto, sem saúde, sem escola, sem emprego. Vivem de teimosos.

Foi preciso um vírus maldito para mostrar o Brasil aos brasileiros. Maldito, sim, mas democrático, porque atinge tanto em cima como embaixo da pirâmide social. Então os "bem de vida" percebem que não adianta ter dinheiro e plano de saúde, porque não terão vagas nos hospitais nem respiradores se o contágio explodir. Nem jatinho adianta, porque não tem pra onde voar, as fronteiras do mundo estão fechadas.  

O Brasil dos abastados vê que o "fique-em-casa" não funciona pra essa gente que vive à margem de tudo e literalmente (e não literariamente) não tem o que comer, se não sair à rua pra fazer um biscate. São pessoas até há pouco invisíveis para o povo de cima. E elas têm potencial de, saindo em busca da sobrevivência, contaminar-se e passar o covid-19 adiante, fazendo o já precário sistema de saúde vir abaixo. Esses seres humanos, até há pouco ignorados, não têm celular nem notebook. Nunca poderão fazer "home office" nem chamar um "delivery" pra matar a fome. Nem assistir antigas partidas de futebol, ler bons livros ou curtir belos filmes e shows em casa.

Isto sem falar dos 13 milhões de desempregados esperando desesperadamente uma oportunidade de trabalho, uma porta que se abra para voltarem a viver.

O Brasil rico defronta-se com o Brasil dos abandonados e não sabe o que fazer, porque nunca se interessou seriamente por eles.  E repete "ad nauseam" o mantra "fique-em-casa" como se isso pudesse salvá-lo em sua arca de egoísmo. Parece não se dar conta de que, para os pobres que não têm nada, e nem a quem recorrer, o mundo explodiu faz tempo, e o coronavírus é só mais um personagem na tragédia diária de um pais sem rumo  e profundamente desumano. 

sábado, 11 de abril de 2020

Pietá com véu

Jorge Finatto
 
photo: Samuel Aranda. Prêmio World Press Photo 2011
 
 
A DOR HUMANA não tem fim.
A mulher recolhe em seus braços o corpo do homem que sofre.
Pietá moderna, o véu encobre-lhe a face, mas não esconde o gesto.
Mãos de zelo amparam o sangue e a lágrima.
Tudo explode ao redor.
Esses braços re-velam a proteção consoladora, a redenção do amor humano.
Resgate da urgente ternura, templo da compaixão.
O que essas mãos salvam está muito além do que as palavras podem.
O véu já não oculta, revela.

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Texto inspirado na fotografia do espanhol Samuel Aranda.
Aranda foi o vencedor do World Press Photo 2011. Mais importante concurso mundial de fotojornalismo, a imagem escolhida foi a de uma mulher de véu integral a abraçar homem ferido durante a revolta popular no Iêmen. O resultado foi anunciado em Amsterdam pelos organizadores do evento. A  fotografia foi escolhida entre mais de 100 mil. Na edição, foram analisados  trabalhos de 5.247 profissionais de 124 países.
Fontes: Agência Lusa e jornal Expresso, Portugal.
 
Este texto publiquei em 11 de fevereiro de 2012. Reproduzo, porque mais do que nunca a compaixão e o amor  são urgentes no mundo. Estão consagrados na Ressurreição de Cristo.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Nos ventos de Ciara

Jorge Finatto

"A força de Ciara fez pelo menos três voos comerciais entre Nova York e Londres, com vento de cauda, concluírem a viagem em menos de cinco horas. Um recorde para aeronaves normais desde que o lendário Concorde francês fez o mesmo trajeto em cerca de três horas." (Rádio França Internacional, 10.02.2020)*
 
 
Dois homens registram imagens das ondas formadas pela tempestade Ciara no Lago de Constânça, na localidade de Bregenz, na Áustria.
Dois homens registram imagens das ondas formadas pela tempestade Ciara
no Lago de Constança, na localidade de Bregenz, na Áustria.
               DIETMAR STIPLOVSEK / APA / AFP   
 

A TEMPESTADE CIARA nos apanhou de frente naquela segunda-feira, 10.02.2020. Na gare de Saint Gallen, Suíça, fomos informados de que o trem que nos levaria a Füssen, última cidade da Rota Romântica, ao sul da Alemanha, estava fora de serviço. Deveríamos pegar o próximo, duas horas mais tarde, mas não havia certeza de que chegaria à estação.
 
