quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Drummond 110

Jorge Adelar Finatto


Carlos Drummond de Andrade


 
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.* 

31 de outubro, 1902. Itabira do Mato Dentro, Minas Gerais. Nessa data e nessa cidade nasceu Carlos Drummond de Andrade. Hoje comemoram-se 110 anos de seu nascimento.
 
Sinto saudade do poeta como de um irmão mais velho. Desta natureza são as admirações literárias, que se transformam em afeto, respeito e falta.
 
Morto aos 84 anos, em 17 de agosto de 1987, 12 dias depois da morte da única filha, a escritora Maria Julieta, Carlos foi - e é - um dos nomes mais importantes da poesia de língua portuguesa.

Notabilizou-se, também, como cronista e contista refinado, de leitura obrigatória nos jornais em que seus textos eram publicados. O bardo de Itabira conseguia fazer uma interpretação solar dos acontecimentos e dos não-acontecimentos. Captava como poucos a essência das coisas e dos sentimentos. 
 
A poderosa lente com que mirava o ser-no-mundo produziu uma das obras mais belas da nossa literatura. Seus textos são fonte de consolo e beleza.
 
Enxergava nossas qualidades e defeitos, nutria uma irredutível esperança na existência, mesmo desiludido.
 
O bom humor é outro traço marcante de sua visão de mundo.

O humanismo da expressão, em Drummond, sempre foi revelação no deserto.
 
O poeta nos toca e nos ajuda a viver. Amoroso e lúcido, seu verso nunca sai indiferente ao destino humano. 

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
Sempre, e até de olhos vidrados, amar?**
 
É nessa vida prolongada da palavra escrita que podemos ter o poeta conosco tempo afora.
 
Convivente, irmão.

__________________

*Trecho do poema Consolo na Praia, da Antologia Poética de Carlos Drummond de Andrade, Editora Abril, São Paulo, 1982.
**Trecho do poema Amar, idem.
Foto do poeta copiada do site da Editora Companhia das Letras:
http://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=02213
 

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Prosa da caverna

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Algum entendido afirmou um dia desses que os blogs fazem parte da pré-história da internet. Pode ser. 

Da parte do troglodita que traça estas singelas, continuará a escrever e publicar fotos na parede da caverna enquanto não desligarem a luz. 

Meu padroeiro na arte de escrever no blog (mania, obsessão, devaneio, ofício ou coisa parecida) é o escritor português José Saramago, primeiro e até agora único Nobel de literatura de língua portuguesa.

Depois que conheci O Caderno de Saramago, pensei com os rudes botões do meu notebook: por que não?

De modo que a culpa de eu estar aqui, raro leitor, deve ser compartida com o desbravador Saramago, que foi quem teve a ideia de vir para a rede partilhar sua lucidez e seu talento (ele, um grande escritor, dando ideias e fazendo seguidores entre os pequenos, como o australopiteco que redige estas parcas).

Daqui a cinquenta, cem ou mil anos, alguém descobrirá esta página perdida na nuvem de signos, lerá estes dizeres e iluminuras e provavelmente se rirá a valer desta esquisitice.

O antediluviano autor do blog poderá, então, descansar na santa paz da sua outra caverna, mais calada e subterrânea, na ilusão de que algo valeu a pena.

Iá-badá-badu! 

domingo, 28 de outubro de 2012

O cavalinho de madeira

Jorge Adelar Finatto
 


 
Não sei há quanto tempo ninguém abria o armário sob a escada dos fundos da casa. Uma espécie de triângulo escaleno, cinza azulado, com fechadura cor de alumínio. Foi ali que o encontrei.
 
Um cavalinho de madeira, com a pintura já desbotada, um pouco de tinta azul, um pouco vermelha, quase apagada, apagada pelo incessante escorrer da areia na ampulheta. Terá sido o brinquedo de alguém que viveu nesta casa bem antes de mim, há muito, muito tempo.
 
Os olhos do cavalinho estão bem abertos, são vivos, vivos e castanhos. Da boca do cavalinho sai uma fina tira de couro em direção ao dorso.
 
