domingo, 30 de setembro de 2012

Paris, um passeio literário

Jorge Adelar Finatto

 
photo: j.finatto


Aquela era uma suave manhã de outono em Paris, novembro, 2011. Saí do hotel disposto a rever, descobrir e fotografar prédios onde viveram escritores e pensadores que admiro, entre o final do século XIX e início do XX. Um percurso entre o Quartier Latin, Montparnasse, Jardin du Luxembourg e Saint-Germain-des-Prés. Os canteiros e vasos floridos do Jardim do Luxemburgo, onde está o palácio do senado da França, brilhavam em suas muitas cores. Comecei por ali a caminhada.
 
photo: j.finatto

Como qualquer cidade, Paris vive nos detalhes. Na capital francesa, eles não são poucos e têm a ver com o ambiente de suas ruas, parques, praças, cafés, museus, o rio Sena, isso tudo aninhado numa arquitetura preservada, numa cultura e numa história que influenciaram o resto do mundo. Paris é o cenário onde muitos homens e mulheres de diversas origens viveram e criaram, construindo obras que se tornaram referência.

O melhor jeito de conhecer é andar a pé, tomando cuidado para não ser atropelado. O trânsito de veículos é pesado. Em Paris, as pessoas também andam com pressa e preocupadas, nas ruas e calçadas. E, como no restante do planeta, em Paris não se vivem tempos cordiais.

A Paris humana, gentil, berço da cultura e lugar de convivência, que tanto se presta ao assim chamado turismo cultural, está visceralmente ligada ao passado. As três primeiras décadas do século XX, por exemplo.

Nas cercanias do Jardin du Luxembourg, encontramos o edifício nº 27 da Rue de Fleurus. O apartamento-estúdio alugado em 1903 por Léo Stein, irmão da escritora e animadora cultural Gertrude Stein (ambos americanos), neste lugar, tornou-se importante ponto de encontro de artistas e escritores até 1938, quando o senhorio retomou o imóvel.

photo: j.finatto

Gertude ali viveu com o irmão e depois com a companheira Alice B. Toklas. O filme Meia-Noite em Paris, de Woody Allen, dá uma ideia de como eram aquelas reuniões.

photo: j.finatto

Entre os frequentadores, havia gente como Picasso, Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald e sua mulher Zelda, e muitos outros. Na época, a cidade foi destino de artistas e intelectuais de várias partes do mundo, principalmente americanos. Gertrude Stein, que gostava de passear pelo Luxembourg, teria então criado a expressão Geração Perdida para identificar os escritores vindos da América.

Não muito longe, na Rue Descartes, nº 39, situa-se o edifício onde o poeta Paul Verlaine viveu o último ano de sua vida e morreu, em 1896. No mesmo edifício, Hemingway alugou um quarto no último andar em 1921.

photo: j.finatto

No térreo, está localizado o restaurante La maison de Verlaine, onde o atendimento é humano.

photo: j.finatto

Descendo em direção à Notre Dame, encontramos, na rue Le Goff, nº 10, o Hôtel du Brésil, no qual o pai da psicanálise, Sigmund Freud, viveu durante um ano. Que eu saiba, esta foi a única "estada" do grande pensador e médico no Brasil.

photo: j.finatto

Não posso deixar de imaginar que pelo menos em algum dia, num momento de descanso, o então jovem Sigmund ficou a pensar sobre como seriam os brasileiros, as nossas palmeiras, praias e cidades. Não sei, porém, se disso lhe veio alguma claridade ou inquietação. Talvez ambas.

photo: j.finatto

Na rua Victor Cousin, nº 8, diante da Universidade Paris-Sorbonne (IV), está o Hotel Cluny Sorbonne; nele, há muito tempo, passou um período o poeta Arthur Rimbaud.

photo: j.finatto

Rimbaud, pelo visto, gostou muito do seu quarto, quando escreve Neste momento, eu tenho um quarto bonito.


photo:j.finatto

Ao lado, bem na esquina, na rue Cujas, nº 16, está o Hôtel des 3 Collèges, onde viveu García Márquez e lá escreveu, em 1957, o livro Ninguém escreve ao coronel, sua segunda obra. O escritor colombiano tinha então 29 anos, era jornalista e passava por sérios apertos financeiros. Diz-se que, vivendo uma fase de depressão, Márquez descia todos os dias até a portaria do hotel atrás de alguma carta da Colômbia, que nunca chegava.

photo: site do hotel https://www.3colleges.fr/fr/

Uma pequena circulada por esses lugares torna livros e autores mais presentes. A leitura de Paris é uma festa, de Ernest Hemigway, nos oferece um belo mapa dessa Paris literária, mexendo com a emoção e a imaginação da gente.

