segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Notícia do jardim

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 

O FATO DIGNO de humilde celebração, neste último dia de 2018, é que sou um homem que tem um jardim. Um jardim que explodiu em flores.
 
O sol de primavera e início de verão foi gentil. Não secou as flores como em anos anteriores. Nunca vi as hortênsias tão cheias de vida e cor. E também as rosas, os jasmins, as flores de mel, as buganvílias, as bolas azuis, e até umas magnólias fora de época, além de outras cujos nomes não sei.
 
Ver o jardim com este vigor anima a alma. À tardinha sento no banco de madeira e fico a admirar as criaturas florais. Respiro seus aromas, cores e pétalas.
 
Caminho entre xaxins e araucárias, cedros, caneleiras, plátanos, palmeiras e uma linda e tenra bananeira que me lembra o poeta Bashô. E quando o sol começa cair atrás das montanhas, os primeiros vagalumes salpicam o ar com suas lanternas de lume intermitente.
 
Para não dizer que não falei augúrio, espero que venham muitas luzes em 2019. E que, ao lado de assuntos sérios e aborrecidos, nosso espírito encontre ocasião de falar de flores, jardins e vagalumes. E, acima de tudo, tenhamos tempo para cultivar amor com nossas famílias e amigos. Deus seja com todos.
 

sábado, 29 de dezembro de 2018

Vive-se

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto

VIVE-SE. Do jeito que dá. Às vezes, até mesmo sem nenhum jeito.
 
Porque a única coisa realmente urgente e importante é manter-se respirando. O resto é o que vem depois. E o que vem é neblinoso, se administra. Ou não.
 
Convivemos com a dor, com a falta de amor, de encanto, de beleza, de dinheiro, com a eterna falta de sentido da existência. Enquanto isso, vive-se.
 
Vive-se em Porto Alegre, em Paris, em Sierre, em Lisboa, em Cacique Doble. Vive-se no silêncio de Rarogne e de Passo dos Ausentes. Vive-se à beira do Arroio Tega e nas cercanias do Castelo de Muzot.

Vive-se em toda parte. Principalmente, no fim do mundo.

Vive-se em secreto e em surdina, com raros, impossíveis amigos. Mas vive-se.

Vive-se apesar da corrupção que assola o Brasil e destrói tudo o que se tenta construir e até o que não se construiu, como a floresta Amazônica e a Mata Atlântica.
 
O mais que se faz é viver. De janeiro a janeiro. Com sol e com chuva. Com alhos e bugalhos. Vive-se.

Fique calmo, a realidade não merece o teu suicídio.

Vive-se na sexta, no sábado e, eventualmente, no domingo. Segunda é um enigma que nem a filosofia, nem a poesia, nem a astrologia e muito menos a quiromancia conseguem resolver. Mas o fato é que se vive.
 
Vive-se apesar do lixo nas ruas, do odor nauseante de combustível queimado, do esgoto escorrendo impune para o rio.

Vive-se em que pese o triste, insuportável e persistente racismo.

Vive-se olhando os navios que fogem para o mar.
 
Vive-se diante do olhar atônito das crianças abandonadas.

Vive-se a nostalgia das casas sem eletricidade.
 
Vive-se sem embargo dos livros não lidos. Vive-se não obstante todos os livros lidos.

Vive-se com as folhas secas do outono nos bolsos do antigo casaco.

Vive-se sem nada a perder e mesmo depois de perder tudo.
 
Vive-se sabendo que nunca mais se encontrará aquela mulher para pedir-lhe um olhar, um abraço.
 
Vive-se de mal a pior, sem eira nem beira.

Vive-se apesar dos mortos nos olhando dos velhos retratos, e dos lugares vazios à mesa.

Vive-se a vida invisível dos anônimos, dos solitários, dos desmemoriados.

Vive-se de improviso, sem ensaio, uma única vez, com o coração doendo no peito. Mas vive-se.
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Texto revisto, publicado antes em 16 de novembro, 2014.
 

