quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Cuando Dios hizo la luz

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto. Colonia del Sacramento, Uruguai.
 
Cuando Dios hizo la luz, yo ya debía tres meses
(Quando Deus fez a luz, eu já devia três meses)
 
 
A maneira espirituosa e bem-humorada de ver a vida é o que distingue a calma do desespero. Ante uma situação difícil (e elas acabam surgindo), o melhor é manter a serenidade e buscar as possíveis saídas (que sempre existem).

O desespero é um mau conselheiro, timoneiro de um navio enferrujado, carregado de tristeza e melancolia, que navega torto pelo mar afora rumo ao inevitável abismo.
 
O bom humor ajuda a manter a alegria (essa coisa que começamos a perder ao nascer) e, com ela, a saúde.

O espírito leve é um poderoso amigo na luta contra os tombos da condição humana (que, como todos sabemos, nem sempre é fácil).

A frase sobre Deus e a luz (uma pérola) é mais um dos grafites montevideanos que recolhi na minha última viagem ao Uruguai.

Grafites como esse levam a rir e a pensar. Promovem uma reflexão qualificada e irônica (sem ser amarga) sobre a existência. Não querem vender coisa alguma, apenas comunicam algo que acaba influenciando positivamente o nosso estado de espírito.

Comprovam que, mesmo diante do horror e da náusea, sempre podemos encontrar algum encanto, alguma graça, no ato de viver. 

Fiquei olhando o grafite e pensei: é bom estar vivo, andando por essas ruas, sem desesperar em relação ao que vem por aí. Ninguém tem controle sobre isso.

Depois fui até o café da esquina. Abri o livro que tinha comprado do poeta uruguaio Mario Benedetti e nele anotei a frase.

A tarde estava quase completa, agora misturada à garoa que começou a cair (ficou completa com a chegada da taça de café com leite com pão e manteiga e com o início da leitura dos poemas).

Sim, é bom ir vivendo dia a dia, hora a hora, café a café, livro a livro, cada instante a seu modo, como se tivéssemos essa sabedoria, como se nos tocasse viver  a eternidade toda pela frente. Como se não houvesse essa dor.
 

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

O tecido da tua ausência

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto

 Na estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes, ouvi de Juan Niebla, o músico cego, o seguinte depoimento, enquanto bebíamos uma taça de café preto com pão torrado. Pediu-me que tomasse por escrito suas palavras.*

Faz tempo que partiste e não escreveste uma carta sequer (um amigo sempre procura no correio pra mim).

Nem cartão postal, nem telefonema, nem e-mail. Nada. Silêncio absoluto.
 
Eu me prometi que não sentiria mais. Não iria mais até a janela escutar teus passos no vento. Nem te encontraria nos sonhos outra vez. 
 
O trem fantasma chega no meio da madrugada na estação de Passo dos Ausentes. Eu ouço o barulho ritmado das rodas nos trilhos. Às vezes pego o capote, o chapéu e a bengala e vou até lá. Volto sempre de mãos vazias.

photo: j.finatto. Estação da Ausência
 
A tua face vai sumindo da memória dos meus dedos (queria mesmo que fosse assim, como desligar uma lâmpada).

O desespero que sinto não é tanto pela tua ausência: é pelo espectro que hoje eu sou. Perambulo pela casa conversando com minha sombra. O aroma das madressilvas entra através das janelas em novembro como a dizer que vale a pena esperar.

Eu seguro o bandoneom e começo a tocar o Concierto Andaluz de Joaquín Rodrigo, que é um modo de me iluminar e suportar.
 
Faz tempo de ti. Não gosto do silêncio imemorial dessas noites (a falta da tua voz no breu).

O ruído do movimento do ponteiro do relógio em meu pulso é seco e aflitivo.

Ando tanta escuridão, tanta. Às vezes me pego acendendo todas as luzes da casa.
 
Ofereço-te este ensaio no escuro sobre o tecido da ausência.

Ei-lo.  Eis-me.

Um farelo de tua ausência apenas. O mais é o que não se diz. Desmesurado sentimento. Não cabe na folha de papel, na página volátil de um blog.