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Texto publicado em 11 de abril, 2012.
 

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Pilar, José e a rosa

Jorge Adelar Finatto 
 
photo: j.finatto
 
Todas as manhãs Pilar del Río cuida da rosa que cultiva ao lado da antiga oliveira que abriga, entre suas raízes, as cinzas do escritor português José Saramago (1922 - 2010), primeiro e até agora único Prêmio Nobel de Literatura de língua portuguesa.
 
photo: j.finatto

O fato acontece por volta das 9h na pequena praça em frente da Fundação José Saramago, na Rua dos Bacalhoeiros, em Lisboa, perto do Tejo.

Pilar também tira o pó do banco de mármore como se em seguida alguém fosse ali sentar para ler um livro ou simplesmente descansar à sombra da oliveira, transplantada da aldeia de Azinhaga, na Província do Ribatejo, onde nasceu Saramago. 
 
photo: j.finatto
 
Esta é a primeira atividade do dia da jornalista espanhola, viúva do escritor, que preside a fundação. O edifício onde está instalada leva o nome de Casa dos Bicos e pertence ao município. Foi construído no século XVI e  teve por modelo o Palácio dos Diamantes, em Ferrara, Itália. 
 
photo: j.finatto. Casa dos Bicos
 
A rega, o cuidado da flor, do lugar, da memória.
O cálido gesto de Pilar vale um milhão de palavras.
Um homem só morre de verdade quando deixa de ser amado.

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José Saramago, presença e falta:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/06/jose-saramago-presenca-e-falta.html

Pilar del Río: "Não há democracia" (jornal Expresso, Portugal):
http://expresso.sapo.pt/pilar-del-rio-nao-ha-democracia=f747258
 

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Bagagem

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto
 

Trago esses poemas comigo
eles me acompanham
desde a infância
veem a minha tristeza
me iluminam nos dias
de inverno

carrego comigo
esses poemas
e cheguei vivo
ao cais deserto

ratos caminhavam
solenes na praça
a cidade dormia
um sono de pedra
o mundo afundou
talvez fosse abril

não importa
- diz o coração
não importa:

dos meus fantasmas
eu sou o mais feliz

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Do livro O Fazedor de Auroras, J. Finatto, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
  

terça-feira, 25 de setembro de 2012

A invasão dos balões misteriosos

Jorge Adelar Finatto

photo de balão*
 

Um estranho balão singrou os ares e montanhas de Passo dos Ausentes em junho de 2010. O fato provocou um grande alvoroço na pequena cidade. Não estamos acostumados com coisas voando por cima das nossas cabeças.

Porém, o que no início foi motivo de admiração e espanto, depois tornou-se razão de preocupação.

Outros balões e dirigíveis, de cores e formas variadas, passaram a cruzar, nos últimos tempos, nosso espaço aéreo, vindos sabe Deus de onde. Demoram-se em voos lentos e circulares, a observar-nos sem a menor cerimônia, e depois desaparecem pelos lados do Contraforte dos Capuchinhos.

As aparições misteriosas dos aerostatos começam a causar apreensão, principalmente entre os fantasmas, que transitam livremente pelas nossas ruas, habitam os sótãos, telhados e as copas de árvores. Eles vivem por aqui desde tempos imemoriais sem ser incomodados. Sempre conviveram bem com os vivos. Se forem descobertos por olhos indiscretos, seus dias entre nós estarão contados.

Palomar Boavista, astrônomo-mor, e Claudionor, o Anacoreta, foram convocados para explicar as possíveis razões das incômodas e coloridas visitas, em reunião extraordinária da Sociedade Histórica, Geográfica, Filosófica, Literária, Geológica, Astronômica, Teatral e Antropofágica de Passo dos Ausentes, que tem na presidência Don Sigofredo de Alcantis, o velho filósofo guardião da nossa memória.

Somos uma cidade invisível a 1800 metros de altitude na região serrana a nordeste do Rio Grande do Sul. Condições atmosféricas intratáveis nos isolam do resto do mundo, desde que por aqui chegaram nossos antepassados, um grupo de índios guaranis e padres jesuítas que conseguiram fugir e sobreviver à destruição dos Sete Povos das Missões, levada a cabo por exércitos espanhóis e portugueses no século XVIII. Os sobreviventes fundaram Passo dos Ausentes em 1759.

