segunda-feira, 11 de maio de 2020

Um homem só

Jorge Finatto

photo: jfinatto

Escutei o relato de um médico, numa entrevista de rádio, a respeito de sua experiência com pacientes da covid-19. Trabalha num hospital de Porto Alegre. Disse que um paciente com cerca de trinta anos estava internado para tratamento de um câncer agressivo. Perdera a capacidade de falar em razão disso. 

Durante a internação apresentou sintomas que o levaram ao teste do novo coronavírus. Enquanto aguardava o resultado, estava em isolamento no quarto há alguns dias.

O médico contou que, através de gestos, o homem fez um único pedido. Queria poder ver a filha. Foi-lhe dito que, naquele momento, isto não poderia ser diante do risco de contágio. De modo que teria de ficar só por enquanto.

Eu fiquei impressionado e triste com a história.  Percebi como se fosse minha a enorme solidão daquele jovem submetido a tanto sofrimento. Pensei numa palavra que pudesse levar-lhe algum conforto. Não encontrei.

Quem já passou por hospital sabe que contamos minuto após minuto o tempo que falta para melhorar e ir embora. O único consolo que nos resta é a presença das pessoas que amamos. Só esta presença e a fé podem nos fortalecer.

Estou rezando por aquele homem, que Deus lhe dê ânimo e forças para vencer. Que nesta hora tremenda Deus ampare os doentes espiritualmente, não os deixe esmorecer, e salve a todos.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Hermann Hesse em Montagnola

Jorge Finatto

photo: JFinatto. Museu Hermann Hesse, Montagnola, jan. 2020.

Descrevi e louvei muitas vezes tudo isso. Gastei centenas de folhas de bom papel de pintura, muitos tubos de tinta, para provar minha veneração pelas velhas casas e telhados de madeira, muros de jardim e bosque de castanheiros, montanhas próximas e distantes, com minhas aquarelas ou bico de pena. Plantei aqui muitas árvores e arbustos, um pequeno bambuzal na fímbria do bosque, e muitas flores. (Quarenta anos de Montagnola, Hermann Hesse

Em janeiro último viajei a Lugano, no cantão (estado) do Ticino, sul da Suíça (a Suíça italiana), com o objetivo principal de conhecer o lugar onde viveu e escreveu Hermann Hesse (1877-1962). O Museu Hermann Hesse, na pequena Montagnola, abriga o acervo deste que é, segundo dizem, o autor de língua alemã mais lido no mundo. Nascido em Calw, Alemanha, tornou-se cidadão suíço em 1924. Em 1946 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura.

photo. J.Finatto. Museu Hermann Hesse, jan. 2020

Montagnola é um lugarejo pertencente ao município de Collina D´Oro, situado nas cercanias de Lugano. Chega-se lá de ônibus (que tomei junto à estação ferroviária de Lugano) após cerca de 15 minutos de íngreme subida, vislumbrando-se, do alto, o belo Lago Lugano e suas montanhas na fronteira com a Itália.

O museu funciona na Torre Camuzzi, ao lado da Casa Camuzzi onde o poeta e escritor viveu em um apartamento entre 1919 e 1931. Foi viver em Montagnola "em busca de refúgio", sendo na época um homem "na flor da idade".²

Depois, mudou-se para a Casa Rossa, perto dali, que lhe foi oferecida por um mecenas como morada permanente - vitalícia - até sua morte, em 1962. Ambas as propriedades onde ele viveu são privadas, não podendo ser visitadas.

photo do escritor. Museu Hermann Hesse, Montagnola.

A vista desde Montagnola é belíssima. O lago, as montanhas, as videiras, jardins, quintais e demais elementos enchem os olhos. Pacifista e naturalista, Hesse ficou também conhecido pelas longas caminhadas que costumava fazer. Diz-se que, às vezes, pelado.

