sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A pensão dos viajantes solitários


Jorge Adelar Finatto



A cidade é onde o abandono é dono.

As praças vazias onde me quedo ouvindo falecidas conversas.
Bardo obscuro e tabelião em Passo dos Ausentes, eu vivo os interstícios. Os ásperos padecimentos da humana travessia. A bordo de um frágil e ridículo corpo existimos. Ninguém sabe até quando.

Cheio pela borda de cansaços e desejos. Quem houvera nesta vida me escutasse os ais.

Viver é assunto proceloso e bem escuro.

As coisas que não aconteceram são as que mais se afeiçoam na minha lembrança. A biografia que merece os veros registros: a dos não-acontecimentos.

Por isso estou aqui. Me inventando, me contando.

Sou o bardo barroco, ressuscitado em salvadoras prosopopeias. A obsessão pela música interior. Essa que me faço. Conjuro o venturoso canto.

Não me interessa a realidade. Quem tiver a realidade, que a bem guarde e embale.

Sou viajante de um tempo que se esfuma.

A saudade é um retrato em branco e preto na gaveta da memória. Os destroços de cada um.

O meu coração habita um quarto de pensão. A pensão se chama Ao viajante solitário.

Às vezes penso que o mundo é uma grande pensão. A pensão dos viajantes solitários. A existência é um fio de orvalho estendido de manhãzinha sob o sol.

Somos parceiros das nuvens.

Caminho para o lugar mero do esquecimento.

Eu, Landgrave dos Santos Esquecido, inquilino do absurdo, de tudo dou fé e assino. Passo dos Ausentes, nos Campos de Cima do Esquecimento, Rio Grande do Sul.

Primavera, primaveras.

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Do livro Calado observador do fim do mundo, Editora Vésper, Passo dos Ausentes, 2010.
photo: j.finatto

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Cley e Cortázar

Jorge Adelar Finatto


"Sei que algum dia os brasileiros vão descobrir melhor Cley." Julio Cortázar

Volto ao livro Papéis Inesperados, de Julio Cortázar, sobre o qual escrevi semana passada. Um texto me chama a atenção, aquele em que Cortázar fala a respeito de seu amigo Cley Gama de Carvalho, que ele apresenta como jornalista e dramaturgo brasileiro. Impressiona o afeto, e também o respeito, que havia entre eles. Conheceram-se em Paris quando Cley fez uma entrevista com o escritor argentino.

Não eram amigos de se ver todo dia, mas de vez em quando, a intervalos de dois anos, em geral. Quando Cortázar lhe perguntava, pessoalmente ou através de carta, como estava,  a resposta era sempre a mesma: tudo bem.

Mas o escritor pressentia que as coisas não iam bem com o amigo, pelo contrário. Eram os anos dos governos de força neste lado do mundo e Cley teve sérios problemas com a ditadura militar no Brasil. Cortázar não sabia detalhes do que acontecia, pois Cley não era de lamentar-se e evitava o assunto. Mas sentia que a realidade, a cada dia, pressionava mais e mais o brasileiro.

É um texto cálido sobre o amigo que se suicidou no Brasil, no  final de 1976 ou inícios de 1977, não há precisão. O companheiro que enviava garrafas de cachaça, pelo correio, para Cortázar enfrentar o inverno.

O argentino refere-se, também, à peça de teatro que Cley escreveu, intitulada Cromossomos (Como somos), e que considera "magnífica", "cuja representação no Brasil não havia servido exatamente para facilitar a vida e a tranquilidade de Cley". Esse elogio, vindo do criador de Histórias de Cronópios e de Famas, tem que ser bem apreciado.

Nunca ouvira falar antes de Cley Gama de Carvalho até ler este texto. Tentei encontrar alguma informação sobre ele, algum trabalho de sua autoria, mas muito pouco consegui até agora. Vou continuar atento. Afinal, pelo que diz Cortázar (poderia haver melhor testemunha?), foi uma pessoa muito especial e um autor importante:

"algum dia os paulistas, todos os brasileiros, saberão melhor quem foi Cley Gama de Carvalho, como passou por seu tempo com uma dignidade de grande urso livre, com um sorriso calado de ironia sem maldade".

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Papéis Inesperados, Julio Cortázar. Para uma imagem de Cley, pp. 367/372. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2010.

Foto: Julio Cortázar. Fonte: www.juliocortazar.com.ar Nota do blog: o crédito será dado ao autor da foto tão logo tenhamos a informação.