Lugar íngreme, difícil de sair e mais ainda de chegar, está situado no topo de antiquíssimo maciço de montanhas de rude basalto na Serra da Ausência.

O açoite implacável dos ventos nos fustiga o ano inteiro.

Vivemos na região conhecida pelo nome de Campos de Cima do Esquecimento. Não estamos no mapa do Rio Grande do Sul (nem ao menos um pontinho). Não existimos oficialmente. Tramita um processo junto aos órgãos da administração do Estado, desde o ano de 1805, no qual pedimos o reconhecimento da nossa comunidade, com sua história e cultura, e a inclusão nos mapas.

As respostas sempre foram negativas. Dizem que não há provas concretas da existência desse lugar e menos ainda de que aqui vivem pessoas. Não fosse patético, seria cômico.
 
photo de balões e dirigíveis. autor: Jean-Pierre Clatot (AFP)

Nos tomam por seres imaginários. O governo mandou no passado duas expedições para nos procurar, uma em 1936 e outra em1989, isso depois de muita insistência de nossa parte.

Ao comando de geógrafos e historiadores de gabinete e muy pouco saber, as tais expedições perderam-se no caminho, desistiram e foram embora. O lugar é quase inacessível devido à acidentada topografia que envolve os imensos paredões de basalto, cobertos de verde mata, córregos e pinheirais. Além das névoas eternas, as chuvas recorrentes e o frio intenso nos separam do mundo.

Claudionor e Palomar, após alguns dias de estudos, expuseram à ansiosa assistência as duas prováveis explicações para os balões e dirigíveis.

Com voz grave e pausada, Palomar disse que a primeira hipótese é a de que estamos sendo visitados por seres de outro planeta, que consideram Passo dos Ausentes a melhor porta de entrada na Terra, um lugar invisível que não chama de ninguém a atenção.

- A segunda, menos plausível - acrescentou Palomar, figura magra, alta e de farta barba branca -, é que se trata de observadores aéreos do governo para nos localizar. Diante do fracasso das expedições terrestres do século passado, estariam enviando novas equipes para investigar. Essa hipótese beira a quimera, diante da incompetência e desinteresse dos homens que dirigem o Estado, ontem como hoje.
 
Don Sigofredo de Alcantis após tomou a palavra. Para ele, a primeira explicação seria a menos perigosa.

- Se forem seres de outra esfera cósmica, não haverá qualquer problema ou dificuldade, porque alguns esquisitos a mais por aqui não vão fazer a menor diferença. Estamos habituados a toda sorte de estranhamento. Mas se for gente do governo querendo nos espionar, aí tudo de ruim pode acontecer. No dia em que o asfalto e a política chegarem a Passo dos Ausentes, será o nosso fim. A invisibilidade ainda é a nossa melhor arma contra o desaparecimento.

O silêncio que se seguiu fez com que se ouvisse o espesso rumor do vento nas folhas das altas palmeiras da Praça da Ausência.

Para espantar o frio e os arrepios interiores, Mocita de La Vega, secretária-geral e musa amantíssima dos vetustos bardos presentes, serviu-nos seu licor de leite com noz-moscada.

Somos invisíveis. Não nos vêem e não nos sentem. Habitamos os Campos de Cima do Esquecimento.

Juan Niebla, o músico cego que toca bandoneón na estação de trem abandonada da cidade, executou Adios Nonino, de Astor Piazzolla, ao final da sessão. Com tanto sentimento que até mesmo Claudionor, o Anacoreta, não pôde evitar o brilho de uma lágrima.


photo: j.finatto

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Texto revisto, publicado originalmente em 9 de julho, 2010.
Outras referências de Passo dos Ausentes:
Alberta de Montecalvino:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/07/alberta-de-montecalvino.html
A cidade perdida: as origens
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/09/cidade-perdida-as-origens.html
A misteriosa expedição da Nasa a Passo dos Ausentes:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/08/misteriosa-expedicao-da-nasa-passo-dos.html
A viagem do balão vermelho:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/06/viagem-do-balao-vermelho.html
*O crédito da photo do balão será dado quando conhecida a autoria
 

sábado, 22 de setembro de 2012

A primavera na cidade, a quem interessar possa

Jorge Adelar Finatto 
 
Começa, enfim,
a primavera no Brasil.
Assim seja.
  
 
photo: j.finatto
 


photo: j.finatto



photo: j.finatto


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photos colhidas na Exposição de Orquídeas de Gramado, Rio Grande do Sul, 21 de setembro, 2012.
 