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Um certo Terêncio Horto

Jorge Finatto

O escritor Terêncio Horto.* Autor: André Dahmer


O ESCRITOR DESCONHECIDO, frustrado, amargurado e massacrado pela indiferença em torno de seu trabalho certamente encontrará um aliado na figura incansável e batalhadora de Terêncio Horto. Ele é a prova viva de que um autor não deve desistir jamais da luta diante da folha em branco e do pouco caso de editores e leitores.
 
Nós, esforçadas criaturas que escrevem em solitários cubículos, formamos uma invisível e numerosa família. Com poucas exceções, vivemos confinados na caverna do anonimato. Mas somos teimosos, nada de desespero. Pelejamos mesmo nas piores condições. A dura lida nos constrói.

Olhemos o exemplo do irmão Terêncio. Lá na sua clausura, qual isolado monge sentado diante da velha máquina de datilografia, ele não se entrega ao fracasso; luta de sol a sol, nuvem a nuvem, quadrinho após quadrinho, para dar ao mundo os frutos suculentos do seu duro ofício.

O Senhor Horto e seu amigo imaginário. Autor: André Dahmer
 
Terêncio Horto é desses assinalados pelas musas e pela tragédia de escolher a escrita num ambiente grosseiro e de poucas luzes como o nosso. Alcançou algum reconhecimento, mas não perdeu a rebeldia. Faz parte de uma geração de escritores em vias de extinção. A esmagadora maioria deles passou a vida sem ser notada pelos leitores, pela crítica, pela mídia e pelos vizinhos dos prédios onde moram. Nunca receberão jabutis, quatis, sagüis, sambaquis e outros importantes galardões literários nacionais. Entanto, lutam a terrível luta de trazer à luz as páginas fadadas ao fundo sombrio de injustas gavetas. 
 
Não apenas escreve bem o Senhor Horto; possui notável poder de observação (notaram o ponto-e-vírgula ali atrás? isto é estilo, senhores!). A sua visão de mundo está impregnada do caos da vida com seus intervalos (raros) de poesia e humanismo. Os temas são os mais diversos, desde remotas (e dolorosas) memórias de infância até intrincadas questões de fundo filosófico e outras, não menos tormentosas, inerentes às relações humanas. Nada escapa de sua pluma corajosa e vertical: internet, brigas de família, humilhações, desilusões, sexo, cultura, cinismo, encontros marcantes e alguns nem tanto, amizade, amor, cumplicidade, arte, literatura.
 
O Senhor Horto. Autor: André Dahmer
 
Horto não poupa a si nem ao restante da humanidade de sua ironia e de seu humor corrosivo. Porém, não perde de vista certa dose de ternura e empatia diante da tragicomédia da existência.

O escritor Horto. Autor: André Dahmer
 
Li com prazer e sentimento de vingança este Vida e Obra de Terêncio Horto, e me reconheci em muitas de suas páginas. O livro já faz parte do meu manual de sobrevivência na selva literária. De forma direta injeta ar fresco e claridade no ambiente de boçalidade do mundo das letras e das artes, além de aliviar a barra pesadíssima do cotidiano. Só resta agradecer ao quadrinista e escritor André Dahmer por nos ter revelado esse grande autor e pensador brasileiro. Com especial destaque, também, para as ótimas ilustrações.

O escritor Horto. Autor: André Dahmer
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*Vida e obra de Terêncio Horto. André Dahmer. Ilustrações do autor. Editora Schwarcz S.A., São Paulo, 2014.
 
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Texto revisto, publicado antes em 16.10.2017
 

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

O nascimento da Luz

Jorge Finatto
 
Madonna and Child. Maria e Jesus.
Autor: Rafael Sanzio, 1508
 
 
DESEJO AOS AMIGOS do blog um Natal em paz com a família, os amigos e entre os estranhos caso estejam longe de casa. Aos que estão sós e tristes, que não se deixem levar pela solidão e pela tristeza, que o Natal é o nascimento da Grande Luz que nos fala de irmandade, bondade, perdão, solidariedade e alegria de viver. Tudo isto nos trouxe Jesus Cristo com seu nascimento. Saúde a todos. 
 

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Partir ou ficar

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto

2018 foi um dos anos mais difíceis. Acredito que a maioria dos brasileiros está exausta com tudo que se passou de ruim nos últimos tempos. Milhares foram embora e tantos outros continuam indo todos os dias em busca de uma vida melhor em outro país.

