terça-feira, 6 de abril de 2010

A arte da navegação em barco de papel

Jorge Adelar Finatto



A arte de navegar em barco de papel é tão antiga quanto a humanidade.

Um menino de oito anos pergunta, através de e-mail, como pode alguém com o meu tamanho se aventurar em barco de papel pelo Rio Guaíba.

A perplexidade surge a propósito do que escrevi aqui nos posts dos dias 23 de março e 02 de janeiro deste ano. Miguel Antônio ficou deveras impressionado.

- Como isso é possível? Eu também faço barcos de papel, mas, se quiser entrar neles, ficam destruídos na hora – pondera meu novo amigo.

Estou feliz por ver que esse assunto desperta sua atenção. De fato, poucas pessoas se dedicam a esse belo ofício naval.

Os meninos e as meninas costumam navegar até certa idade. Depois crescem, tornam-se adultos e esquecem.

Com a passagem do tempo, as pessoas vão desistindo das aventuras e dos sonhos.

Sou um velho marinheiro de barco de papel.

Felizmente, não esqueci como se faz isso. Por essa razão, quase não tenho com quem conversar.

O papagaio Filipo é meu companheiro de navegação. Ele vem do bosque onde vive, vestindo o boné e a jaqueta de marujo. Moisés, o peixinho que nada ao lado da nossa minúscula embarcação, também faz parte da tripulação.


Faço a estrutura do barquinho com um papel muito branco, depois pinto o casco, o timão, a âncora e a vela. Tomo cuidado para fixar bem as dobras, para não deixar a água entrar. Coloco apenas as coisas essenciais na cabine, porque o espaço é muito reduzido, tudo num barco de papel é muito pequeno.

Levo-o para a beira do rio. Empurro-o na água e dou um pulo para dentro. Vamos nós!

Não consigo explicar, só com palavras, como isso acontece. O fato é que é assim.

O que eu sei é que só me sinto feliz, de verdade, quando entro no meu barquinho Solitário - esse é seu nome - e saio pelo Guaíba afora, deixando pra trás a cidade, as tristezas e os medos.

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Ilustrações: Maria Izabel Schissi

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Caio Fernando Abreu e as pequenas epifanias

Jorge Adelar Finatto




Estive três vezes com o escritor Caio Fernando Abreu.

Conheci-o na década de 1970 e o primeiro encontro ocorreu na redação da Folha da Manhã, jornal de vanguarda feito em Porto Alegre por excelente equipe de jornalistas, escritores, artistas e intelectuais de várias áreas.

A Folha da Manhã era a filha rebelde da Folha da Tarde, e neta do vetusto Correio do Povo, os três da Companhia Jornalística Caldas Júnior, que não existe mais (mudou mais de uma vez de proprietários, de orientação e de perfil jornalístico). A sede dos jornais, no velho prédio que ainda permanece, ficava a poucas quadras do Rio Guaíba.

Numa outra vez visitei-o, junto com jovens escritores e poetas, no seu apartamento no centro da cidade, ainda nos anos 70.

O assunto nesses encontros girava, invariavelmente, em torno da literatura e da vida, no Brasil opressivo da ditadura militar. Caio ouvia as nossas conversas com interesse e, sem paternalismo, dizia suas coisas. Era delicado, gentil, às vezes irônico, às vezes triste, e até duro, se fosse o caso.

Em alguns invernos, vi-o de passagem na Esquina Maldita, território porto-alegrense de resistência. Ali havia bares e restaurantes onde se reuniam estudantes, artistas, livres-pensadores em geral. A famosa (na época) Esquina ficava no cruzamento da rua Sarmento Leite com a avenida Osvaldo Aranha, com suas altas e elegantes palmeiras.

domingo, 4 de abril de 2010

Folhas amarelas, letras vermelhas

Jorge Adelar Finatto



Outono espalha
folhas amarelas
no pátio
de abril

o rumor do vento
habita a copa
dos pinheiros

há uma página
em branco
respirando
sobre a mesa

há uma nuvem
onde alguém
escreveu solidão
com letras vermelhas

outras coisas voam
no outono
que não entram
no poema


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Fotos: J. Finatto

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Jean-Dominique Bauby: o prisioneiro do escafandro e o bosque das borboletas

Jorge Adelar Finatto


O fundo do mar da memória é seu habitat.

O prisioneiro do escafandro mora no ermo de si mesmo.

O tempo da ampulheta não conta mais.

O que importa é o limiar do amanhecer na cortina do quarto de hospital.

A última estrela tarda na janela.

Anêmonas silenciosas cercam-no no estranho lugar.