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

A visita dos pássaros

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 
O cenário tumultuário dos últimos dias – ventos, chuvas, raios, trovões -  revela uma passagem difícil para a estação das cores e perfumes que chega depois de amanhã.
A primavera abre caminho a duras penas na escuridão.
Na varanda do escritório, tenho o meu viveiro de pássaros livres. Iluminam os dias, pousam nos galhos que se encostam no balcão, passam boa parte do tempo buscando as frutas que  sirvo nos pequenos potes. São muitos. Adoram banana. Também gostam de maçã, mamão e laranja.

photo: j.finatto

Os pássaros retribuem o alimento com sua presença, seu canto e sua cor. Sabem ser agradecidos a quem lhes quer bem. Mesmo nos dias escuros de inverno eles aparecem. Nos encontramos em todas as épocas do ano.
Convivemos como bons amigos, cada um cumprindo o ofício de viver e partilhar.

photo: j.finatto

Os meus/nossos pássaros se misturam agora ao cheiro dos jasmins que amadurecem e tudo fica ainda mais bonito.
A permanência da vida contra o medo e a falta de claridade.

photo: j.finatto
 

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Encarceramento degradante, danos morais

   Jorge Adelar Finatto
 
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro condenou o Estado do Rio a indenizar, por danos morais, presos que estiveram recolhidos na 110ª Delegacia de Polícia de Teresópolis, em razão de encarceramento em condições degradantes. A ação foi ajuizada pela Defensoria Pública e o valor a título de indenização foi fixado em R$ 2 mil, para cada recluso autor da demanda.

A decisão, em sede de embargos infringentes (Processo nº 0009573-98.2005.8.19.0061), foi prolatada na quarta-feira passada, 12 de setembro, e está divulgada no site do TJRJ. O acórdão ainda não foi publicado. Destaco o seguinte trecho, divulgado no site:

“Urge reconhecer que a crueldade no cumprimento da pena se configura diante da superlotação carcerária e do tratamento desumano aos presos. In casu, os autores não têm camas, ou mesmo espaço suficiente para dormirem todos no chão ao mesmo tempo (o que já seria indigno). A aeração é insuficiente e a umidade excessiva. Também falta luz solar e local apropriado para as necessidades fisiológicas dos presos. Tudo a contribuir na proliferação de bactérias, fungos, vermes e vírus, além das mais diversas doenças. Não é demasiado asseverar, nessa linha de raciocínio, que o tratamento dispensado aos presos no Brasil equivale a verdadeiro delito de tortura”, afirmou o desembargador Rinaldi no voto vencido quando da apelação.

O entendimento do desembargador Luciano Rinaldi de Carvalho, antes vencido na 14ª Câmara Cível, acabou prevalecendo nos embargos por 5 a 0.

A decisão é importante por marcar a posição do Judiciário em relação à absurda realidade dos estabelecimentos penais brasileiros. Embora sujeita a recurso, é de se esperar que outras decisões venham, em breve, obrigar o poder público a cumprir a  Constituição Federal (art. 5º, XLIX: é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral) e a Lei de Execução Penal (nº 7.210/84).

A superlotação das penitenciárias é fonte primária de produção de violência e desumanização da sociedade brasileira. As péssimas condições de vida dos detentos, na maioria das prisões, são bastante conhecidas.

A situação retrata a pouca importância que o Estado tem dado ao problema e reflete, também, uma inaceitável tolerância com a violação dos direitos humanos no cárcere. O resultado mais evidente é o aumento da criminalidade nas nossas cidades.

O alto índice de reincidência criminal é uma calamidade no Brasil.

Novidade? Nenhuma. Os apenados um dia regressam para as ruas. Sem ter recebido tratamento adequado, sem oportunidade de se reintegrar socialmente, voltam ao crime, fazendo novas vítimas. Minha percepção, dos anos em que atuei como juiz na execução penal, é de que parcela significativa dos apenados não volta ao crime se tiver oportunidade de mudar de vida. Creio que este número pode chegar a mais de 60%.