Quando o encontrei, havia algo no seu olhar que implorava que o tirasse daquele armário. Ele queria sair e vir comigo. Deve ser bem triste ficar preso num lugar escuro.

Como a minha vida tem dias no escuro também e eu preciso de amigo, pensei, vou levá-lo daqui. Peguei-o nos braços.

O cavalinho respirou fundo, piscou os olhos devagar. Vi duas lágrimas rolarem entre os longos cílios negros sobre sua face.

Impossível descrever o seu ar de felicidade quando o levei a tomar ar fresco na grama do jardim. Ergueu as patas dianteiras e, num salto, estava agora solto, dando voltas no pátio.

Depois ele veio habitar no escritório a meu lado, tem os olhos voltados para o vale, diante da janela.

No armário, nesse sob a escada de madeira, ficaram ainda quatro bonecas de pano sentadas junto a um acordeom cor de vinho.

Um casal de bonifrates, com chapéus de palha e caras de maluco, está pendurado num canto. De quando em quando, uma bailarina de vestido branco rodopia ao som de uma caixinha de música.

Tanta coisa bonita e esquecida no mundo, pensei. Tanta gente esperando apenas que alguém abra a porta, deixe entrar um pouco de luz e estenda a mão.

_______________

Ilustração: Maria Machiavelli
 

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Tévye, o leiteiro

Jorge Adelar Finatto

Já não me aborreço tanto com Deus - com Deus eu já me reconciliei; aborreço-me, sim, com as pessoas: por que são elas tão más, quando podem ser boas? Por que as pessoas amargam a vida quer do próximo, quer a sua própria, quando está em suas mãos viverem felizes e contentes? (Tévye, o leiteiro, pág.181).
 
 
Tévye, o leiteiro, do escritor Scholem Aleikhem, pseudônimo literário de Scholem Rabinovitch (1859 - 1916), é um dos melhores livros publicados nos últimos anos no Brasil. Faz parte, desde logo, da estante das grandes obras que li até hoje. 

Trata-se de um clássico da literatura ídiche, publicado este ano pela Editora Perspectiva. A tradução do ídiche para o português, bem como a organização, introdução e notas foram realizadas por J. Guinsburg.

O resultado é um trabalho de raro apuro, de transferência e generosidade cultural.

Tévye, o personagem-narrador, é um judeu pobre, vive no longínquo schtetl (a cidadezinha judaica do interior da Rússia czarista), é casado com Golde, pai de sete filhas e nenhum varão. Leva uma vida dura.

Uma bela e tocante conversação dele com o leitor percorre o livro.
 
Ele fala o tempo todo consigo próprio e com Deus. Assim o vemos nos solitários deslocamentos pela floresta, desde sua pequena propriedade rural até o povoado, com sua carroça e seu cavalo. Vai em busca do pão através do trabalho de vender aos fregueses creme de leite, manteiga, queijo, nata, produzidos pela família a partir do leite tirado das vaquinhas que possui.

O leiteiro-personagem conversa, também, desde o início, com o escritor Scholem Aleikhem, a quem conta seus eventos, emoções e pensamentos para que este fixe em palavras suas histórias. O monólogo-diálogo incessante estabelece uma narrativa que chama e cativa o leitor.

É da beleza, da dureza e dos meandros da vida que ele nos fala, a partir de uma visão ao mesmo tempo prática e espiritual da existência. Nada lhe escapa do coração sensível e do poderoso olhar de observador.

As preocupações com a sobrevivência, com o futuro da família e das filhas, com as perseguições e ataques contra os judeus na Rússia dos pogroms, com as injustiças e com o sentido desta vida figuram entre os assuntos que permeiam as histórias deste homem simples e sábio (a sabedoria é simples).
 
A obra fez muito sucesso quando transposta para o teatro e o cinema com o título de Um violinista no telhado. Na forma de musical, na Broadway, permaneceu em cartaz por mais de sete anos após a estreia em 1964. No cinema, em 1971, alcançou grande êxito de público e crítica, tendo conquistado três Oscars e dois Globos de Ouro.

A grandeza do livro não permite a leviandade de tentar resumi-lo numa singela resenha. O que importa ressaltar é que se trata de uma delicada e inesquecível viagem pela alma humana.