Leia também Urso solitário, do artista plástico Mario Gruber sobre Cley:
http://www.memorial.org.br/acervo/obras-de-arte/homenagem-a-clay-gama-de-carvalho/urso-solitario/
 

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Tempo e palavra

Jorge Adelar Finatto
 

A maravilha custa caro

o tempo de viver
é o lugar
da elegia
e do milagre

as estrelas cadentes
são nossas irmãs

é preciso devolver
a Deus
a vida emprestada

o que nos vale
nesse desamparo?

a escrita introspectiva
e visceral
do poema
remete ao silêncio
e ao desapego
de tudo que é vaidade

de que tempo nos fala
o poema?
certamente não daquele
que se conta em ampulheta

fala de experiência outra
o coração abrangente
das coisas do mundo
que é o saber próprio
e intransferível
da poesia

é preciso que alguém
desvele o inefável
mostre o que vai além
procure com ternura
o território delicado

o poeta fala por nós
e para nós

a ele devemos
o supremo esforço
de traduzir o que se perde
na neblina

a face da palavra
me salva
na escuridão
do mundo

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Poema do livro Memorial da vida breve, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.

sábado, 14 de agosto de 2010

Contra a noite do esquecimento, pela esperança

O Cavaleiro da Bandana Escarlate


Mi Vida com Carlos é, talvez, a melhor produção apresentada em Gramado em 2010. Pelo menos, é o melhor que vi. E não vi tudo. Simplesmente, não consigo passar os dias em salas de exibição e/ou discussão. Falta-me o ar. Portanto, essa é a impressão de alguém que, em certos dias, ficou jogado no quarto de hotel, lendo Juan Carlos Onetti e Cortázar, na frente de uma taça de café, em vez de estar enfiado em salas cheias de gente.

Começo a sentir banzo depois de quinze dias longe do modesto solar onde vivo nas cercanias da Praça Maurício Cardoso, em Porto Alegre.

Mi Vida com Carlos (Chile, 2009) é um excelente documentário sobre um filho (o próprio diretor, Germán Berger-Hertz) que está em busca do pai, com o qual não conviveu. Motivo: Carlos Berger, advogado e jornalista, foi brutalmente assassinado pela Caravana da Morte de Pinochet, em 1973, logo após a destituição, através de violento golpe de Estado, em 11 de setembro daquele ano, do governo socialista e constitucional de Salvador Allende.

A Caravana da Morte foi uma operação das forças armadas do Chile, desenvolvida em outubro de 1973, para exterminar os inimigos do regime  Pinochet. Através dela, cerca de 72 presos políticos teriam sido assassinados. Os corpos de alguns deles, como o de Carlos Berger, jamais foram encontrados.

É uma história trágica e comovente. Os pais de Carlos eram judeus que escaparam dos nazistas na Europa, vindos da Hungria e da Rússia. Sabe-se que muitos nazistas, fugitivos em 1945, passaram a viver e agir na América Latina,  em países como Chile, Brasil, Argentiva e Uruguai, havendo evidências de colaboração dos foragidos com governos ditatoriais, como o de Pinochet. 

Os Berger constituíram família no Chile, trabalharam, os filhos estudaram na universidade, tornaram-se pessoas produtivas e úteis para a sociedade. Até que o inferno Pinochet se abateu sobre o país. 


Não é um filme sectário, mas a visão de um filho que perdeu seu pai desde sempre (tinha menos de um ano de idade quando Carlos foi morto) e que teve ceifada uma parte de sua vida afetiva e familiar. Seus avós, pais de Carlos, suicidaram-se  alguns anos depois do desaparecimento do filho.  Um tio foi embora para o Canadá. O cineasta e sua mãe tiveram de ir para o exílio. É a experiência de um homem que viu sua família destroçada no terror daqueles dias. Não é pouco.

Germán afirma: "Este filme rompeu o silêncio que imperou em minha família por mais de 30 anos. A razão pela qual o fiz foi só uma: a enorme tristeza que impedia a todos de falar de meu pai" (www.santocine.com).

O documentário colhe depoimentos de amigos, familiares e da mãe do diretor, Carmen Hertz. Ambos estiveram em Gramado na apresentação do filme. Carmen empreendeu, junto com um grupo de pessoas, uma luta corajosa em defesa dos direitos humanos violados pela ditadura sanguinária. O notável trabalho desta senhora e seus companheiros gerou arquivos que foram declarados Memória do Mundo pela UNESCO, em 2003. Há ali registros de mais de três mil pessoas, entre mortos e desaparecidos, vítimas da ditadura do general Augusto Pinochet, que durou entre 1973 e 1990.