Os prejuízos econômicos e sociais causados pela reprodução do crime, a partir da execução penal ineficaz e desumana, são imensos, afetando o próprio desenvolvimento da nação. Alguma autoridade já parou para analisar o custo da criminalidade? Não só pelas perdas materiais, mas pelo insuportável dano representado pela destruição de vidas e da saúde de milhares de pessoas todos os anos.

Neste aspecto, o Brasil ainda vive no subsolo. É dever do Estado receber presos em condições mínimas de salubridade, possibilitando trabalho e ensino profissional, estudo, acompanhamento médico e psicológico, desenvolvimento de atividades úteis à comunidade, além da indispensável convivência com familiares. O rompimento dos laços, ainda que precários, é uma agravante na vida do recluso.

Se a Constituição e a LEP  forem cumpridas, haverá alguma dignidade nos presídios e cadeias do país. E os cidadãos sofrerão menos com a violência aqui fora.

Isto, é claro, nada tem a ver com oferecer hotel cinco estrelas a quem praticou crimes.

O caminho para a ressocialização é possível, mas é preciso decisão política e investimento (assim como na saúde e educação). O abandono dos presos, nas atuais condições, só se presta à perpetuação de uma sociedade violenta e sem perspectiva real de dar um salto civilizatório.

As penas acessórias (ilegais, degradantes e cruéis) presentes nas penitenciárias, desde a violência sexual até as doenças lá contraídas, precisam ser eliminadas.
 
Lembrai-vos dos que estão em cadeias, como se tivésseis sido presos com eles, e dos que estão sendo maltratados, visto que vós mesmos também estais ainda num corpo. (Bíblia, Apóstolo Paulo, Hebreus, 13:3)

O texto de Paulo, escrito em Roma, por volta do ano 61 da Era Cristã, é rico em sabedoria e uma séria advertência contra a desumanização das cadeias. Um importante alerta contra a indiferença da sociedade e do Estado em relação ao abandono dos prisioneiros.

A urgente construção de novas casas prisionais, dentro de requisitos mínimos previstos na lei, é uma decisão que não pode mais ser adiada.

Este mundo de sombras e de morte tem de ser resgatado, deixando de ser casa para cadáveres vivos, no lúcido dizer de Dostoiévski, em seu livro Recordações da Casa dos Mortos, para transformar-se na casa da esperança.

O Brasil é hoje uma das grandes democracias do planeta. É injusto para o cidadão ter de conviver com esse sistema que não respeita direitos humanos de presos e tampouco das vítimas, reais e potenciais, que sofrem as consequências do caos instalado.

E, por favor, não se fale em falta de recursos como razão para manter as coisas como estão. O país que tem dinheiro para realizar a Copa do Mundo de Futebol em 2014 e a Olimpíada em 2016 não pode se valer deste argumento.

 

sábado, 15 de setembro de 2012

O náufrago que escrevia na água

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto


O náufrago escreveu sobre a falésia da ilha, em verdes letras de folhas de bananeira, um pedido de socorro. Estava no lugar havia muitos dias, em meio a palmeiras, pássaros, cachoeiras, borboletas e ventos.

A ilha era muito isolada. Nem risco de avião havia naquele céu austral.

O tempo passou e nada acontecia. O náufrago começou então a escrever breves textos na areia. Não sabia se aquilo era poema, conto, crônica, desabafo ou simples diário de náufrago.
 
Registrava coisas, sentimentos, estados de espírito, sonhos, pesadelos, esperanças, fugas, mistérios. A água do mar vinha e apagava tudo quando a maré enchia.

O náufrago não tinha lápis nem calepino (gostava de dizer esta palavra esquisita em voz alta, no silêncio da ilha).

Um dia ele desistiu de ser descoberto. Ninguém ia escutá-lo mesmo no fim de mundo onde vivia.

Passou a escrever direto na água com a ponta do dedo.
 
As letras azuis eram desenhadas nas linhas brancas da espuma. Escrevia com o fervor das primeiras e últimas palavras dos afogados, escrevia para sobreviver naquele mar de solidão.

As palavras afastavam-se da ilha e desfaziam-se em direção ao horizonte.

O náufrago era agora o homem que escrevia na água.

Escrevia para os peixes e as gaivotas.

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Texto publicado em 22/8/2011
 

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

A pele cor-de-rosa da chuva

Jorge Adelar Finatto
 
 
photo: j.finatto
 

O ser humano tem direito constitucional de andar nas nuvens.

A sentimental algaravia.
 