Scholem Aleikhem (que significa em hebraico "A paz seja convosco!") oferece-nos uma visão de mundo muito rica, um conhecimento profundo do modo de ser e de estar no mundo das pessoas. Nascido na Rússia imperial, acabou migrando para os Estados Unidos por força de perseguições. Veio a falecer em Nova York, deixando extensa obra e leitores fiéis.

O notável trabalho de Jacó Guinsburg, escritor, estudioso e crítico de teatro, ensaísta, editor, professor emérito da Universidade de São Paulo, agrega uma brilhante contribuição à língua portuguesa.

O patrimônio imaterial que se incorpora à nossa cultura, com esta publicação, é inestimável.

Tévye, enfim, anda agora pelas ruas e cidades do nosso Brasil, conversando com as pessoas, dando notícias de seu/nosso mundo, tão antigo, tão atual, tão difícil quanto humano.

______________________

Tévye, o leiteiro, de Scholem Aleikhem. Organização, tradução, introdução e notas de Jacó Guinsburg. Ilustrações: Sergio Kon. Editora Perspectiva, São Paulo, 2012.

Editora Perspectiva:
http://www.editoraperspectiva.com.br/index.php
 

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Biblioteca pública: um bosque no amanhecer

Jorge Adelar Finatto
 
Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul.
Fonte: site da BPE 

Nunca esqueci - como seria isto possível? - as horas passadas no bosque das estantes da Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul, na Rua Riachuelo, em Porto Alegre. Uma ilha de sol em meio à sombra.
 
Para o adolescente pobre, com dificuldades pela frente para construir o futuro, as horas vividas entre os livros foram um tempo de travessia. A entrada no bosque significava a possibilidade de sair do outro lado dentro de um mundo diferente, porque o caminhante já não era o mesmo. 
 
Naquele ambiente silencioso, iluminado por velhos lustres, mobiliado com vetustos móveis, o sonho era possível. A biblioteca foi um território de liberdade naqueles anos de ditadura militar e opressão social. A censura não podia invadir as páginas de cada livro e riscar o que considerava subversivo.
 
No bosque das estantes não havia agentes armados a caçar a emoção e o pensamento.
 
"O bosque das estantes". Foto: site da BPE.

Algumas leituras marcaram minha vida naquela época. Entre elas, uma antologia de poemas do poeta americano Robert Frost. Os Ratos e O Louco do Cati, de Dyonelio Machado. Do mesmo modo, as traduções de Vontade de Potência, do filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844 - 1900), e de O Caminho do Campo, do também filósofo e também alemão Martin Heidegger (1889 - 1976) (o entusiasmo com o pensamento de Heidegger durou até saber de seu envolvimento com o nazismo).
 
O contato com textos de Manuel Bandeira, Drummond, Jorge de Lima, Alvaro Moreyra, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Fernando Pessoa, António Nobre, Vinicius de Moraes, Cecília Meireles e outros abriu veredas de luz.
 
Além da leitura, havia palestras e recitais no Salão Mourisco. Um recital inesquecível de poesia foi apresentado pelo ator Walmor Chagas. Intitulava-se Partilha, título de um belo poema do escritor porto-alegrense Paulo Hecker Filho (1926 - 2005).
 
Antigo jardim. Foto: site da BPE.

A Biblioteca Pública necessita de apoio permanente para manter vivo o seu destino de iluminar corações e mentes. Ela está lá onde sempre esteve a partir de 1915 (a construção do prédio iniciou-se em 1912), na Rua Riachuelo esquina com General Câmara (no passado distante, Rua do Cotovelo e Rua do Ouvidor). Foi criada por lei em 1871, sendo instalada e aberta ao púbico em 1877.

A missão de oferecer arte, conhecimento, beleza e esperança não pode parar.

Na vida de muita gente aquela casa foi - e é - um bem. Um bosque no amanhecer.

________________

Biblioteca Pública do Estado do RS: http://www.bibliotecapublica.rs.gov.br/
 

domingo, 21 de outubro de 2012

Um poema de Manuel António Pina

Jorge Adelar Finatto

O poeta vive nas palavras
 e renasce toda vez que alguém lê o que escreveu. 
A nossa homenagem ao grande escritor Manuel António Pina.


