sexta-feira, 12 de março de 2021

Aqui estamos

 Jorge Finatto

photo: jfinatto


Um ano depois do início da pandemia, o Brasil avança tragicamente para os 300 mil mortos em razão da covid-19. Mais de 2 mil mortos por dia. Já se fala que, em breve, poderemos ter 3 mil mortes diárias. São números avassaladores, inimagináveis mesmo em ficções de terror. 

Como chegamos a isto? Em grande parte pela falta de uma gestão federal à altura da catástrofe, que inclui desde o inacreditável negacionismo até a impressionante insensibilidade diante de tanto sofrimento. 

Em parte, também, pelo despreparo das administrações estaduais e municipais em lidar com crise tamanha,  cada uma se virando de um jeito e fazendo por si na ausência da União. 

E nós, população, temos também importante responsabilidade. A teimosia em não seguir as recomendações de médicos e especialistas, as aglomerações irresponsáveis, o pouco caso diante da doença, a indiferença ante o infortúnio do outro (esse estranho tão nosso igual), todos estes fatores trabalhando a favor da morte.

Explodiu o sistema de saúde, não há vagas nos hospitais e nas unidades de terapia intensiva, pessoas morrem nas filas esperando ser tratadas. Pra não falar da solidão dos que padecem nas internações, sem poder contar com a presença de um familiar ou amigo.

É o retrato de um país doente, cuja morte já não espanta nem indigna. 

Por outro lado, o mundo está enfrentando o problema da falta de vacinas. Cerca de oito indústrias fabricam imunizantes mas em quantidade rigorosamente insuficiente para aplacar a crise sanitária. 

Por que não há uma união entre as nações visando à rápida multiplicação da produção? Por que as farmacêuticas não transferem tecnologia para laboratórios locais com capacidade produtiva como temos no Brasil?

Não haverá uma maneira civilizada e humana de superar a incapacidade de fornecimento de vacinas? O que está em questão não são os lucros dessas indústrias mas preciosas vidas humanas afetadas em todo o planeta. 

Momento de flor em meio à tragédia

 


segunda-feira, 8 de março de 2021

Celebro a vida que virá

 Jorge Finatto

Un petit spoir très féroce: c'est moi.*

                                          Robert Lalonde

photo: jfinatto

Ainda não nasci
sequer faço parte da paisagem
escuto uns gritos do outro lado: não estou

a sombra é apenas o começo
do previsível caminho
que vai dar na aurora

ainda não nasci
no entanto, é para breve

celebro a vida que virá
rompendo a escuridão
explodindo em alegria
como a primavera depois do inverno

sei onde isso terminará:
flor no extremo do ramo
beleza enchendo o vazio

faço do silêncio
um grande bosque
onde borboletas passeiam
pássaros inventam a claridade
com seu canto

imagina uma faísca que, súbito, paira no ar
uma palavra procurando um oco de boca
uma pequena luz que cresce: sou eu

_________

Poema do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
*Uma pequena esperança muito feroz: sou eu. Da obra Une belle journée d'avance. Éditions du Seuil, Paris. 1986.

quinta-feira, 4 de março de 2021

Passeio com Lautréamont

 Jorge Finatto

photo: jfinatto, grafite em Montevideo

Depois que isso tudo passar? Deixa ver...
Vou encontrar o Comte de Lautréamont em Montevideo.
Lerei com ele Os Cantos de Maldoror, no Café Brasilero, na Ciudad Vieja.
Depois, de madrugada, sairemos a passito pela Peatonal Sarandí feito dois fantasmas (que de fato somos).
E voaremos sobre as praças e os telhados até o dia amanhecer.
O Comte regressará para sua velha casa demolida na beira do rio da Prata.
Eu voltarei para meu quarto de hotel e vou dormir profundamente, vou esquecer o mundo até chamarem para o café da tarde no pós-pandemia.
E tudo terá sido um sonho estranho, uma Fuga de Bach.

segunda-feira, 1 de março de 2021

Lágrimas de papel

 Jorge Finatto

photo: jfinatto

O poema nasce, às vezes, de um profundo sofrimento.

As palavras são lágrimas de papel.

domingo, 21 de fevereiro de 2021

O leitor inusitado

 Clara Finatto*

Ilustração: Clara Finatto

Era o começo de uma noite fria do mês de junho e eu estava caminhando pelas ruas do bairro quando vi, ao longe, um homem deitado na calçada bem debaixo de um poste de luz.