A sensação que se tem é de que não há saída nessa escuridão. E a vida não acontece no futuro, mas hoje, agora. É preciso tomar decisões, comer, vestir, sustentar filhos, buscar um lugar ao sol, ser um pouco feliz. E o nosso país, infelizmente, só tem produzido sombra na vida das pessoas.
 
Ninguém mais suporta notícias de corrupção e gestão ruinosa. O Brasil virou o país do não, principalmente do não à esperança. Há um imenso cansaço.
 
Seu eu fosse jovem, possivelmente buscaria outros horizontes. Entendo a busca dessas pessoas. Mas mudar de país não deixa de ser um salto no escuro. O mundo todo está em convulsão. As crises humanitárias ocorrem em diferentes partes, são milhões à procura de um lar, de um trabalho, de paz para viver. Por outro lado, aumenta a xenofobia nas nações mais desenvolvidas.
 
Seja como for, nem todos podem recorrer ao aeroporto para resolver suas vidas. A maior parte da população terá de tentar melhorar as coisas aqui mesmo, cobrando honestidade, competência e medidas concretas daqueles que assumirão o governo a partir de 1º de janeiro de 2019.

Se o novo governo for honesto como se espera, os problemas mais graves serão resolvidos. Mas mudar o Brasil não é tarefa para um só homem ou para um só governo.
 
Tornar o país um lugar para todos e não para poucos privilegiados é trabalho enorme pela frente. Começa pela cabeça de cada um, pelo próprio coração. Mudando maus hábitos e maus sentimentos. Respeitar as leis, cumprir as obrigações, sem "jeitinho" ou embustes, olhar o próximo como irmão e não como inimigo... Quem sabe não é assim que construiremos um lugar decente para viver. 
  

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Os últimos mistérios do mundo

Filipe Penaverde

túmulo de Rilke em Rarogne, Suíça. photo: jfinatto

Iniciamos hoje a publicação da coluna "Os últimos mistérios do mundo" do senhor Filipe Penaverde. O blog não se responsabiliza por opiniões estapafúrdias do escritor ausentino.


EU TAMBÉM já fui escritor mimoso, eu também já fui candidato ao Prêmio Nobel. Os meus dois leitores amontoavam-se com sofreguidão na porta da única livraria de Passo dos Ausentes, disputando cada novo livro de versos com meu nome estampado na capa.

Naqueles quandos eu tinha de reservar um dia inteiro na semana para atender a insaciáveis jornalistas do Correio Ausentino e da Rádio Ausência.

Esgotado com a faina literária, viajava a Paris. Da janela do meu humilde estúdio, avistava os barcos que iam e vinham pelo Sena enquanto centenas de flashes fustigavam meus olhos exaustos de tanto frenesi em torno de minha obra.

Os sinos de Notre-Dame feriam de melancolia meus moucos ouvidos.

Os convites para jantares e palestras pseudo artístico-intelectuais acumulavam-se sobre minha escrivaninha sem que pudesse atendê-los. A vida social e cultural de um escritor bem sucedido é fatigante na Cidade Luz.

Um dia cansei da celebridade. Retirei oficialmente a candidatura a Nobel de Literatura. Dizem que houve frisson na Academia Sueca. Esses suecos sempre tão suscetíveis.

Hoje vivo na pasmaceira de Passo dos Ausentes. Ninguém me procura e, se procura, não me acha. Desisti da vida literária. Só me importam os livros e os versos que construo em surdina. Passo maior parte do tempo na mansarda. Vivo esse entrementes na casa do entretanto.

Converso com meus fantasmas conversas de antigamente. Falares de tempos mortos.

O que mais sinto é falta de Cléria, não vou negar. Ela sumiu no mundo cansada de me esperar das noitadas de autógrafos. Dizem que foi viver em Rarogne, aquilo sim um fim de mundo onde o gato perdeu as botas. Dizem que passa as tardes lendo poemas de Rilke, sepultado ali ao pé da igrejinha.

Eu aqui, em osso e carne, nesses confins, sem Nobel, sem Paris, olhando a vida da mansarda. Esperando a volta de Cléria. Enquanto ela me trai com o fantasma sedutor de Rilke.