Manuel António Pina (1943 - 2012). Foto: Alfredo Cunha.
Fonte: Jornal de Notícias, Portugal.


As Vozes
                  Manuel António Pina

A infância vem
pé ante pé
sobe as escadas
e bate à porta

- Quem é?
- É a mãe morta
- São coisas passadas
- Não é ninguém

Tantas vozes fora de nós!
E se somos nós quem está lá fora
e bate à porta? E se nos fomos embora?
E se ficámos sós?

______________

Poema do livro Nenhuma palavra e nenhuma lembrança, Manuel António Pina, Editora Assírio & Alvim, Lisboa, setembro, 1999.

sábado, 20 de outubro de 2012

Adeus a Manuel António Pina

Jorge Adelar Finatto

Manuel António Pina. Jornal de Notícias, Portugal.

Fazia mais de um ano que eu lia, diariamente, as crônicas do poeta, jornalista e escritor português Manuel António Pina, publicadas na página da internet do Jornal de Notícias de Portugal. Ao abrir o notebook, geralmente ia para o endereço eletrônico do jornal, guardado entre os favoritos. Para tristeza de seus muitos leitores, ele morreu ontem à tarde, sexta-feira, aos 68 anos, na cidade do Porto, onde vivia, e o corpo será cremado neste domingo.

Essa convivência começou quando ouvi falar dele pela primeira vez, ao receber o Prêmio Camões de Literatura em 2011. Na ocasião me interessei pelo autor, pesquisei a respeito e encomendei um livro seu de Portugal, Nenhuma palavra e nenhuma lembrança.

Impressionou-me nesse período sua lucidez e sensibilidade ao tratar de assuntos que iam desde os meandros e mistérios da criação literária até os angustiantes temas da atualidade, na Europa e no mundo. A coragem do jornalista convivia nele com o poeta inventivo.

Em entrevista a Sérgio Almeida, do Jornal de Notícias, em 20 de julho de 2010, declarou Pina:

Não escrevo poesia como escrevo crónicas, profissionalmente. No caso da poesia, sou antes amador, isto é, aquele que ama. Só escrevo poesia quando não posso deixar de escrevê-la. Ou, como Borges diz (acho que é Borges), quando uma espécie de incomodidade, ou de remorso, me força a procurar a poesia. O facto de passar às vezes anos sem publicar poesia não significa que tenha deixado de escrever poesia. Tenho há muito um livro praticamente pronto, reunindo poemas dispersamente publicados aqui e ali, em jornais e revistas, e inéditos. Não tenho é tido tempo (nem pachorra) para trabalhar sobre alguns poemas que continuam à procura de si mesmos. Dois ou três deles estão há anos presos por um único verso; tenho, de alguns desses versos, inúmeras versões, ou tentativas, mas não são o que procuro. Embora não saiba o que procuro, sei que, quando o encontrar, o reconhecerei. Resta-me esperar; não tenho pressa.

No final de 2011, durante permanência em Portugal, eu ia todos os dias à banca comprar o JN só para lê-lo.

Desde agosto último procurava e não encontrava suas crônicas no Jornal de Notícias. Pensei que estava em férias prolongadas ou algo assim, escrever para jornal dia após dia é negócio de doido, precisa dar um tempo às vezes. Mas não, a doença o afastava do trabalho.

Ficamos agora, seus inumeráveis leitores, sem a referência diária de seu pensamento, seu espírito e seu talento.

A palavra solidária de Manuel António Pina fará muita falta.

_______________

Manuel António Pina:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/05/manuel-antonio-pina-premio-camoes-de.html

Manifestações dos leitores do JN:
http://www.jn.pt/PaginaInicial/Cultura/Interior.aspx?content_id=2838135&page=-1

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Polifonia da primavera

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Vale do Olhar

 
Regressei há pouco da caminhada polifônica que fiz durante os dois últimos dias.
 
Colhi essas e outras imagens com a Coruja durante a andança.
 
O tempo bom de primavera foi ideal para a perambulação, anotações e fotografias nas cercanias do Vale do Olhar. Uma das visões mais bonitas que se tem aqui nas alturas de Passo dos Ausentes.

