sábado, 7 de julho de 2012

A busca, nos livros, do ora-veja da vida

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto

Na tarde chuvosa e fria, entro na livraria. A procura persistente, e vã talvez, de encontrar, nos livros, o ora-veja que falta na vida. Essa busca renova-se a cada nova obra que levamos para casa.

Escritores e poetas são seres que habitam a nossa sensibilidade. Fazem parte do que somos e do que queremos ser. Ajudam-nos a caminhar na estrada em meio a tanta treva.

Costumo levar um livro na bagagem, para diminuir o banzo e a solidão das viagens. O livro traz, em si, um pouco da casa que ficou distante. O fato de sabê-lo por perto, ao alcance da mão, no quarto de hotel, proporciona o aconchego das coisas íntimas.

Hoje os meus livros estão mais sossegados nas estantes. Mas nem sempre foi assim. Eu, que detesto mudanças de endereço, perdi a conta de quantas vezes tive de mudar de casa neste mundo de Deus.

Nunca me acostumei a esses movimentos que trocam tudo de lugar. Um sofrimento sair da casa, da rua, da cidade. No meio do caos emocional que isso traz, os livros nos acompanham, passando um sentimento de permanência.

Os livros são nossos confidentes e amigos espirituais.
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Texto publicado em 19 de julho, 2011.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Caminhando na névoa

photo: j.finatto. Passo dos Ausentes, inverno, 2012.

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acasadachuva@hotmail.com

quarta-feira, 4 de julho de 2012

As intermitências da primavera

Jorge Adelar Finatto



photo: j.finatto

O amor - ou esse sentimento que aproxima pessoas solitárias e desamparadas como ele - inaugurou datas no calendário, pintou de lilás, azul e rosa o coração. O amor tocou músicas no som do carro e do apartamento. O amor tornou-o uma pessoa melhor para si e para os outros.

Um dia, talvez, ela, que gostava tanto de gatos, regressará da nuvem onde foi habitar. Virá buscá-lo, como sempre fazia, para irem juntos ao cinema, ao café, à livraria, ao Parque Harmonia ver o pôr-do-sol na beira do Guaíba.

Ela foi o único ser humano que conseguiu resgatá-lo da ilha. Morreu há três anos de uma doença que não vale a pena lembrar, foi embora depois de sorrir e dizer que ele não devia se preocupar, tudo ia dar certo. Perdeu-a pouco antes de irem morar juntos.
 
Sente-se um morto-vivo sem aquela que o resgatou da solidão de náufrago. Não consegue fazer o tipo leve, desses à vontade no mundo. Gosta de pensar, procurar sentidos.

Uma colega de trabalho disse-lhe que ele era muito certinho. A vida não era.

O fato é que, um dia, ele sonhou ser feliz para sempre. Mas a realidade disse que para sempre é tempo demais.

A família que, no passado, foi unida agora vivia dividida, os irmãos quase não se convivem.

A mãe, que em vida teceu com dedos de cristal os frágeis laços do afeto familiar, morreu antes do tempo. Ninguém a substituiu na rara arte de evitar e, sobretudo, de colar os cacos. Os laços se partiram.

Ele voltou a viver no fundo da ilha. Tornou-se um estrangeiro em sua própria cidade. Os antigos amigos transformaram-se em conhecidos, foram casando, criando filhos, separando, mudando de rua, bairro, cidade, país.

O seu mundo de náufrago reduziu-se ao apartamento, ao trabalho, às idas ao mercado, às leituras, a uma eventual saída aos sábados e aos impiedosos dias de domingo.

Teve poucos relacionamentos depois, coisas fatigantes, sem nenhuma importância.

O sexo de ocasião nunca foi pra ele. Tem receio das pequenas memórias, quando a dona delas vai embora. O que para muitos é pura diversão, pra ele é vertigem.

O lugar onde vive - a remota e inalcançável ilha - só não é uma tapera porque a velha empregada da família aparece duas vezes por semana, dá um ar doméstico ao deserto. Os únicos seres vivos ali, além dele, são as hortênsias que cultiva na sala, em dois vasos, um em cada lado da janela.