Ah, um dia livre pra sair por aí. O que ela mais gosta.

As horas difíceis, cotidianas, que a vida tem. Poucos momentos de gozo. Vida bonsai. Um ermo. Os medos, medo.
 
Um dia se deu conta que. Olhou no espelho, estranhou. Quem é essa? Deus!
 
Vivia no austero, no precavido jeito.

Desde que ele se foi, enfim. Adeus, adeuses. Casa abandonada. Depois só quireras, uns fanicos de dar dó, uns cacos. Ninguém mais.
 
Dia feriado, sábado, domingo, aniversário: nenhum fio de luz embaixo da porta, escuridão completa. Ninguém vem, ninguéns.

Coração solitário no meio dos corvos vorazes.
 
Noites em claro, sede. Janela sobre a cidade vazia. Invoca rezas antigas, banho de madrugada, copo dágua gelada, dorme diante da tv.
 
A solidão pintada na cara. Ocos dias de se viver. Só durezas.
 
Ah, bem-vindo, vento de abril. Na chuva sente-se protegida, agasalhada. Sai a divagar caminhos molhados. Os longes habitam a sua alma.

Peixes coloridos soltos no ar.

Sopram presságios no voo de algodão das gaivotas.
 
Moças saltam das janelas, invadem as ruas como ela. Anêmonas. Saias flutuam. Sombrinhas navegam no vento.
 
A esperança. Ninguém pode viver sem, nem ela nem. Se a solitude fosse um abraço.

Instantes migalhas de vida são. Breves eternidades.

Venham os dias, pois. Os novos caminhos.
 
Felicidade é relâmpago. Farândola no coração.

A pele cor-de-rosa da chuva.

Outono, outonos.
 
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Texto publicado em 9 de abril, 2010. 
 

domingo, 9 de setembro de 2012

A despedida

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 

Sentimental e reservado, ele não era de muita conversa. Um tanto melancólico talvez. Parecia sentir saudade de um mundo que um dia foi de alegria e companheirismo entre seus irmãos siameses. Devia ser um lugar perto do mar, com bastante peixe, alimento predileto.
 
Quando ainda era um gato bebê, nunca se viu mais chorão. Chegou aqui em casa no inverno, faz cinco anos. O único jeito de parar de chorar era deixá-lo entrar embaixo dos cobertores. Aí se acalmava, queria contato físico, calor humano (não tinha outro gato para se aquecer).
 
O Bacana tornou-se um adolescente calado, não gostava de reuniões e ruídos. Preferia o silêncio e o recolhimento do escritório a qualquer outro ambiente da casa. Era doce e cálido.

Apreciava também o muro do quintal. E gostava de sentar-se no quiosque em meio a vasos de flores, de onde podia admirar o Contraforte dos Capuchinhos, na lonjura, com suas montanhas azuis.

Caminhava em silêncio pela casa como só os gatos sabem fazer.
 
Às vezes, subia no teclado do computador, com o motorzinho de popa fazendo o rom-rom característico. Queria atenção. Só sossegava quando era acariciado, após alguns minutos.

Nessas ocasiões, sentava na estante perto da janela ao lado do volume encadernado de A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Depois descia a escada escarpada, ia para o pátio, silente e esguio como uma sombra.

No final de agosto, teve uma doença que o levou embora. Primeiro foi para a clínica veterinária onde ainda havia esperança (não muita) em sua recuperação. Até que veio o telefonema anunciando a morte.

Ficou o silêncio de seus passos pela casa.

Perdi os olhos azuis e a meiga presença do Bacaninha.

Falta um gato no escritório.
 

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Os saltimbancos

Jorge Adelar Finatto
 
 
photo: j.finatto. Veneza, Itália
 
 
A vida é um teatro de saltimbancos sem tempo para ensaiar. Nós somos os atores improvisados no oblíquo palco da existência. Vivemos o frágil instante imersos em acontecimentos sobre os quais não temos nenhum controle, ninguém tem.
 
Não existe papel fácil nessa tragicomédia. Todos os gestos, todas as falas são inaugurais, irrepetíveis, e não vêm precedidos de qualquer espécie de roteiro previamente organizado.

Viver não acontece num cenário ideal. Não recebemos script ao nascer. Construímos o personagem na medida em que vivemos a história.

Esta construção se dá através dos valores que recebemos, em casa e no mundo, e da crítica que fazemos em relação a esses mesmos valores. O pensamento crítico não dissociado do sentimento humano é o que pode nos valer na difícil composição.