A vida é uma esculhambação.
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Filipe Penaverde é poeta e secretário da Sociedade Literária, Filosófica, Artística, Histórica, Geográfica, Astronômica, Antropológica, Musical e Antropofágica de Passo dos Ausentes. Ex-candidato ao Prêmio Nobel.

sábado, 15 de dezembro de 2018

Éramos eternos e perfeitos

Jorge Finatto
photo: jfinatto


ÉRAMOS ETERNOS e perfeitos até que o previsível aconteceu: nossos arquiavós, dona Eva e seu Adão, foram convidados a retirar-se do Paraíso. 

Descumpriram o acordo, comeram do fruto da árvore do conhecimento. Foram expulsos do Jardim do Éden onde viviam com toda a mordomia. 

Graças ao mau gênio de ambos, deu no que deu, carregamos a condena até hoje. E pior pra nós: o Arquiteto dos Destinos nos fez nascer aqui no Brasil.

Vivemos com uma mão na frente, outra atrás, sem eira nem beira, nessa Tristíssima República.  Muita é a dor, e pouca é a paz. Acho que está na hora de fazer as pazes com o Criador pra ver se pelo menos diminuímos esta quizumba, que a coisa tá insuportável. 

Ninguém agüenta mais o cheiro de enxofre.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Um futuro agora para o Brasil

Jorge Finatto

photo: jfinatto

 
O EFEITO mais perverso e doloroso da crise ética que assola o Brasil é o abandono do nosso maior capital como nação: as crianças e os adolescentes. Tal se materializa na permanente falta de creches para os filhos enquanto pais e mães (principalmente) trabalham (aqueles que ainda têm onde trabalhar). E nas famílias destroçadas pelo desemprego, com suas terríveis conseqüências.
 
O que se vê são crianças sozinhas a maior parte do dia, às vezes entregues aos cuidados de irmãos "mais velhos", também eles crianças. Muitas vezes vivendo em circunstâncias onde só a mão de Deus pode livrá-las do pior.
 
A grande herança da corrupção sem limites que invadiu o país, à esquerda e à direita, são gerações de meninos e meninas atônitos, feridos, famintos por comida e atenção, desorientados, desiludidos e, o pior, sem esperança.

Essa a face mais cruel, a lágrima que não seca.
 
A reconstrução do Brasil deve começar por esses milhões de seres invisíveis. É preciso que o Estado vá às comunidades com serviços essenciais, boas creches, saúde, esportes, além de implementar por todo o país, sem mais demora, os Centros Integrados de Educação Pública, idealizados pelo antropólogo Darcy Ribeiro.

Só a partir de então poderemos falar num futuro para o Brasil. Um futuro que não pode mais esperar. 
 

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

A hora do farelo

Jorge Finatto

photo: jfinatto


ENQUANTO FILÓSOFOS desvelam(?) os insondáveis mistérios da condição humana, eu espero pelo pinhão cozido na chapa do fogão a lenha. A noite de inverno pulsa ao som dos Noturnos de Chopin.

O vento roça o telhado e as janelas do velho sobrado. A estrela cadente desapareceu atrás das montanhas, eu a vi cair para os lados do vale.
 
Esta é a hora imprópria, do farelo.
 
Observo o canto inumerável da vida. O tempo é curto pra conhecer, sentir tanta coisa.
 
Existe, na revelação do farelo, o sentimento de que faltam mais encontros com os amigos, mais conversas nos cafés, caminhadas de mãos dadas. Faltam mais corações à solta. E mais tempo pra ficar com as pessoas que amamos. Há um excesso intolerável de realidade.

A calada da noite impõe austeridades. Ermos são os caminhos da hora do farelo. As folhas secas do tempo caem em volta da hora nua.
 
A beleza da vida está no voo de borboleta, no passo da joaninha.

A hora do farelo traz a vontade de visitar o ínfimo, atravessar o desconhecido.
 
Se um anjo surgisse dizendo que o meu tempo não foi em vão…
 
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Texto revisto, publicado em 8 de março de 2010.
 