Ao me aproximar percebi que era um morador de rua. Naquele chão frio, com um cobertor até o pescoço, segurava na mão esquerda um livro aberto e, com a direita, pegava bolachas de um saco plástico para comer - no intervalo entre uma página e outra.

Fiquei muito tocada ao ver a cena. Custei a acreditar.

Que homem seria aquele? Mesmo diante da pobreza extrema cultivava o hábito de ler. Como conseguia manter assim viva a sensibilidade naquelas condições?

Chegando mais perto pude ver que ele lia “O Fantasma de Canterville” de Oscar Wilde. Fato este que me deixou mais emocionada, pois sou apaixonada por esse escritor.

Nada sabia sobre aquele homem, mas me identifiquei instantaneamente com ele.

Perguntei qual era o seu nome. Ele respondeu, com uma voz suave, que se chamava João. Quis lhe fazer mais perguntas, mas me segurei. Não queria incomodá-lo.

Na sequência questionei se teria interesse em ler outros livros. Ele abriu um largo sorriso e disse que sim.

Então, combinamos que eu faria a entrega de um livro diferente a cada 10 dias, sendo a entrega feita naquele mesmo local que chamamos de Poste da Leitura...

No dia seguinte emprestei-lhe o primeiro livro. Escolhi  “O Retrato de Dorian Gray” do mesmo Oscar Wilde já que ambos gostávamos do autor.

Passados 10 dias fui ao Poste da Leitura para entregar o segundo livro e para saber o que havia achado do anterior. Ele, muito educado, agradeceu e disse que tinha gostado bastante do livro. Assim, ele devolveu o primeiro e entreguei “Os Dragões não conhecem o Paraíso” de Caio Fernando Abreu.

Decorridos mais 10 dias fui, muito contente, ao encontro do meu amigo João para alcançar-lhe o terceiro livro: “Dom Casmurro” de Machado de Assis.

Transcorrido outro período saí para a próxima troca, mas, de longe, percebi que João não estava lá. E quando cheguei ao Poste da Leitura vi que ele havia deixado o livro entre folhagens enrolado em um papel de pão.

Ao pegar o livro vi que ele havia escrito um bilhete que dizia:

“ESSE LIVRO FOI O ÚLTIMO. COM HISTÓRIAS ASSIM VOU ACABAR ME MATANDO”.

Nunca mais o vi nem tive notícias dele. Queria muito revê-lo para pedir desculpas pela seleção que não lhe agradara e, quem sabe, tentar outros livros.

Espero que João, onde estiver, continue com suas leituras. 

______ 

*Advogada e artista plástica.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Um verão cordial

 Jorge Finatto

photo: jfinatto


As hortênsias estão floridas em volta da casa. Isso, em meados de fevereiro, alto verão, é raro. O sol violento de dezembro em diante costuma castigar as hortênsias e outras flores, e é comum restarem secas ao final de janeiro. Este ano não foi assim. Plantas e flores estão bem vivas.

Um verão cordial, portanto. A brandura das temperaturas faz pressentir os primeiros acenos do outono  que começa em 20 de março. Tem chovido cordialmente, também, afastando-se a hipótese de seca. Plantações prometem, reservatórios não se ressentem.

De modo que, ao menos nisso, estamos bem. Não vou falar da lentidão brutal da vacinação contra a covid-19, da impiedosa disseminação do vírus nas últimas semanas, do triste aumento das mortes, da insubordinação de parte da população contra normas básicas de prevenção, do sofrível desempenho das autoridades ao lidar com a crise.

Não vou falar do modo patético como alguns indivíduos, que deveriam dar exemplo, lidam com esta realidade, promovendo aglomerações, não usando máscara, subestimando a gravidade do que está acontecendo, ao invés de estimularem os cuidados necessários. 

Eu nunca vi nada parecido com o que está acontecendo no Brasil. A situação geral piorou muito. Não se veem horizontes por perto. E não apenas devido à pandemia. Parece que os nossos piores defeitos enquanto sociedade resolveram aflorar ao mesmo tempo.

Como estava dizendo, as flores e plantas estão vivas em volta da casa, e resistem.