terça-feira, 30 de junho de 2020

As últimas folhas

          Jorge Finatto

photo: jfinatto


Caíram as últimas folhas do outono
novelo de lã nas mãos de Maria
fogão a lenha, pinhão
conversa na noite fria

anúncio do inverno: ventania

esperança de vida
apesar do isolamento,
da pandemia
e do autoritarismo
(em progresso)
no Brasil

que Deus proteja o povo (todos nós)
da peste e da tirania

sexta-feira, 26 de junho de 2020

O visitante

Jorge Finatto

Lausanne, Suíça. photo: jfinatto


Quando o frio chega
eu saio com o bolso
cheio de pássaros
e vou até aí te visitar

tempero o inverno
no teu calor
de mulher

de manhã parto feliz
com tua luz
nas entranhas

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Do livro Claridade, coedição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.

terça-feira, 23 de junho de 2020

O caçador

Jorge Finatto

Rosa. photo: jfinatto

O caçador de flores, na sua floral loucura, busca reter a beleza do que, por natureza, é volúvel ao tempo e perecível.
Sou amador na arte de caçar. Dedico-me ao ofício por puro prazer, sem fazer disso meio de vida. Também não nutro espírito de emulação com outros caçadores.
Lanço-me à faina, mesmo sabendo que retratos conservam apenas a aparência do que foi belo um dia, e depois deixou de ser.
Saio por aí com a Coruja, vetusta máquina fotográfica que me acompanha há séculos, e começo mais um dia de caçada.
E haja corola pra satisfazer a sanha insana.
O gesto é egoísta, típico de quem quer dar expansão ao próprio deleite estético, numa ânsia predatória de fazer arrepiarem-se as pedras.
O caçador satisfaz o cruento instinto ao capturar as imagens, escondendo-as em seguida em secreto compartimento.
Todavia, o segredo não resiste à evidência de que o belo precisa ser compartilhado pra ser admirado.
Só a exposição da caça torna completa a alegria do caçador.
Um dia as flores secam e morrem, como tudo que é vivo e respira. Alguma coisa delas permanece nas photos. Será essa, quem sabe, a possível atenuante para a conduta do caçador, no seu afã de ter consigo todas as flores que puder e mais algumas.
Na cidade grande quase não há flores. Por isso, e por não gostar de viver distante delas, quando estou longe de Passo dos Ausentes, levo comigo o baú de fotografias. Um jardim de emergência em meio ao deserto de concreto, suavizando o feio e o triste.
No lugar onde escrevo essas frágeis linhas, não faltam flores, graças a Deus. Elas crescem generosamente e a caça é abundante.
O retrato é, talvez, um modo patético de aprisionar o efêmero. Mas o que não é patético nessa tosca existência, não é mesmo, raro leitor?
Magnólia rosa. photo: jfinatto
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Texto revisto, publicado antes em 26 nov. 2013.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

A Praia do Gasômetro

Jorge Finatto

Guaíba com barco e neblina. photo: jfinatto
 

Ele precisa respirar um pouco de ar fresco, sair do calabouço. Recorda como eram bons os banhos, as caminhadas e brincadeiras que, quando criança, fazia pela orla do Guaíba.
 
Um dia distante se viu só diante do rio. A casa da serra tinha afundado.

O rio passou a ser seu único amigo na cidade grande.
 
Sai do calabouço na tarde de junho. Precisa respirar.Vai até a margem do Guaíba fazer um passeio sentimental, que é uma maneira de não deixar o vazio tomar conta.
 
A hora mais feliz do dia era pelo meio da tarde, quando mães e crianças saíam das casas e apartamentos com roupas de banho, guarda-sol, chinelo, toalha e iam para a Praia do Gasômetro, ali ao lado da alta chaminé que virou cartão-postal.
 
Era só sair de casa, esperar o bonde passar, atravessar a rua, e estavam na areia. Ser feliz era simples.
 
O Guaíba é esse espelho sobre o qual o céu se debruça todos os dias com o sol, as nuvens, o azul, e, à noite, com as estrelas.
 
No dia em que tudo o mais estiver perdido, haverá a memória do rio e nele um barco branco com vela branca para levar o menino a navegar nas águas claras e sem margens da infância.
 
A ilha ensolarada da infância.
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Texto revisto, publicado antes em 3 de novembro, 2015.


segunda-feira, 15 de junho de 2020

Drummond e a máquina de costura

Jorge Finatto

Carlos Drummond de Andrade¹

Uma antologia de poesia brasileira e uma máquina de costura. Que relação têm essas coisas? Nenhuma aparentemente. Mas foi através desse inusitado encontro que li, pela primeira vez na vida, um poema de Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987).

Gosto de lembrar e contar essa história. Numa casa de gente pobre como era a nossa, livro raramente entrava, era artigo de luxo. Eu tinha 15 anos e minha mãe comprou a máquina de costurar pra cuidar das roupas da família.

Por feliz iniciativa do fabricante (ou da loja que vendia o produto, nunca soube), junto com a máquina vinham duas antologias: a de poesia brasileira e uma outra de poetas portugueses. Os dois volumes eram pequenos e grossos (trago-os até hoje na estante, são os livros que estão comigo há mais tempo).

A força viva da palavra apresentou-se diante de meus olhos quando li Cantiga de viúvo do bardo de Itabira. Algo estremeceu dentro de mim, uma porta se abriu e nunca mais fechou.

Como podia alguém escrever aquelas coisas, daquele jeito?