Izabel e eu estranhamos. Em se tratando do serviço federal de trens suíços, que prima pelo cumprimento de horário, era algo incomum. Motivo: a chegada da Tempestade Ciara com ventos de até 200 km/h afetava o noroeste europeu com inundações, falta de energia elétrica e outros estragos, atingindo aeroportos, estradas e ferrovias, além de causar feridos e mortos.
 
Notícias na tv da estação diziam tratar-se da maior tempestade do século em termos de países atingidos. Embarcamos no próximo trem e, algumas baldeações depois, acabamos descendo na estação de Lindau, a bela cidade-ilha dentro do grande Lago Constança (alimentado pelo Rio Reno, situa-se entre Suíça, Áustria e Alemanha). Terminou ali nossa viagem a bordo do trem, a tempestade não permitia continuar.

Duas horas depois, ao fim da tarde, apareceu um ônibus para levar os passageiros adiante. Mas o adiante não era Füssen. Numa outra cidadezinha, nos trocaram de ônibus e fomos em frente até outra localidade. Lá nos largaram numa estação de trem. A maioria das linhas fora de serviço.

Havia, porém, um trem que partiria às 21h em direção ao sul da Bavária. Embarcamos. Éramos só nós a bordo. O maquinista teve a gentileza de nos avisar que, em razão do mau tempo, só poderia ir até uma tal cidade. Lá poderíamos pegar um ônibus para Füssen.

Já era noite escura quando descemos do comboio com as duas malas em direção à estação rodoviária, localizada a uns 100 metros da ferrovia,. Estava fechada. Fazia frio, ventava e chovia. Exaustos, molhados, pensamos em desistir e procurar um hotel naquele lugar cujo nome não me lembro. Mas Deus é pai.

De repente aparecerem três mulheres e um homem. Protegeram-se da chuva sob a cobertura da plataforma, como nós. Vendo nosso estado pluvioso e a nossa cara de desamparo, se dispuseram a ajudar. Solícitos e solidários, telefonaram para o hotel em Füssen para ver se havia transporte para nos resgatar (estávamos a 80 km de distância). Não havia.

Por fim, informaram-se por telefone com um taxista sobre o valor que cobraria para nos levar ao destino. 100 euros. Aceitamos. Dali a dez minutos chegou o táxi e, enfim, à uma da madrugada entramos no hotel.

Desde que começou a função, Izabel e eu decidimos que nenhum perrengue abateria nosso ânimo. Assim foi durante aquelas 14 horas. A ajuda daqueles alemães fortaleceu a nossa fé (um tanto enfraquecida) no ser humano. Não ficaram indiferentes, não se omitiram ao ver aqueles pobres pintos molhados na noite de tempestade, estrangeiros numa plataforma vazia.
 
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* RFI

segunda-feira, 6 de abril de 2020

É preciso recomeçar tudo

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto. Montreux.
 

É preciso recomeçar tudo
traçar o novo amanhecer
nas ruas da cidade

é preciso enterrar os mortos
varrer os destroços
abrir as portas para o sol
fazer seu trabalho

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Poema do livro O Fazedor de Auroras. Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
 

segunda-feira, 30 de março de 2020

Desviando do vírus

Jorge Finatto
 


O desejo de visitar Arles e Saint-Remy, na Provence, nasceu em 2014. Em setembro daquele ano o Museu VAN GOGH, de Amsterdam, publicou em seu facebook o meu poema "Composição", do livro O Fazedor de Auroras, editado pelo Instituto Estadual do Livro em 1990. Fiquei muito feliz e admirado. E tinha motivo: colocaram como "ilustração" do texto a pintura "Jardin de Saint-Paul de Mausole", de Van Gogh.
 
O poema é uma homenagem a Van Gogh e uma declaração de amor à pintura. Pois bem, no início desse mês, descansando uns dias em Lisboa, depois de percorrer a Suíça, Alemanha e Áustria, tinha viagem programada a Marselha. Do aeroporto iríamos - Izabel e eu - de trem a Arles, onde o pintor realizou a culminância de sua obra. Aí incluídas as pinturas feitas no Monastério-sanatório de Saint-Paul de Mausole, em Saint-Remy, onde viveu e se tratou entre maio de 1889 e maio de 1890.
 