O essencial é saber se temos capacidade de nos colocar no lugar do outro, de ouvi-lo, de nos comover com suas circunstâncias. E nunca aceitar a violência física, moral, intelectual ou de qualquer tipo como forma de legitimação e exercício de poder.

Raramente nosso desempenho sai como gostaríamos. Há sempre espaço para algo melhor, mais refinado, mais feliz talvez. No fundo queríamos um cenário mais luminoso e humano, um enredo menos sofrido, mais poesia e menos prosa.

Vivemos ao relento o sonho dos saltimbancos.

A peça teatral nunca se completa, não existe o grand finale. As histórias são cruas, comuns, às vezes com alguma luz, sempre tão diferentes, tão iguais.

Somos personagens em carne viva sobre o palco vazio, sozinhos diante do imponderável. Vivemos ao vivo, apresentação única. E não podemos rasgar a fantasia.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

A cidade dos ipês (e do medo nas ruas)

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto


Os ipês invadiram Porto Alegre nesses dias que antecedem a primavera (começa no dia 22 de setembro). A beleza dessas árvores nas ruas da cidade impressiona. No inverno passam sem ser notadas. Agora explodem.
 
A elevação da temperatura em agosto, em pleno inverno, precipitou a floração. Nos últimos dias do mês, contudo, voltou a esfriar bem, ventou, choveu. Não sei o que será das flores com a brusca mudança. Por enquanto estão aí.

Como todos os seres vivos, as flores precisam de reservas de saúde e paciência para agüentar o desequilíbrio provocado pelo homem. Uma coisa danada.


photo: j.finatto

Os ipês, como nós, são sobreviventes de um clima louco. As cores vivas, variadas e delicadas transformam o espaço público em algo mais bonito.

Numa cidade onde quase não se pode sair à noite a pé devido à violência, isto é um consolo. A cidade ferida sabe ser dura com a leveza e com a inocência. Mas ostenta, ironicamente, um alto nível de arborização, entre os maiores do mundo. O Guaíba com suas águas doces e largas colabora com esse ambiente.


photo: j.finatto

Não é possível ficar indiferente a um ipê de flores cor-de-rosa (ou brancas ou amarelas ou roxas) iluminando a calçada.

Na medida em que as flores vão caindo, formam tapetes no chão que os distraídos pisam.

Se alguém está pensando em se matar por esses dias, recomendo: antes do ato-extremo-pura-desilusão-ressaca-de-viver, saia um pouco de casa e vá andar pelas ruas do seu bairro em meio aos ipês. Talvez mude de ideia.

O espetáculo das árvores em Porto Alegre mostra que a vida pode ser muito mais do que fazem crer os semblantes tensos e melancólicos que habitam as nossas ruas.

 

sábado, 1 de setembro de 2012

Camafeu sentimental

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

Deve ter sido assim
num lugar assim
num tempo assim

ele foi feliz um dia
sem saber o que era
felicidade

Uma fotografia guardada há muito tempo na gaveta é um achado. Ele já esteve nesse lugar. Nem sabe mais quando. Uma velha casa de madeira entre pinheiros. Um córrego esperto cantando ali perto. Pode ouvi-lo agora claramente. Na janelas laterais, floreiras com gerânios de variadas cores.

Lá dentro, em volta de uma grande mesa, pessoas se reúnem para o café da tarde. Um alarido de véspera de primavera. O menino olha aqueles rostos iluminados. O cheiro de pão feito em casa, no fogão de ferro, se espalha por tudo.

Em volta daquela mesa, retratos na parede. Em volta da parede, o mundo gira em lentas rotações.

O aroma de jasmim invade o ambiente. No quintal, caminha-se entre laranjeiras, ameixeiras, romãs, pitangueiras, mamoeiros, parreira, abacateiros. O cinamomo florido abre os galhos perto do poço, o banco pintado de branco embaixo.

Há muito tempo ele não visitava a casa da infância.

As buganvílias exalam azul e branco no jardim.

O gato dorme entre novelos de lã na cadeira de balanço.

Um dia recortado no tempo. Pessoas vivendo sem medo da separação. Cálida alegria.

A fotografia, camafeu sentimental.

Deve ter sido assim, num lugar assim, num tempo assim, ele foi feliz um dia, sem saber o que era felicidade.
 
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Texto publicado em 7, setembro, 2011.