Me hospedei na Casa de Taipa, lá montei o escritório de campanha, também lugar de repasto e repouso.

photo: j.finatto
 
Nesses Campos de Cima do Esquecimento, habita uma das mais sensíveis e remotas paisagens que conheço, nem em revistas vi alguma vez coisa assim. Lugares povoados ainda com bichos e mata nativa.
 
Um surpresa que tive foi reencontrar o peixe da boca vermelha no Lago da Ausência. Há cerca de três anos tivemos nosso primeiro encontro, quando o descobri - ou ele me descobriu? - e fotografei pela primeira vez. Nunca mais nos encontramos.

photo: j.finatto
 
Como da outra vez ele surgiu do nada, do fundo das águas e veio até perto da margem onde eu estava. Deixou-se fotografar novamente. Conversamos um pouco na língua dos peixes, trocamos notícias e lembranças.
 
Depois encontrei o pássaro amarelo que eu não conhecia. Uma beleza de cor. E ainda por cima canta com uma voz sublime.

photo: j.finatto
  
Muitas outras coisas e seres vi, registrei e oportunamente virão para cá.

Os ventos de outubro sopram viagem em todas as direções.

Um tempo de celebração das seivas.

______________________

O peixe da boca vermelha:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/08/o-peixe-da-boca-vermelha.html
 

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Por quem choras, Maria Filipa?

Jorge Adelar Finatto 

photo: j.finatto. Amsterdam

 
Choravas à beira do canal na tarde de domingo.

Me olhaste com os olhos mais tristes do mundo. Passageiro efêmero no barco, numa cidade distante e povoada de labirintos, eu nada podia fazer.

Eu estava de passagem entre um cais e outro, um quarto e outro, um deserto e outro.
 
Devia talvez ter me jogado nas águas turvas daquela tarde de domingo em Amsterdam. Nada era mais importante do que ir ao teu encontro.

Devia ter passado o resto do dia contigo, em silêncio, ali naquele banco, sem nada dizer (palavras só atrapalham).

photo: j.finatto. Amsterdam
 
Quem mastigou teu coração, pisou em cima e depois jogou no fundo das águas?

Por quem choras, Maria Filipa?
 
A cara de anjo, o capuz azul da solidão, os olhos mais tristes acompanhando o barco que passava, me olhavas.

Da minha solidão eu te acenei.
 
Foi tudo que fiz dentro do barco inútil. Mas por um instante tuas lágrimas secaram e teu olhar seguiu a embarcação. Depois tua cabeça caiu sobre o colo outra vez, onde tuas mãos pálidas repousavam.

photo: j.finatto. Amsterdam

O barco sumiu sob as pontes. 
 
Entre dois cais, entre dois nadas.
  

domingo, 14 de outubro de 2012

Julio Cortázar e Porto Alegre

Jorge Adelar Finatto

 
A literatura passa um sentimento de permanência das coisas. Nós passamos, as palavras escritas ficam. A maior parte dos livros dura muito mais tempo do que as pessoas.

Os escritores que escolhemos para nos acompanhar na travessia são fundadores dessa eternidade de papel. Os livros fazem parte do que somos.

A lembrança mais remota que associo ao nome do escritor argentino (que escritor!) Julio Cortázar (1914 - 1984) é dos primeiros tempos de estudante universitário em Porto Alegre. O ano 1976, tinha dezenove anos. Estava lendo Histórias de Cronópios e de Famas e As Armas Secretas.

A fila do restaurante universitário era torturante pra quem tinha que ir pro trabalho cedo da tarde como eu. Estudante pobre, precisava trabalhar pra sobreviver, como muitos. Nas filas do r.u., lia Cortázar. Então, aquele era também um bom momento do meu dia. Depois li outros livros dele.

Agora, lendo Papéis Inesperados (tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht), livro de 490 páginas, com textos inéditos do escritor, publicado originalmente em 2009, vinte e cinco anos após sua morte, reencontro Cortázar. No Brasil, o livro foi lançado em 2010 pela Civilização Brasileira.