A história contada na tela nos ensina que não é possível uma nação seguir adiante sem apurar responsabilidades pelo terror que aconteceu no passado. É o que se buscou e se busca até hoje no Chile, para que esses crimes nunca mais se repitam.

Vou caminhar um pouco na neblina das ruas agora quase vazias de Gramado, antes de arrumar as coisas pra ir embora.

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Fotos: Divulgação.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Sem medo nem rancor

Frederico Vasconcelos


Final dos anos 60, em Recife, a tropa de choque, fortemente armada, impedia a passagem do enterro. No caixão, o corpo do padre Henrique, um assessor de dom Hélder Câmara que se dedicava a recuperar jovens viciados em drogas.

Na véspera, o padre fora encontrado no meio de um matagal, mãos e pés amarrados e com marcas de incrível violência em todo o corpo.

Ombro a ombro, os policiais militares fechavam a rua e não permitiam a passagem do féretro e das muitas faixas de protesto contra a ditadura.

Sem hesitar, o frágil dom Hélder toma a frente do cortejo, avança com passos firmes, seguido pelos sacerdotes que erguiam o caixão do companheiro assassinado.

O bloqueio é rompido. O comandante recolhe a tropa, que volta a surgir, alguns quarteirões adiante, agora todos perfilados, com os capacetes na mão, cabeças abaixadas, como num silencioso e incomum pedido de perdão.

A coragem pessoal de dom Hélder era um exemplo de resistência naqueles tempos de terror e trevas. Sem as pompas do cargo, o arcebispo morava sozinho numa casinha de pequenos cômodos, cujo muro havia sido metralhado, de madrugada, mais de uma vez.

"Vocês conseguem ver aqueles dois homens, ali em frente, atrás das plantas?", perguntou uma noite, sorrindo, ao se despedir depois de uma entrevista. "Eles estão escondidos, mas dizem que é para me proteger", ironizava.

"Às vezes, eu imagino colocar uma máscara, apenas para pregar um susto neles", comentou, brincando. Dom Hélder não tinha medos nem rancores.

O encontro fora coordenado pela corajosa jornalista, depois deputada, Cristina Tavares (que morreu em 1992). Cristina, como outros amigos, chamava-o apenas de "Dom". Da entrevista também participaram o jornalista Jeová Franklin e este repórter.

Publicada em "O Pasquim", capa de edição em março de 1970, ela teve o mérito de romper a longa censura imposta pelo regime militar a dom Hélder.

Como disse Janio de Freitas, realmente foi uma graça do destino tê-lo conhecido.

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Este artigo foi originalmente publicado na Folha de São Paulo, edição de 03/9/1999. Agradeço ao Frederico e à FSP a autorização para reprodução. J. Finatto
Frederico Vasconcelos é jornalista, repórter especial da Folha de São Paulo. Mantém o Blog do Fred (blogdofred.folha.blog.uol.com.br) ,  um dos mais importantes e acessados da área do sistema judicial brasileiro.
Pelos seus trabalhos, recebeu, entre outros, o Prêmio Esso, o Prêmio Bovespa de Jornalismo, o Prêmio BNB de Imprensa, o Prêmio Icatu de Jornalismo Econômico e foi finalista do "Premio a la Mejor Investigación Periodística de un Caso de Corrupción", do Intituto Prensa y Sociedad e Transparency International Latinoamérica y El Caribe.
Nas horas vagas, dedica-se a outro teclado: toca piano (Jazz e MPB).
E-mail: fvasconc@folhasp.com.br

Foto: Dom Hélder Câmara (1909-1999). Fonte: www.google.com.br, Imagens de Dom Hélder. Nota do blog: o crédito será dado ao autor da foto tão logo tenhamos a informação.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Julio Cortázar em Porto Alegre

Jorge Adelar Finatto
 


A literatura passa um sentimento de permanência das coisas. Nós passamos, as palavras escritas ficam. A maior parte dos livros dura mais tempo do que as pessoas.

Os escritores que escolhemos para nos acompanhar na travessia são fundadores dessa eternidade de papel. Os livros fazem parte do que somos.

A lembrança mais remota que associo ao nome do escritor argentino (que escritor!) Julio Cortázar (1914 - 1984) é dos primeiros tempos de estudante universitário em Porto Alegre. O ano 1976, tinha dezenove anos. Estava lendo Histórias de Cronópios e de Famas e As Armas Secretas.