Antes de chegar ao museu existe um café literário com livros dele, mas não só, e com publicações de suas pinturas. O cappuccino é ótimo, assim como os doces e sanduíches. A senhora que atende no local é muito querida.

pintura de H. Hesse

Conhecer Hesse pintor (aquarelista principalmente) foi pra mim uma grata descoberta. Não conhecia este seu lado. As pinturas são muito bonitas.

Entrando no museu encontram-se objetos que marcaram sua vida e obra, como uma velha máquina de escrever, edições originais de seus livros, móveis, fotografias, quadros, correspondências, chapéus, aquarelas, etc. Alguns instrumentos lembram que ele se dedicou ao cultivo de plantas, árvores, flores, hortaliças. Foi um jardineiro amoroso do ofício.

Existe, além disso, um pequeno cinema no porão que mostra um documentário sobre a vida do escritor em italiano, alemão, inglês e francês, com audioguides (em alemão e italiano). No museu se acha um amplo programa de leituras, palestras e concertos que ocorrem ao longo do ano.

máquina de escrever de H. Hesse. photo: JFinatto

A trilha "Nos rastros de Hermann Hesse" passa por locais em que o escritor gostava de estar e contemplar a paisagem de Collina d'Oro. O ponto de chegada da caminhada de cerca de meia hora é o túmulo de Hesse no cemitério de Montagnola-Gentilino.

O autor de O Jogo das Contas de Vidro diz muito à alma de pessoas sensíveis. Não li toda a sua obra, mas o que li foi suficiente pra saber que se trata de um grande escritor, alguém preocupado com a vida. Teve sua obra proibida na Alemanha nazista. Sua voz aproxima nosso coração das coisas simples e profundas, fugindo dos estereótipos, da mercantilização e da coisificação do ser humano. É um escritor que escolhe sempre o silêncio em meio à gritaria, a contemplação, o mergulho em viagens espirituais. Para isso contribuiu seu conhecimento de culturas como as da Índia e China.

photo: JFinatto. jan, 2020. Museu H. Hesse

Em tempos tão duros, ler Hermann Hesse, travar conhecimento com seu pensamento e com a beleza de seus escritos, é um antídoto contra a mediocridade, a grosseria, o autoritarismo, a estupidez e a falta de esperança.

Agradeço a Regina Bucher, diretora da Fondazione Hermann Hesse e do Museu, pela gentileza da atenciosa recepção.

objetos do escritor. photo: JFinatto, jan, 2020

Tanto quanto me lembro, sempre encarei a função do escritor sobretudo como memória, como não-esquecimento, como preservação do efêmero na palavra, como retorno do passado através de apelos e carinhosa descrição. (idem, ibidem) ³

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1, 2, 3  Pequenas Alegrias. Hermann Hesse. págs. 5 e 305. Tradução: Lya Luft. Editora Record, Rio de Janeiro, 1977. 

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Alberta de Montecalvino

Jorge Finatto

photo: jfinatto

VENEZA é o sonho de toda Colombina.

Eu passei a vida em Passo dos Ausentes. O que é esse lugar? Um território sitiado pelo vento. A neblina, o frio e a solidão povoam a aldeia o ano inteiro.

Habito com amargura e ironia esta estação de fim de mundo.

Casei-me aos 14 anos com Dom Alberto de Montecalvino, o Solitário da Biblioteca. Contrato de gaveta. Era eu de pobre origem. Estudava as primeiras letras e ajudava no serviço de casa. A mãe, viúva de quatro filhos, lavadeira, no inverno vendíamos lenha na porta das casas.

Na época Dom Alberto contava 69 anos. Desde aquele quando, passei a viver neste austero castelo de basalto e vidro. Hoje tenho 70 anos, sou deveras viúva e, às vezes, me perco nos salões da memória. As intermitências.

Daqui de cima, na larga janela da biblioteca, avisto o Contraforte dos Capuchinhos. Gosto muito dessa visão porque por ali é que se vai embora de Passo dos Ausentes. Mas nunca passei naquela longa estrada. Dom Alberto me pediu que jamais o fizesse. Os medos. Atendi o bom homem. Passaram-se os anos.