Os textos - encontrados em uma velha cômoda, na casa onde morou o autor, em Paris, por sua viúva Aurora Bernárdez - são poemas, contos, outras histórias de cronópios e de famas, outros episódios de Um tal Lucas, um capítulo de O Livro de Manuel, discursos, prólogos, artigos de arte e literatura, crônicas de viagens, etc.

A felicidade de encontrar material novo do autor, tantos anos depois, é muito grande.

O dado inusitado e, para nós que amamos a literatura de Julio Cortázar, muito gratificante foi descobrir uma menção a Porto Alegre no texto Never stop the press, onde se lê a frase "uma vista escolhida do Tirol e/ou de Bariloche e/ou de Porto Alegre" (pág. 117).

Sei que Cortázar gostava do Brasil, onde esteve pelo menos em duas ocasiões, e que admirava, por exemplo, Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade, além de apreciar nossa música, especialmente Caetano Veloso, mas ignoro se alguma vez esteve em nossa cidade.

De qualquer forma, ver Porto Alegre nesse texto de Cortázar, ainda que só de passagem, dá o que imaginar. Pensando bem, acho que ele tinha muito a ver com essa cidade povoada de barcos e crepúsculos, jardins escondidos no fundo de casas desaparecidas, silenciosos gatos caminhando sobre muros cobertos de hera, ruas esquecidas, fantasmas.
_______

Publicado em 11 de agosto, 2010.
Fotos: capa de Papéis Inesperados e Julio Cortázar (
http://www.juliocortazar.com.ar/)

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

No café do tempo com Ruy Belo

Jorge Adelar Finatto

 

Ruy Belo
Estou aqui no café, esta velha casa serrana de madeira, com suas mesas cobertas com toalhas coloridas de tecido xadrez. Hoje é quarta-feira, 18h, 10 de outubro de 2012.

O texto vai datado, um tempo de clepsidra, para que os arqueólogos literários, daqui a 50, 100 anos, possam se situar, se por acaso chegarem com seus instrumentos de escavação nesta página carcomida pelo tempo. Peço desculpas, antecipadamente, porque não estarei aqui para recebê-los.

Estou com os sapatos molhados de andar na chuva. Molhados de sonho, de distância. Olho agora através da janela do café, o frio molhado, espelhado, que faz na rua. Um pouco de neblina, vento.
 
Que raio de primavera, diz alguém. Eu não digo nada, só quero curtir o clima, acho isso uma beleza, dia pluvioso, gris. Porque além do frio, as flores dos arbustos fluem em azul e branco, mais o perfume, pena não se possa, ainda, reproduzir aroma na página luminosa.

As primaveras - assim chamam-se esses arbustos - florescem nos pátios, terrenos baldios, calçadas da pequena cidade.
 
O rastro de chuva, gotas prateadas, sobre o capote azul que penduro na cadeira ao lado, não quero arriscar um resfriado, uma gripe. Um espirro sobre o texto seria uma indelicadeza com o raro leitor.

Hoje me sinto trinta anos atrás (a idade, nessa altura, pouco importa, tantas vezes já morri e tantas outras ressuscitei), o que importa é que cheguei até esse dia de chuva luminosa, meio sem eira nem beira, talvez,  mas profundamente agradecido por poder andar na chuva e por estar agora aqui no café, num dia assim de fria, úmida, cálida primavera.

Um dia assim enfaruscado, quando tudo parece perdido para alguns, mas aí acontece de poder sentar nesta mesa, numa velha casa serrana, numa quarta-feira de tarde.
 
Escrevo essas coisas na folha branca do guardanapo, o café fumega na xícara, tem cheiro e um certo gosto de anis-estrelado.
 
No bolso do capote (azul-marinho), encontro um papel dobrado, o que será?