Paralisado dentro do próprio corpo, para sempre afastado da vida comum, impossibilitado de dizer qualquer coisa, proibido de mexer-se, ausente do abraço, do carinho, do amor físico.

A existência é uma paisagem que observa do interior do olho esquerdo.

É indesculpável ter vida e já não poder viver.

Como explicar esse absurdo ao coração que bate teimosamente?

Talvez fosse mais fácil aceitar passivamente a chegada da morte.

Mas não.

O prisioneiro agarra-se a cada frêmito de vida que resta no corpo.

As borboletas passeiam leves na penumbra com suas asas coloridas.

Haverá neste cosmo alguma chave para destrancar meu escafandro?*

Jean-Dominique Bauby nasceu em Paris em 23 de abril de 1952. Como jornalista alcançou o auge da carreira na função de redator-chefe da revista Elle francesa, famoso semanário feminino.

Aos 43 anos circulava no mundo glamouroso dos modelos e celebridades. Tinha dois filhos e o pai idoso, os quais amava. Dava-se bem com a ex-mulher.

Um salário ótimo, um automóvel caro e belas mulheres faziam parte deste cenário, em que não faltavam arrogância e frivolidade.

As coisas iam desse modo até que, em 08 de dezembro de 1995, Jean-Do (como era chamado pelos amigos) sofreu um grave acidente vascular cerebral. No seu caso, o AVC teve um desdobramento raro, conhecido na medicina como “locked-in syndrome”, através do qual o corpo fica paralisado, e o indivíduo perde a capacidade da fala. Inicialmente, ficou em coma durante vinte dias. Quando acordou no Hospital Marítimo de Berck-sur-Mer, deu-se conta de que a vida não seria mais a mesma.

quarta-feira, 31 de março de 2010

Theodor Adorno e a poesia depois de Auschwitz

Jorge Adelar Finatto


O filósofo alemão Theodor Adorno (1903 – 1969) perguntou, em 1949, se era possível escrever poesia depois de Auschwitz.

O pensador da Escola de Frankfurt falou em poesia, mas poderia ter dito música, artes plásticas, filosofia, cinema. Podia ter perguntado também se ainda seria possível comer, caminhar, estudar, ler, trabalhar, amar.

A imensa perda de sentido humano que ocorreu naquele campo de concentração nazista, localizado na Polônia ocupada por forças alemãs durante a Segunda Guerra Mundial, leva inexoravelmente ao silêncio.

Mais de um milhão de judeus foram assassinados ali. Como os demais campos, era fábrica de matar gente. Ciganos, homossexuais, Testemunhas de Jeová e dissidentes políticos também padeceram nesses territórios do inferno, construídos por Hitler e seus sanguinários acólitos.

Como seres humanos puderam fazer aquilo com outros seres humanos, é a pergunta que se impõe. Quando uma dor sem limites como essa toma conta de nós, não temos o que dizer.

Não se trata aqui, bem se vê, do silêncio produtivo, que nos leva para longe do ruído estéril e se faz ouvir através do fértil trabalho criativo.

Adorno, penso eu, referiu-se ao desencanto que nos assola e derruba. O mesmo que, hoje, nos invade diante da violência do mundo, nas ruas das nossas cidades.

A perda de sentido das palavras decorre também do trabalho de desvirtuar significados para manipular comportamentos. Essa perda é fonte de desumanização e está presente na sociedade agora como esteve no passado. Fala-se uma coisa, se diz outra e se faz o oposto disso tudo.

As palavras caem na sombra do sem-sentido.

Contudo, precisamos das palavras como o náufrago precisa da tábua.

A limpeza dos destroços resultantes das tragédias pessoais e coletivas passa pela palavra. Através da linguagem vamos tentar salvar o que pode ser salvo e elaborar uma nova maneira de viver.

A palavra é o único recurso disponível quando tudo em volta desmorona.

Necessitamos da palavra para procurar e construir sentidos onde eles se perderam.

Precisamos da palavra porque somos palavra e não podemos viver sem, seja ela poema ou outra linguagem.

O silêncio absoluto é o silêncio da morte.

Portanto, uma possível resposta à pergunta de Adorno será: não só é possível como imprescindível escrever poesia, apesar de tudo.

A aurora da palavra iluminará outra vez nossas vidas. Reconstruiremos sobre as cinzas.

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Foto: Selo comemorativo do centenário de Theodor Adorno, Alemanha, 2003. Fonte: Wikipédia.

Sobre O aborto e o Papa, publicado em 09/3/2.010

Cláudio Accurso
Economista e Professor Universitário, Porto Alegre.

Há muitos ângulos para examinar-se a questão do aborto. Um é tratá-lo como questão individual, em que os múltiplos condicionantes para sua prática recaem apenas em valores pessoais. Outro é vê-lo como questão social, em que a inserção e as perspectivas dela decorrentes vão determinar os condicionantes definitivos para uma avaliação a respeito.