A fila do restaurante universitário era torturante pra quem tinha que ir pro trabalho cedo da tarde como eu. Estudante pobre, precisava trabalhar pra sobreviver, como muitos. Nas filas do ru, lia Cortázar. Então, aquele era também um bom momento do meu dia a dia. Depois li outros livros dele.

Agora, lendo Papéis Inesperados (tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht), livro de 490 páginas, com textos inéditos do escritor, publicado originalmente em 2009, vinte e cinco anos após sua morte, reencontro Cortázar. No Brasil, o livro foi lançado em 2010 pela Civilização Brasileira.

Os textos - encontrados em uma velha cômoda, na casa onde morou o autor, em Paris, por sua viúva Aurora Bernárdez - são poemas, contos, outras histórias de cronópios e de famas, episódios de Um tal Lucas, um capítulo de O Livro de Manuel, discursos, prólogos, artigos de arte e literatura, crônicas de viagens, etc.

A felicidade de encontrar material novo do autor, tantos anos depois, é muito grande.

O dado inusitado e, para nós gaúchos que amamos a literatura de Julio Cortázar, muito gratificante foi descobrir uma menção a Porto Alegre no texto Never stop the press, onde se lê a frase "uma vista escolhida do Tirol e/ou de Bariloche e/ou de Porto Alegre" (pág. 117).

Sei que Cortázar gostava do Brasil, onde esteve pelo menos em duas ocasiões, e que admirava, por exemplo, Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade, além de apreciar nossa música, especialmente Caetano Veloso, mas ignoro se alguma vez esteve em nossa cidade.

De qualquer forma, ver Porto Alegre nesse texto de Julio Cortázar, ainda que só de passagem, dá o que imaginar. Pensando bem, acho que ele tinha muito a ver com essa cidade povoada de barcos e crepúsculos, jardins escondidos no fundo de casas desaparecidas, silenciosos gatos que caminham sobre muros cobertos de hera, ruas esquecidas, fantasmas.
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Fotos: capa de Papéis Inesperados. Julio Cortázar (
http://www.juliocortazar.com.ar/)

terça-feira, 10 de agosto de 2010

La Vieja de Atrás

O Cavaleiro da Bandana Escarlate


Seres devastados por uma irremediável solidão. A incomunicabilidade das pessoas em suas vidas pequenas e sofridas. As difíceis relações de afeto num mundo em que não se para para olhar e sentir o outro. A busca dolorosa, às vezes desesperada, de alguém para compartilhar a vida e amenizar o deserto.

La Vieja de Atrás (A Velha dos Fundos), dirigido por Pablo Meza, que também assina o roteiro, foi exibido no Festival de Gramado, na noite de domingo (o8/08/2010). É mais um bom exemplo do tipo de cinema que se faz hoje na Argentina. Um filme que apanha o indivíduo no ato difícil de viver, que se preocupa em desvelar a vida interior dos personagens, com os pensamentos e sentimentos que os movem e lhes dão uma face.

Rosa (atriz Adriana Aizenberg) é uma velha senhora, na volta dos oitentanos, viúva há muito tempo, sem filhos, que vive sozinha num pequeno e obscuro apartamento numa rua movimentada de Buenos Aires. Marcelo (ator Martín Piroyansky) é um jovem tímido, vindo do interior, de la pampa, para estudar medicina na capital. De família pobre, sobrevive de fazer biscates, como distribuir papéis com anúncios, de mão em mão, pela calçada. Até que o dinheiro de Marcelo acaba e ele não consegue mais pagar o aluguel do apartamento em que mora, localizado no mesmo andar que o de Rosa. Um belo dia entram no elevador, que em seguida tranca. São obrigados a conversar, olhar-se. Rosa interessa-se em ajudar o rapaz e o convida a morar com ela. O mais que se passa daí em diante é pura condição humana.

Diferentemente de certos filmes brasileiros que tenho visto, em que há uma forte tendência para o documentário naturalista, percebo nos filmes dos vizinhos do Rio da Prata uma "ocupação" sensível e delicada com o assunto humano. Não se nega a realidade, mas esta se coloca enquanto cenário ou circunstância na qual os personagens existem e agem como seres pensantes, emocionalmente vivos. Não são meros marionetes manipulados por um destino implacável, supostamente realista.

A impressão que se tem, ao final, é de que Rosa e Marcelo vão sair da tela caminhando em direção à plateia, tal sua verdade emocional e complexidade psicológica. Um belo filme.
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Foto: personagens Marcelo e Rosa. Divulgação (cinema.cineclick.uol.com.br)