As hortênsias acendem as manhãs, iluminam a casa.

A janela é o ponto de referência dele no planeta.

Dali pode ver a praça e as pessoas, as árvores e a rua, o céu, os outros edifícios.

De qualquer parte do universo um observador pode tê-lo como objeto de estudos. Todos os dias, no fim da tarde, está na janela.

No fundo, nunca a perdoou por tê-lo abandonado no mundo.

O medo de amar afeiçoou-se a ele como as heras num túmulo de cemitério do interior.

A solidão o faz acariciar o gato invisível, na frente da televisão, até adormecer.

Se fez tratamento psiquiátrico sobre esse viver tão desolado? Sim. Mas continua o mesmo homem enclausurado, estranho a si mesmo, sem saber o que fazer com as mãos quando está sozinho.

O outono chegou com um cesto florido de lembranças.

Os dias chuvosos, frios, deixam as pessoas entocadas em casa.

A praça está vazia. Recorda-se dos dias em que caminhava com ela por ali.

A ausência da primavera faz o coração girar louco na ventania.

Se ao menos tivesse um gato de verdade.

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Texto revisto publicado em 17 de fevereiro, 2010.
 

terça-feira, 3 de julho de 2012

Ruy Castro e os discos de vinil

Jorge Adelar Finatto

Foto feita durante encontro dos amigos Ruy Castro (dir.) e Ivan Lessa no Rio
photo:Ruy Castro (à esquerda) e Ivan Lessa. Autora: Heloísa Seixas. Divulgação

Em belo artigo publicado domingo último, no caderno Ilustríssima, da Folha de São Paulo, o escritor e jornalista Ruy Castro recorda seu amigo Ivan Lessa, também jornalista e escritor, falecido em Londres, aos 77 anos, em junho passado.

O texto intitula-se Sonho de Ivan Lessa era estacionar no passado. Merece ser lido tanto pelo sabor literário que Ruy consegue dar ao que escreve como pelas informações que traz. Interessante, entre outras, a parte em que ele fala sobre a coleção de discos de vinil de Lessa. Começa assim:

"Quando os cds surgiram e tomaram a indústria fonográfica, em fins dos anos 80, todos os patetas do mundo nos desfizemos de nossas coleções de LPs. Era como se, de repente, aquele formato de disco que por 40 anos nos servira tão bem - e no qual nos habituáramos a ouvir a perfeição - se tornasse portador de lepra."

Eis o acesso:
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1112857-sonho-de-ivan-lessa-era-estacionar-no-passado.shtml

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A photo acima, que ilustra o artigo, está creditada a Heloísa Seixas, escritora, mulher de Ruy Castro.

Mais sobre discos de vinil:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/07/musica-de-todos-os-dias.html

segunda-feira, 2 de julho de 2012

A música de todos os dias

Jorge Adelar Finatto

photo: Edu da Gaita, 1959

Escrevi sobre o toca-discos que comprei para escutar meus velhos discos de vinil.* Agora estou na fase de limpar, organizar e, claro, ouvi-los. São todos elepês (long-play, disco grande), como se dizia, em oposição aos compactos. A experiência é uma feliz redescoberta.

Reencontro gravações primorosas. O som do vinil é o som original da gravação, com as nuances todas, os detalhes, a limpidez que não há no cd. Parece que existe mais transparência, como se estivéssemos na sala diante dos músicos. O som do cd soa mais abafado.

Talvez isso não passe de impressão, não sou expert no assunto. Mas como disse aquele velho filósofo grego, numa tarde de calor, sentado debaixo de uma oliveira, enquanto olhava o mar e os barcos, na beira do Mediterrâneo: o que é de gosto regala a vida. Acho mesmo um milagre que a simples passagem de uma agulha pelos microssulcos do vinil produza a maravilha.