Havia tanto sentimento e beleza naqueles versos que me emocionei com a viuvez do poeta. Drummond tinha só 28 anos quando publicou Alguma Poesia, em 1930, seu primeiro livro, no qual está incluído o poema. Ele não era viúvo, pelo contrário, estava na flor da juventude e trilhava o caminho do conhecimento amoroso. A comovente história do poema tinha brotado da imaginação e da sensibilidade do escritor.

O texto drummondiano transmutou invenção em realidade na alma do adolescente leitor que eu era. Me tocou fundo a solidão do homem perplexo e sofrido ante a perda do seu amor.

Concluí que, se era possível dizer tais coisas com palavras tão simples, então valia a pena escrever. Despertar emoção e capacidade de sentir dor e alegria faz parte da missão dos poetas.

Fiquei para sempre com aquela impressão de força e limpeza da expressão escrita do poeta mineiro, confirmada depois de travar conhecimento com sua obra.

Drummond é uma lição perene de poesia.

Cantiga de viúvo²

A noite caiu na minh'alma,
fiquei triste sem querer.
Uma sombra veio vindo,
veio vindo, me abraçou.

Era a sombra de meu bem
que morreu há tanto tempo.

Me abraçou com tanto amor
me apertou com tanto fogo
me beijou, me consolou.

Depois riu devagarinho,
me disse adeus com a cabeça
e saiu. Fechou a porta.
Ouvi seus passos na escada.
Depois mais nada...
                                 acabou.
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¹Foto colhida na internet. O crédito será dado tão logo conhecido o autor.
²Poema do livro Alguma poesia, da antologia Reunião, 10 livros de poesia de CDA. Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1977.

Também sobre Drummond: A memória do Coração:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/04/memoria-do-coracao.html 
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Texto republicado, editado antes em 31.10.83

sábado, 13 de junho de 2020

São estranhos esses dias

Jorge Finatto

photo: jfinatto. Canela


São estranhos esses dias 
de portas fechadas 
janelas pensativas

A peste corre feroz 
à solta no burgo. 
Um cenário da Idade Média

Os dias dentro de casa
trancados pra fugir do bicho ruim
passam à velocidade da luz
e são ao mesmo tempo 
longos e intermináveis

Lá pelas tantas 
tudo parece um dia só 
quando se vê 
foi-se uma semana, um mês, três meses

Os sabiás andam calados
as aves de mau agouro 
ocupam o palco 

Eu ando mesmo 
com uma bruta saudade 
de um pouco de leveza  
em meio à barbárie desses dias  
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Trechos de Saudade de Vera Cruz, 17 de maio, 2020.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

O amor de Ofélia e Fernando

Jorge Finatto

photo: jfinatto, fev. 2018


UM DIA, em fevereiro de 2018, peguei o ELÉCTRICO 28 (o querido bonde lisboeta) e desci na frente do Cemitério dos Prazeres, uma espécie de Père-Lachaise português, onde, como em Paris, estão sepultados alguns nomes importantes das artes, literatura, política e ciência. Após descer (era o fim da linha), resolvi entrar. O atendimento na portaria é educado, um funcionário entrega um mapa ao visitante.

Fernando Pessoa (1888 - 1935) e Ofélia Queiroz (1900 - 1991) viveram um amor que ficou para a eternidade. Amor de namorados que não chegaram a se casar, porque assim tinha de ser. A numerosa troca de cartas, postais, telegramas, desenhos e bilhetes entre os dois está registrada em livros e revistas.

photo: jfinatto, fev. 2018

Ambos discretos e reservados, os papéis vieram à edição muitos anos após a morte de Pessoa, com consentimento de Ofélia. Uma edição completa foi publicada pela Assírio & Alvim em 2012, reunindo a correspondência. O acervo reúne 185 documentos. Neles se encontram palavrinhas inventadas pelo casal.¹

Já escrevi aqui sobre a relação deles e remeto o raro leitor ao texto.²

Me dirigi ao túmulo de Ofelinha, ou Bebé, como era tratada pelo namorado poeta. Seus restos mortais foram trasladados para o local em fevereiro de 2016 por decisão do Município de Lisboa. Mas ainda não foi desta vez que haviam de ficar juntos para sempre. Os restos mortais de Fernando Pessoa foram levados do Cemitério dos Prazeres para o Mosteiro dos Jerônimos, onde se encontram alguns dos grandes vultos nacionais portugueses, em 1985.

F. Pessoa, menino e homem. Casa Fernando Pessoa.
photo: jfinatto, fev. 2018

É um túmulo pequeno, discreto, mas quanta história naqueles vestígios de uma vida. Teria sido um amor malogrado? Acho que não, pensando bem. Se tivessem casado, teriam sido felizes? Não teriam caído na inevitável rotina dos casamentos em que as relações acabam em amizade, os amantes se transformando em irmãos? Isso quando não viram inimigos em guerra aberta. Quem sabe?

Fernando Pessoa casou consigo mesmo e teve filhos na figura dos heterônimos. Foram sua família espiritual. O resto era o mundo real que não importava muito.

Na lápide de Ofelinha há registro de dois trechos das cartas.


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¹ Cartas de amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz. Assírio&Alvim, 2012, Lisboa.

² O casal do Elétrico 28:
https://ofazedordeauroras.blogspot.pt/search?q=O+casal+do+el%C3%A9trico+28

Texto revisado, publicado antes em 19 de fevereiro, 2018.