Uma folha de calendário marcando o dia 7 de abril de 2003, uma segunda-feira. Nela está escrito um texto do poeta português Ruy Belo (1933 - 1978), o poema se chama O valor do Vento (do livro Todos os Poemas). Ouçamos o que diz o bardo:
 
Está hoje um dia de vento e eu gosto do vento
O vento tem entrado nos meus versos de todas as maneiras e
só entram nos meus versos as coisas de que gosto
O vento das árvores o vento dos cabelos
o vento do inverno o vento do verão
O vento é o melhor veículo que conheço
Só ele traz o perfume das flores só ele traz
a música que jaz à beira-mar em agosto
Mas só hoje soube o verdadeiro valor do vento
O vento actualmente vale oitenta escudos
Partiu-se o vidro grande da janela do meu quarto 
 
É belo o poema, belo o poeta Ruy Belo na sua busca do inefável, da emoção além das palavras. Tão belo como este dia de inverno na primavera. O calendário, lembro, comprei numa livraria em Lisboa, dele tirei esta página e guardei no bolso do capote para que o poema esteja sempre por perto, para que a poesia não me abandone, para que possa conversar com o poeta Belo enquanto caminho por aí em dias de chuva e vento.

Trazer poemas no coração é uma maneira de tentar parar o tempo, ainda que por um ínfimo instante. 
 
Agora escureceu, o tempo escorreu na clepsidra. A garoa miúda escorre no vidro do café. Gotas de luz deslizam nos óculos.
 
____________________
  Foto: Ruy Belo. O crédito da imagem será dado tão logo conhecido. Fonte:  http://norastoderuybelo.blogspot.com.br/

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Encontro macabro

Jorge Adelar Finatto 
 
photo: j.finatto


Na verdade, eu não devia ter feito a primeira pergunta: "Como vai teu pai?" O amigo de infância, que não via há muitos, muitos anos, respondeu que o pai tinha morrido. Constrangido, perguntei, então, pela mãe, uma senhora querida, que me acolhia com gentileza. "A mãe também morreu, foi logo depois do pai."
 
Desconfortável, resolvi indagar por alguém muito mais jovem, a irmã, que certamente estaria viva e com saúde. "A Fernanda? Morreu no ano passado, uma doença fulminante, deixou marido e dois filhos."

A situação tornou-se insustentável. Notei que ele franzia a testa a cada resposta e me olhava fixamente, como a estudar minha reação diante da hecatombe.
 
Para amenizar, doce ilusão, perguntei se estava casado. "Sim, casei mas me separei. Tivemos um filho. Um menino, que morreu com um aninho."

Devastado, não consegui continuar a conversa. Lamentei sinceramente as perdas, desejei-lhe felicidades, despedi-me, atravessei a praça, fui embora o mais rápido que pude.

Aquele encontro foi um desastre. O curioso é que não senti de parte do infeliz um estado de consternação. Falava como se estivesse conversando a respeito do clima. O tempo todo me olhando como quem examina um ser ao microscópio. Quanto a ele, não sei, mas eu fiquei mal.
 
Depois daquele dia, não faço mais esse tipo de pergunta.
 

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Brasil, árvore frondosa

Jorge Adelar Finatto

Árvore Pau-brasil (Caesalpinia echinata). Jardim Botânico, Rio de Janeiro.
Autor: Mauro Guanandi. Fonte: Wikipédia
 

O Brasil, essa árvore frondosa, multirracial, multicultural, está avançando. Não rumo ao abismo, como querem alguns, mas a um lugar mais luminoso. Para quem, como eu, em vários momentos da vida perdeu a esperança num país melhor, há motivos para estar mais otimista.

O meu sonho de Brasil é ver o país livre da corrupção, sem dar-lhe espaço nem trégua para instalar-se e reproduzir-se. Com isso outros males, como a pobreza e a violência, vão reduzir-se e poderão um dia, quem sabe, ser superados.
 
Este Brasil diferente começou a amanhecer na medida em que o aprendizado da democracia iniciou entre nós após o período ditatorial (1964 - 1985).

A exigência de ética na política e na vida em sociedade hoje se impõe.
 
O julgamento da Ação Penal 470 pelo Supremo Tribunal Federal, envolvendo o famoso caso do mensalão, responde a esse anseio geral de responsabilização de quem insiste em manter condutas incompatíveis com o bem comum.

As eleições municipais de ontem, por seu lado, evidenciam que a população quer participar da construção de uma  realidade baseada em valores. O povo não está dormindo.
 