O muito amado do meu coração é Pedrolino. Dom Alberto sempre soube, suportou, era como um pai pra mim. O meigo Pedrolino. Amoroso e fiel. Seu amor é casto e resignado. Tem as delicadezas, carrega bosques de ilusão na alma gentil.

Arlequim é o senhor das labaredas.

Inconstante e fútil. Nunca vem ao meu coração. Tem meu corpo, jamais minha alma. Com ele muito me rio, é engraçado, leviano. Incapaz de amar alguém além de si mesmo. Não tem sentimento.

O corpo tem fome e a fome, seus apetites.

Arlequim é malicioso, egoísta, por isso sabe agradar quando quer. Pedrolino é terno, quase um menino, vai direto ao assunto. Não conhece as sutilezas.

Quem pudera reunir, na mesma criatura, as gratas virtudes. Mas o mundo humano foi costurado imperfeito, eu sei. Tal felicidade ninguém merece.

Ambos os dois, Arlequim, o devasso, e Pedrolino, o amado, são a minha devoção. Cada qual no seu momento.

Sou a Senhora da Biblioteca. Viúva mui constante em negras vestes de luto. Os respeitos a Dom Alberto. Tenho a minha idade, conheço os regulamentos, mas só os cumpro à minha vontade. Cultivo a fé, no discreto. Véu de seda e missal.

Não me julguem tão depressa. Poupem-me da moral de almanaque.

De metafísica e solidão o cemitério está cheio. Conheço os reveses.

Eu vivo os enquantos.

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Texto revisto, publicado em 7/7/2011

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Volta ao mundo num barco de papel

Jorge Finatto

Arroio Tega no Moinho da Cascata, Caxias do Sul.
photo: Nereu de Almeida, ClicRBS


O Arroio Tega passava no fundo do quintal da casa onde nasci. Entre os pinheiros e a horta, me iniciei na arte da navegação em barcos de papel, que construía com folhas de caderno escolar.
 
O Tega era uma extensão do nosso pátio e um caminho de água doce que se ia pelo mundo. Nele partiam as minhas pequenas embarcações em viagem por aquelas águas ligeiras e, então, claras.

Um dos possíveis significados da palavra tega, no italiano antigo, é pragana (barba ou fios de espigas de cereais), que ondula ao vento, acepção tão em acordo com a sinuosidade da correnteza e da vida.

Lá em casa a natureza fazia parte do dia a dia. Além de bichos comuns (na época) como galinhas, cabritas, peixes, gato, cão, havia também um macaco. E uma vez apareceu também um pingüim que o avô trouxe da praia de Torres. Apareceu lá vindo das paragens da Antártida, sabe-se lá como.

O nosso pingüim deu-se muito bem no clima temperado da serra. Gostava de ir caminhando ao lado do avô até a Praça Dante Alighieri, coração da cidade. O assunto virou destaque numa matéria especial do velho jornal Correio do Povo, numa página perdida do final da década de 1950.
 
Dos barcos de papel que soltei no Tega não sei o destino. Talvez algum tenha conseguido seguir o trajeto até o Rio das Antas, depois ao Taquari, chegando mais tarde ao Guaíba, à Lagoa dos Patos e, por fim, ao oceano. 
 
Tinha eu seis anos quando chegou a hora de dizer adeus e partir das margens do Tega. Nunca mais voltei ao arroio em que me tornei navegador.

A vida me levou por águas distantes e revoltas. Às vezes fui feliz como um peixe no Tega. Outras me senti triste e só como um capitão que perdeu a bússola e se extraviou no mapa rasgado.
 
De qualquer forma, de tanto ver o arroio passar e ir ao mundo, ganhei gosto de conhecer outros lugares e gentes. E o mundo é uma viagem de onde nunca mais se retorna.
 
Ouvi dizer que o Tega, importante patrimônio ambiental da cidade, onde brincávamos e perto do qual, nos fins de semana, as famílias colocavam mesas para as refeições e encontros, está agora poluído, quase morto. Mas ouvi, também, que estão fazendo obras de tratamento de esgoto e outros efluentes para livrá-lo da morte atroz. Bem hajam!
 