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

A biblioteca de cada um

Jorge Finatto

Hermann Hesse*
 
Um dos melhores livros que li sobre livros e leitura - talvez o melhor  deles - é este Uma biblioteca da literatura universal¹, do escritor suíço-alemão Hermann Hesse (1877-1962), Prêmio Nobel em 1946. Encontrei-o no início deste ano, em Lisboa, garimpando estantes da Livraria Fnac no bairro Amoreiras. Editado pela Cavalo de Ferro, de Portugal, com tradução de Virgilio Tenreiro Viseu, é a primeira versão em língua portuguesa.
 
Trata de questões que afligem leitores que, como eu, se sentem pequenos diante de intermináveis bibliotecas e da "obrigação" de ler certos livros, imposta por discutíveis cânones , "autoridades no assunto" e confrarias. Isso nada tem a ver com a paixão pelos livros e o amor pela leitura.
 
Herman Hesse nos liberta das relações de "imperdíveis", daquelas obras que "ninguém pode deixar de ler" pena de virar um asno. A sabedoria vem de um homem que lutou pelo autoconhecimento e contra as inúmeras amarras sociais que sufocam o crescimento espiritual das pessoas. Escritor abençoado pelo reconhecimento ainda em vida, escreveu livros notáveis como O lobo da estepe e O jogo das contas de vidro. Inspirou várias gerações com seu comportamento libertário.
 
"Não existem cem ou mil 'livros mais belos', há, para cada indivíduo, uma escolha particular baseada naquilo que lhe é afim e compreensível, caro e precioso. Por isso, é impossível constituir uma boa biblioteca sob encomenda; cada um de nós deve seguir as suas próprias exigências e preferências, e criar, pouco a pouco, uma coleção de livros, da mesma forma que se criam amizades. Então, uma pequena coleção poderá para o leitor significar o mundo inteiro. Os leitores verdadeiramente bons foram sempre aqueles cujas exigências se restringiram a pouquíssimos livros; uma simples camponesa, que não possui nem conhece nada além da Bíblia, leu-a mais a fundo e extraiu dela uma maior soma de saber, de conforto e de alegria do que um qualquer ricaço mimado poderá alguma vez obter da sua luxuosa biblioteca."²

A lucidez e a humildade do escritor diante do fenômeno literário nos ajudam a espantar fantasmas de autores e livros não lidos. Ele nos ensina que o que vale  é o prazer da descoberta literária e a felicidade que nos desperta.

Que livros são essenciais? Aqueles que vamos encontrando pelo caminho aqui e ali e elegemos como companheiros de viagem pelo bem que nos fazem. O afeto é o único critério que liga o leitor e o livro escolhido. Se é amor, não pode ser imposto, determinado por duvidosos "donos do saber". Não importa a quantidade de livros lidos, mas a qualidade do que nos passam e nos acrescentam em consciência.

Não existe, portanto, uma lista pronta e universal. Os cânones são referências que passam pela subjetividade, pelas necessidades, idiossincrasias e interesses de quem os elabora.

Em suma, cada um deve construir a própria biblioteca com os gostos, expectativas, desejos e informações que o orientam. Tendo-se clareza de que, qualquer que seja o caminho percorrido, jamais se poderá ler tudo que se escreveu de bom nos diversos gêneros, culturas, países e línguas. Sabendo-se, também, que haverá sempre no ato civilizado da leitura um tanto de esforço e de superação, mas sem automutilação.

O próprio Hesse, que afirma ter lido cerca de dez mil livros, sabia que muita coisa boa e valiosa tinha ficado fora de seu radar de leitor atento. Por exemplo, creio que dificilmente terá lido o nosso extraordinário Guimarães Rosa ou o uruguaio Juan José Morosoli, seja pela falta de edições disponíveis onde vivia, seja pela barreira do idioma, seja por nunca ter tido oportunidade de conhecer estes escritores.

Existe sempre um mundo de livros por descobrir.

Tratando-se de construção pessoal, íntima, e que encontra limites em nossos limites de tempo, dinheiro e outras circunstâncias existenciais, criemos com carinho nossas pequenas bibliotecas caseiras. Nelas poderão faltar muitos livros que por certo nos encantariam. Só não faltará amor.