A árvore está crescendo, tornando-se a cada manhã mais forte e bela. Nela, o respeito ao direito e à justiça passa a ter um alto valor, sem o que não há vida digna de merecer este nome. 
  

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

O sonho da primavera

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Essa a visão de Passo dos Ausentes. O frio polar dos últimos dias prolonga o inverno no coração da primavera. As árvores floriram, os pássaros cantam, a bela estação começou, mas aqui nos Campos de Cima do Esquecimento o intruso insiste em não desocupar a sala. Uma indelicadeza.
 
Tem feito entre quatro e nove graus Celsius durante a tarde. Essas temperaturas contrastam com o cheiro doce das flores. À noite, ontem de madrugada, fez menos três graus. Mas a sensação era de menos 8 ou 10. Foi uma das noites mais frias do ano, ao menos pra mim.

Um homem, uma mulher não podem passar o dia na frente do fogão a lenha ou da lareira. O trabalho e as obrigações da vida reclamam nossa presença. Então é preciso sair do ninho. Só saio com o intimorato e nunca suficientemente louvado capote, afundado no calor da lã. E com o boné para evitar o contato do telhado com garoas e nevoeiros. O problema dos óculos: opacos.

Um peixe sonhando no aquário.

photo: j.finatto

O inverno é um general farroupilha teimoso, que não quer abandonar os territórios perdidos para as alegres e coloridas tropas da primavera. Às vezes me pego sonhando viver num lugar solar como a Bahia. Mas temo que o inverno vá junto com seu arsenal de tempestades, raios, relâmpagos, trovadas e gelos. Melhor não envolver os baianos nisso.

Não sou contra o inverno, por favor. Gosto, até porque, em Passo dos Ausentes, não se tem outra escolha. Hoje pela manhã o gramado amanheceu branco. Bonito (olhar da janela). Enquanto isso, ouço a Sonata para violino e piano, segundo movimento, intermezzo, de Poulenc (Très lent et calme), que vai abrindo caminho de luz em meio à neblina.

Um sentimento de beleza vem das orquídeas nos vasos, troncos e galhos. Rara visão. Motivo para esperar que a primavera conquiste de vez o espaço que por direito lhe pertence.

__________________

A misteriosa expedição da Nasa a Passo dos Ausentes:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/08/misteriosa-expedicao-da-nasa-passo-dos.html
 

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Raios riscam a escuridão e assustam o silêncio

Jorge Adelar Finatto


Imagem: site da Secretaria Nacional de Defesa Civil:
http://www.defesacivil.gov.br/desastres/recomendacoes/raio.asp
 
 

As nuvens são fábricas de raios.

Escutei no rádio que entre a noite de domingo e a madrugada da segunda-feira caíram sobre o Rio Grande do Sul 5.344 raios devido às tempestades. Existe um órgão estatal encarregado de verificar a eletricidade na atmosfera que apura o fenômeno. Junto com os raios veio chuva de granizo com algumas pedras do tamanho de um ovo.
 
Conforme se noticiou, o Rio Grande do Sul é o 4º estado com maior incidência de raios no país, 5 milhões, 180 mil descargas por ano.
 
Em Passo dos Ausentes, raios, trovões, relâmpagos nos afligem o ano inteiro.  Quando o tédio é muito lá no céu, as autoridades celestes mandam uns raios sobre nossas cabeças, mesmo em dias de sol e pouca nuvem, só pra ver o pessoal levar um susto e não esquecer quem manda.

Os ateus passam mal aqui nos Campos de Cima do Esquecimento, porque não conseguem explicar, através da razão, as coisas fora do entendimento que nos acontecem. Não bastassem as angústias normais da vida de todo vivente (de onde venho, para onde vou?), eles ainda têm de engolir em seco o que está além das aparências.
 
Não sei como os técnicos do governo fazem pra contar as descargas elétricas. Os dados divulgados são minudentes: 5.344 raios, em poucas horas, nem mais nem menos.

Haverá o cargo público de contador de raios? Acho que não. Ofício assim tão perigoso e barulhento, quem havia de querer? Sei lá.
 
O que sei é que há mais mistérios entre o risco do relâmpago e a escuridão das almas do que supõe a nossa vã sabedoria.