Ocorre que o famoso coronavírus Covid-19 tinha chegado lá antes de nós. Um dos aeroportos mais movimentados da França, resolvemos não correr o risco de ser contaminados. Desviamos a rota e acabamos nos Açores (outro sonho antigo).
 
Desistimos? Claro que não! Iremos atrás de Van Gogh depois que a tempestade passar. E vamos sentar nesse jardim onde, um dia, ele esteve com seu cavalete e criou este quadro com a paleta encantada.
 

sábado, 21 de março de 2020

Tempo de quaresmeiras em flor

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto
 

Só agora me dou conta de que as QUARESMEIRAS explodiram em lilases, rosas e brancos, anunciando a chegada do outono e o advento da Páscoa. A nova estação chega cheia de significados
(fala de Ressurreição e de urgentes renascimentos).
 
As flores das quaresmeiras têm tudo a ver com sentimento claro, respirar limpo, passar distante da morte.
É o que eu sinto e penso nesse instante vendo-as vibrar na claridade, apesar da densa sombra que se abate sobre o Brasil e o mundo
(o bicho invisível e coroado nos remete aos confins do isolamento).
 
Estamos perplexos, temerosos, impotentes, diante da realidade que nos assola. As ruas estão vazias.
Um estranho silêncio percorre a cidade.
 
O bicho é pequeno, intocável, inodoro, inaudível, mas é suficiente para danar a minha/nossa vida. Capaz de sugar nossa alegria, nosso trabalho, nossa paz, nosso sangue, nossos sonhos.
 
Mas olhando as quaresmeiras em flor, nesta hora e neste lugar (pequeno lugar perdido no planeta: minha casa),
ao menos nesse efêmero instante,
a morte e o desespero não têm nem terão guarida.
 
As flores das quaresmeiras são o oposto da escuridão
(e do abandono)
a delicadeza dos ramos e das pétalas remete a um mundo outro.
Um mundo de recolhimento e silenciosas caminhadas por estradas interiores.
De solidária espera.
 
Um tempo de quaresma (quarentena, quadragésima).
De esperança num novo renascimento para todos.
 
Tempo de resistência
(como sempre)
de atravessar a ponte
(sobre o rio das mortes)
e chegar vivo do outro lado.
 

terça-feira, 17 de março de 2020

A peste

Jorge Finatto

Se há uma lição que se pode tirar da pandemia do novo coronavírus é a de que estamos muito atrasados em matéria de empatia. Os países, como os indivíduos, vivem longe da solidariedade, só pensam em si. É a lei do cão. Vive-se como se não houvesse outros habitantes no edifício, no bairro, na cidade, no planeta.
 
Então não surpreende a maneira simplista como se fecham fronteiras ao invés de buscar soluções conjuntas. O modo pouco civilizado com que muita gente tem ido aos supermercados com sede de armazenar víveres, gerando falta de produtos. A ânsia de salvar a própria sobrevivência num momento em que a exigência é olhar para o lado, enxergar o semelhante, dar e receber ajuda.
 
A peste fere de morte a noção de civilização, esta frágil construção.
 
O noticiário maciço tratando da doença 24 horas por dia serve para informar, mas serve também para espalhar o medo. Há alarme no jeito como se trata do assunto, além do alarme imanente. E todos dizem que se deve evitar o pânico. Está bem... 
 
É difícil ficar calmo quando a ordem é: "não saia de casa, não aperte a mão, não beije, não abrace, guarde distância mínima de um metro e meio de outra pessoa, evite encontros mesmo entre familiares etc.". Há uma imposição de confinamento e solidão que se diz indispensável para quebrar a cadeia de transmissão da doença.
 
A peste mexe fundo com a emoção das criaturas e com a alegria de viver. Afasta-nos e prova que, por mais evoluídos que nos consideremos, um simples vírus bota tudo abaixo. Somos vulneráveis. Muito mais do que supõem nosso egoísmo e nossa vaidade.
 
Talvez, no fim de tudo, reaprendamos a valorizar a convivência, a importância do outro, do toque, do encontro. O inefável prazer de poder sair na rua outra vez.