Não pode morrer o arroio que fornece água boa de pura nascente rochosa, que foi cenário inesquecível das brincadeiras de meninos e meninas antigos que ali viveram talvez os melhores dias de suas vidas. 

sábado, 25 de abril de 2020

Entre todas, a mais bela estação

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto

O outono é a estação mais bela. A coleção de cores, a variedade infinita de tons, a concentração das seivas. A beleza da solidão.

Saí do "distanciamento social", imposto pelo bicho medonho, e fui fazer umas fotos. Ninguém na Praça Gustavo Langsch. Sossego, passarinho, um pouco de frio.

A vida continua viva.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Onde estás, alegria?

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto


Cada um se vira como pode pra catar alegria em dias assim tão sombrios. Eu tenho me valido das crônicas do sempre lúcido, terno e lírico Rubem Braga (1913 - 1990). Em qualquer livro, qualquer crônica,  o senhor Braga nos enche a alma de felicidade e faz esquecer a peste que assola o planeta e que, infelizmente, já fez tantas vítimas.
 
Um desses livros é "50 crônicas escolhidas", de Edições BestBolso, de 2016. Pequeno, de bolso, leva-se pra qualquer lugar, mais a leveza e o encanto. Inefável alegria poder ler um autor com tanto a dizer e de um jeito único.
 
Ouvir música também é um asseio contra o mau agouro. Descobri no YouTube uma música deliciosa de Chiquinha Gonzaga e Machado Careca, de 1895: Corta-Jaca, um maxixe. Maxixe é uma dança criada, segundo o professor Google, por afrodescendentes brasileiros (caso da própria Chiquinha, compositora e maestrina extraordinária). A interpretação - cantante, dançante e belíssima - é de Lysia Condé.
 
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Corta-jaca. Lysia Condé, YouTube:

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Fanicos e farfalhas

Jorge Finatto
 
photo de joaninha: Wikipédia. Autor: Jon Sullivan (PD-PDphoto.org]


Quem viu alguma vez uma JOANINHA caminhando na página de um livro ou sobre uma folha verde sabe do que estou falando.

É o acontecimento mais importante do universo.
 
Nenhuma literatura, nenhum cinema, nenhuma filosofia do mundo valem os passos da joaninha. Só que pouca gente percebe o engenho e a arte por trás da construção e da vida da frágil joaninha.

Existem muitos outros assuntos importantes para se tratar, está bem. Um escritor-fotógrafo a sério não devia ignorar isso. Tudo bem. O fato, contudo, é que me encanto com os farelos do mundo, com a coisa pouca ou nenhuma que somos. Com um raio de sol na parede ou caído dentro de um copo dágua sobre a mesa.

As coisas pequenas me atraem, me cativam, me elevam. As outras me enfadam, quando não revoltam. Encontro beleza e claridade nos fanicos da existência.

Tudo que é breve e pequeno se parece com ser humano e com estar vivo e ser transitório, e isso me interessa sobretudo.

Os verdadeiros e últimos sentidos habitam muito além das aparências, é assim que eu vejo. E o que eu mais enxergo, quando penso profundamente na vida, é a pequenina joaninha.

O mundo silencioso das migalhas me é, por isso, muito caro e diz muito mais sobre o que nós somos - ou o que sou eu, ao menos - do que um tratado ontológico. Quando perdemos a capacidade de expressar o que sentimos, é como se perdêssemos a vida.

Deus nos livre e guarde.

Na arte, ao menos, podemos voar, sonhar, levitar acima dos mausoléus e crematórios existenciais. Mas sei também que ninguém pode viver entre nuvens. 
 
Deve haver um caminho de passagem entre as farfalhas da vida e a copa das estrelas; entre a imensidão da Via Láctea e os passos humildes e comoventes da joaninha.
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Texto revisto, publicado antes em 25/11/2012.