Entre os discos que já organizei, estão Please, please me, Beatles, 1963; Minas, Milton Nascimento, 1975; Meus caros amigos, Chico Buarque, 1976; Feito em casa, Antonio Adolfo, 1977; Amoroso, João Gilberto, 1977; Sol do meio-dia, Egberto Gismonti, 1978; Edu da Gaita, Edu da Gaita, 1979; Roberto Sion, Roberto Sion, 1981; A música livre de Hermeto Paschoal, Hermeto Paschoal, 1985; Balãozinho, Eduardo Gudin, 1986; Canta, canta, minha gente, Martinho de Vila, 1988; Three windows, The modern Jazz Quartet, 1988; La grande réunion, Stephane Grappelli e Baden Powell, 1989; Grandes compositores, Dorival Caymmi, 1990; Cartola ao vivo, Cartola, 1991(gravação de 1978).

A arte das capas é, em geral, feita com capricho, havendo esmero na concepção e montagem de textos e imagens.

No disco do gaúcho Edu da Gaita (Eduardo Nadruz, 1916 - 1982), por exemplo, está reproduzida a página de sua carteira de trabalho onde, no campo profissão, foi registrado: músico excêntrico. O ilustre funcionário público escorregou no adjetivo. Desconhecia, talvez, que se tratava de um dos mais importantes e respeitados artistas brasileiros, senhor de uma carreira brilhante com seu instrumento, a harmônica de boca.

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*Uma viagem sentimental
 http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/06/uma-viagem-sentimental.html

Foto de Edu da Gaita: site oficial do artista:
http://www.edudagaita.com.br/

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Risco luminoso

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto



O que nos liga à vida é um fio muito tênue. Traço de luz, sopro divino. A gente nunca sabe quando o encanto vai se quebrar. A obra do artista é grito em meio ao nada, risco luminoso na escuridão profunda. Aquele que cria acende a lamparina, levanta o archote. A arte registra o mistério e a  fragilidade da nossa passagem pelo mundo.

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Risco, em espanhol, significa penhasco alto e escarpado. Em português, uma acepção possível é de traço numa superfície, como papel, por exemplo: um esboço, um desenho, uma gravura, uma fotografia,  um texto.
Viver é sempre um risco, seja no sentido de uma narrativa ou de um perigo. Vivemos e corremos muitos riscos. O risco, inclusive, de um sentimento de leveza e felicidade.

terça-feira, 26 de junho de 2012

A casa do seu Wolf

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto. Araucária e azul. Passo dos Ausentes.


A casa do seu Wolf era uma construção alemã em estilo bávaro, localizada na rua Lucas de Oliveira, no bairro Petrópolis, em Porto Alegre. Às vezes passo por ali, pois é o caminho que faço a pé para a banca de jornal, quando estou na cidade. Sempre fico feliz de ver que a velha casa continua no mesmo lugar. 

Uma majestosa araucaria angustifolia (pinheiro brasileiro) existe ainda  no pátio em frente. Ao lado, algumas árvores resistem, como abacateiros que, nessa época de início de inverno, exibem rechonchudos abacates. O terreno da casa é íngreme, eleva-se para os fundos numa inclinação acentuada, mede cerca de 25 metros de frente por mais ou menos 100 de comprimento.

Quando tinha nove, dez anos, morei na rua Dona Eugênia, perto do seu Wolf. Havia poucos edifícios. Nas casas simples, algumas de madeira, viviam famílias de origem alemã, negra, portuguesa, uruguaia, judia, italiana e outras, numa diversidade humana típica do nosso país.

Éramos meninos e meninas pobres e remediados, formávamos uma comunidade fraterna. Brincávamos juntos quase todos os dias. Em festas como São João e carnaval,  os adultos participavam. Eram comemorações feitas na rua, especialmente na Lucas.

De vez em quando, no forte verão, o seu Wolf e a mulher dele nos convidavam pra tomar banho na piscina que tinham entre pés de mamão, laranjeiras, uvas e canteiros de verduras. E lá passamos muitas tardes alegres da infância.

Colho essa recordação toda vez que caminho naquela rua.

Sei que a vida de uma araucária pode durar bem mais de 200 anos. Parece muito. No entanto, certas lembranças vivem pela eternidade dentro de nós.

O que o coração diz é que a casa do seu Wolf, há muito tempo, já não é mais apenas a casa do seu Wolf. Um pedaço da nossa infância está lá, à sombra do vetusto pinheiro.