Para pelo menos um terço da população brasileira, cujo futuro de miséria e desamparo está traçado desde o primeiro dia do nascimento, a sua recusa a tal vilipêndio moral é um ato entendível e não pode ser reducionistamente tratado como imoral, pois se trata apenas de um confronto entre princípios abstratos de comportamento sugerido e de realidades cruas de sugestões objetivamente inviáveis. Visto por aí, o aborto é um gesto de acusação contra a falta de garantias sociais para a realização de uma vida digna.

Sou contra o aborto, mas observo não fazer parte desse estrato social sem futuro, o que mostra que não há individualidade sem contexto e que este é muito desigual para cada um, salientando também como é fácil julgar os outros quando se abstrai esse contexto. Na verdade, aborto é questão de foro individual, por isso não proibitível por uma sociedade sem credenciais sociais para tanto, quando aceita secularmente miséria inapelável e ultrajante.

As crianças que dormem nas ruas, os homens sem trabalho e o desamparo de milhões de pessoas testemunham o infortúnio que não foi evitado. Um país que vive do futuro não tem que reclamar de seu presente... é só esperar...

segunda-feira, 29 de março de 2010

A arte de ser juiz

Jorge Adelar Finatto



Ser um bom juiz resulta de um tipo de sabedoria que não se aprende somente em livros técnicos. Nem decorre de uma progressiva conquista de graus acadêmicos. É algo maior e mais profundo.

O juiz que fará bem a seus semelhantes e trabalhará pela dignidade da vida, ao contrário de complicar e piorar as coisas, será aquele capaz de ouvir e respeitar as pessoas nas suas intransferíveis circunstâncias.

A justiça começa nas relações mais simples do dia a dia, em casa, na rua, no ambiente de trabalho, em comportamentos éticos que são, na aparência, bastante prosaicos, mas que acabam construindo todo o resto.

Amar as pessoas e a justiça é a condição primeira para ser juiz.

Não se ingressa na magistratura pensando no status da profissão, no valor do subsídio, nas garantias que cercam o cargo - que visam a proteger a sociedade e não a pessoa do juiz. Esses atrativos são insuficientes para manter alguém que não é do ramo na função. Dedicação, capacidade de renúncia, entusiasmo, reflexão e estudo permanentes são algumas das exigências.

A magistratura é a típica atividade que se destina a mulheres e homens com vocação, que buscam no ideal de bem servir a sua realização.

Pelo menos três pilares são fundamentais na formação do juiz: ética, humanismo e técnica.

Quando é que alguém se torna juiz? Muitos acham que isso ocorre quando o candidato é aprovado no extenuante concurso público, é nomeado e toma posse no cargo. Mas não é elementar assim.

A pessoa torna-se magistrado muito tempo antes do concurso. O que realmente define quem se tornará juiz é a essência e a atitude de cada um diante da existência. A luta por uma vida mais justa e solidária está na alma do julgador. Existe uma imposição de ordem interna que o leva a decidir-se pela profissão, ainda que isto não esteja muito claro na adolescência e mesmo no início da vida adulta.

A gente se prepara para ser juiz uma vida inteira, pois todo dia é dia de viver e aprender.

Coisas como agressividade, excesso de vaidade, cinismo, indiferença e fanfarronice não combinam com a toga.

Um temperamento humilde, diferente de subserviente ou arrogante, disposto a respeitar, mais do que tolerar, as diferentes visões de mundo, é sempre muito importante. Ninguém é dono do conhecimento e da verdade.

Não existe modelo pronto de juiz. O magistrado terá de construir o seu. Por outro lado, não faltam exemplos de pessoas que dignificam o ofício.

Pensar de modo mais criativo e humanista o ingresso na magistratura, e a própria construção do Poder Judiciário brasileiro, é o desafio que temos em tempos tão difíceis.

A dura realidade exige magistrados mais participantes e comprometidos com o bem-estar da sociedade. Cada vez mais o Judiciário é chamado a decidir sobre situações que afetam a vida de todos. As dores e os dramas das pessoas chegam aos juízes a toda hora em todos os dias do ano.

A busca de uma existência mais feliz e harmônica é a razão de ser da atividade jurisdicional.

O que se pede ao juiz não é que seja um super-herói, mas que decida como um ser humano sensível, e saiba olhar com os olhos do coração, com a mesma empatia com que todos – juízes e não juízes - esperamos ser tratados nas horas difíceis.

Empatia, a sua dor no meu coração.

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Foto: J. Finatto
 
jfinatto@terra.com.br