Viver é maior que qualquer literatura.

Sinto cheiro de terra molhada. Em algum lugar está chovendo agora.

Talvez caminhes sozinha na chuva.

O resto é relâmpago. Conjuro da solidão.

Um raio de luz no ventre da nuvem.

 
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*Juan Niebla é músico em Passo dos Ausentes. Admitido por concurso público em 1943, ocupa o cargo de músico municipal na estação de trem abandonada da cidade, transformada em centro cultural. Toca bandoneom nas terças, quintas, sábados e quando lhe dá na telha. Tem 85 anos, é cego desde os 16 e não aceita a aposentadoria compulsória. Texto ditado por Niebla em 24 de novembro, 2012, na Estação dos Ausentes.

A claridade do coração:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/04/claridade-do-coracao.html
 

sábado, 1 de dezembro de 2012

Palavra viva

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto. Passo dos Ausentes. Vale do Olhar


Nem todo livro se escreve só por vaidade.

Numa certa medida, a vaidade, sem exageros, faz bem. Como quando nos leva a cuidar melhor de nós e dos outros. É benigna se se traduz em maior zelo pelo modo como fazemos as coisas.

A vaidade, por exemplo, do trabalho bem feito é justa. 

Os melhores textos, creio, surgem a partir de motivações internas profundas, que se impõem movidas pela necessidade de expressar e comunicar.

Escrevemos para entender melhor o mundo e a nós, para sermos ouvidos e, se possível, amados. 
 
Como o músico, o escritor dedilha seu instrumento. Um toco de lápis sobre a folha de papel.

Escrever é um concerto solitário num teatro vazio.

Quem escreve espera que haja alguém do outro lado. Nem sempre há.
 
Meu primeiro contato com a palavra foi através do jornal que o avô lia, ao lado da janela por onde o dia entrava. E também através das cartas que ele escrevia, com a caneta de tinta azul, e daquelas que recebia.

Amar os livros e gostar de escrever é uma coisa. Viver de literatura é outra. No início, achei que como jornalista estaria mais perto da literatura do que em outras profissões. Não era verdade.

A grande carga de trabalho do jornalismo, a intensidade e as preocupações da profissão não permitem maior elaboração do texto. A disponibilidade de espírito para criar fica muito prejudicada. O estresse é constante.

Não consegui em outras profissões o que não alcancei no jornalismo: conciliar trabalho e criação. Descobri que escrever literatura não combina com sobrevivência. Contam-se nos dedos os que conseguem ganhar a vida escrevendo. 

Escrever é uma atividade clandestina, exercida nas horas mortas (na verdade, as mais vivas).  Pelo menos pra mim tem sido assim, falta-me talvez engenho e arte para reunir as coisas.

O ato de escrever é o que traduz melhor a procura de transcendência na minha passagem pela condição humana.

Escrevo com gosto e entusiasmo e nunca fiz disso meio de vida. Sou amador na inteira extensão do termo: amo o que faço e o faço de forma não profissional.
 

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Carlos Pena Filho

Jorge Adelar Finatto

 
Os mascarados. Autor: Passarinho. Fonte: site da Prefeitura de Olinda:
www.olinda.pe.gov.br
 
 
Pernambuco tem dado ao Brasil artistas e pensadores da mais alta expressão. O poeta Carlos Pena Filho (1929 - 1960) está entre eles. Trata-se de um senhor artesão do verbo. 
 
Poeta daqueles que devemos ter sempre por perto, com um livro à mão, principalmente nos dias de hoje em que a beleza e a força da palavra estão tão diluídas.
 
Nascido no Recife,  onde morreu muito jovem num desastre de automóvel, Carlos Pena Filho faz parte da linhagem de gente como João Cabral de Melo Neto, Gilberto Freyre e Manuel Bandeira, entre outros pernambucanos que traduzem com requintada arte o modo de ser, sentir, fazer e sonhar do nosso povo.

Um poeta de fina extração. Como todo bom bardo, diz coisas a que o comum dos mortais, por si só, dificilmente tem acesso.
 
As mãos do poeta tornam sensível o invisível, aproximam o remoto, iluminam o sombrio.
 
 A seguir, para despertar o interesse do leitor, um poema da obra Melhores Poemas de Carlos Pena Filho, Global Editora, 4ª edição, São Paulo, 2000.


A mesma rosa amarela

Você tem quase tudo dela,
o mesmo perfume, a mesma cor,
a mesma rosa amarela,
só não tem o meu amor.

Mas nestes dias de carnaval
para mim, você vai ser ela.
O mesmo perfume, a mesma cor,
a mesma rosa amarela.
Mas não sei o que será
quando chegar a lembrança dela
e de você apenas restar
a mesma rosa amarela,
a mesma rosa amarela.*

E esta perfeita tradução de uma cidade, nos versos do poema Olinda:

Olinda é só para os olhos,
não se apalpa, é só desejo.
Ninguém diz: é lá que eu moro.
Diz somente: é lá que eu vejo.

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*Este poema, com música de Capiba, tornou-se conhecido em todo o país, fazendo muito sucesso nas vozes de Maysa, Nélson Gonçalves, Tito Madi e Vanja Orico, entre outros. Informação colhida na obra citada Melhores Poemas.

Olinda, a epifania do olhar:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/08/olinda-epifania-do-olhar.html
 

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Hay vida antes de la muerte?

Jorge Adelar Finatto
 
 
photo: j.finatto

 
Em Montevidéu, até os grafites têm espírito. As inscrições públicas nas ruas montevideanas não perdoam a superficialidade. Uma vez lidas, não deixam o caminhante em paz.
 
Pressentindo que seria um absurdo virar simplesmente as costas e ir embora, resolvi fotografar e trazer comigo a inquietante frase.

Hay vida antes de la muerte?

Não bastassem as perplexidades e angústias de cada dia, acrescentei agora mais esta ao meu baú de assombros.

Afinal, haverá mesmo vida antes da morte ou seremos apenas tristes fantoches com a boca de pano rasgada e olhos opacos, às voltas com o anonimato, o desamparo, a solidão?

O que sei é que há dias em que me sinto muito vivo. Parece que a morte ainda não foi inventada. Em outros, contudo, viver não vale um caco colorido de vaso quebrado.

Hay vida antes de la muerte? Si, pero...
 
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Texto publicado em 14 de junho, 2011.

domingo, 25 de novembro de 2012

Fanicos e farfalhas

Jorge Adelar Finatto


photo: Wikipédia. Autor: Jon Sullivan
  


Quem viu alguma vez uma joaninha caminhando na página de um livro ou sobre uma folha verde sabe do que estou falando. É talvez o acontecimento mais importante do universo.

Nenhuma literatura e nenhuma filosofia do mundo valem os passos da joaninha.

Só que pouca gente percebe o engenho e a arte por trás da  construção da frágil joaninha.

Existem muitos outros assuntos importantes para se tratar. Um blog não deve ignorar isso.
 
O fato, contudo, é que me encanto com os farelos do mundo. As coisas pequenas me atraem, as outras me enfadam, quando não revoltam.

Encontro claridade nos fanicos da existência.

Tudo que é breve e pequeno se parece com estar vivo e me interessam sobretudo.

Os verdadeiros e últimos sentidos habitam além das aparências da assim chamada realidade.
 
O mundo silencioso das migalhas me é, por isso, muito caro e diz mais que um tratado ontológico.
 
Quando se perde a palavra, é como se perdêssemos a vida.
 
Na arte, ao menos, podemos sonhar um pouco, levitar acima dos mausoléus e crematórios existenciais. Mas sei também que não podemos viver entre as nuvens.

Deve haver um caminho de passagem entre o porão e a copa das estrelas, entre a imensidão da Via Láctea e os passos humildes da joaninha.

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 Foto de joaninha. Fonte: Wikipédia. Autor: Jon Sullivan (PD-PDphoto.org]
  

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Bibliotecas

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto



Tantos livros me assustam
trago uma ignorância milenar
guardada num lugar
claro do meu ser
uma ignorância - ou a sabedoria -
do sol às 7 da manhã


 
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Poema do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, Porto Alegre, 1983.