"A venerável pinacoteca da literatura universal está aberta a todos os homens de boa vontade, ninguém se deve deixar intimidar pela sua riqueza, porque aquilo que conta não é a quantidade. Há leitores que, durante uma vida inteira, se limitam a ler uma dúzia de livros e que são, no entanto, verdadeiros leitores. E há outros que devoraram tudo e que sabem falar de tudo e, não obstante, os seus esforços foram vãos. (...) A leitura sem amor, o saber sem reverência e a cultura sem coração estão entre os piores pecados que se podem cometer contra o espírito."³
 
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¹ Uma biblioteca da literatura universal. Hermann Hesse. Editora Cavalo de Ferro, 2ª edição. Amadora, Portugal, fevereiro de 2018.
² Idem, p. 53.
³ Idem, pp. 12,13.
* O crédito será registrado assim que conhecida a autoria da foto.

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

O réquiem pode esperar

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto
 

ESTAVA me preparando pra subir na esteira quando tocou o telefone. Do outro lado um indivíduo disse que gostaria de falar com o senhor Jorge.
 
- Pois não, sou eu.
- Boa tarde, tudo bem com o senhor?
- Tudo bem.
- Estou ligando pra falar sobre cremação. Temos um plano pra lhe oferecer.
- Como?
- Sim, temos ótimas condições. Eu vou lhe apresentar...
- Não, não, há um engano.
- O senhor não é o Jorge?
- Sou, mas não tenho a menor intenção de morrer, ao menos não por agora. O dia está lindo. Olhe esse céu azul de primavera de Porto Alegre. Dá ganas de viver pra sempre. Ninguém pensa em morrer. Quem foi que lhe deu meu telefone?
- Creio que um conhecido seu indicou.
- Muy amigo... Mas, de fato, não pretendo pensar em morte agora.
- Não, claro, não é isso, mas é uma coisa que pode acontecer, é bom se prevenir, deixar tudo organizado.
- Não, não, eu agradeço. O que eu quero hoje, neste instante, é fazer a minha ginástica, andar na esteira, relaxar, suar, durante uma hora ou mais. Eu quero respirar. Só isso, nada menos do que isso. Nada de antecipar a preocupação com a morte.
- Ah, sim, claro. Está bem. Conversamos em outra ocasião. Desejo-lhe muita saúde, muito obrigado. 

- É isso o que eu mais quero. Tudo de bom. Boa tarde.
 

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Meu sabiá

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto

 
SÃO CINCO HORAS da manhã. Está chovendo. Escuto os pingos batendo no telhado. Estive até agora fazendo coisas, bicho da madrugada, lavei a louça da noite, depois li, fiz café, li, ouvi rádio, li, caminhei no escritório, li. Chove.
 
Sábado, 24 de novembro, 2018. Passo dos Ausentes. Vagamente iluminada pelos lampiões de luz nas esquinas mergulhados na neblina. O sabiá canta no quintal. Não sei como se defende da chuva, se é que o faz. É o meu sabiá.
 
De dia encontro-o no pátio andando com passo miúdo. É um sabiá comum e discreto. Escolheu viver no meu quintal que tem xaxins, roseiras, orquídeas, pinheiros, jasmins, flores de mel e mais.
 
Acho que ele fez ninho numa árvore perto da velha carroça no jardim. Ou talvez no desvão do sótão. É um inquilino querido. Inquilino, não. Habitante da casa e do quintal como eu. 
 
Provisórios, circunstanciais. Mas cantamos.
 

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Seco

Jorge Finatto

photo: j.finatto



SECOS PÁSSAROS dormem em ressequidos ninhos. Secas folhas de plátano se agitam contra o azul. Manhã silenciosa, bailarina morta na caixa de música, seca. Enferrujado relógio de parede, retratos na gaveta, tudo seco.

Secas lágrimas na face do vento.

Coração seco, boca seca, mãos secas. Secas palavras. Secas pétalas de camélia vermelha dispersas no chão. Secos dedos dedilham secas cordas de violino. Seco, seco.

Secos abraços unem os amantes. Secas velas movem as faluas do Tejo.

Secos olhos olham o pôr-do-sol no Guaíba. Secos, secos.

Secos homens invadiram as ruas da cidade, cometeram tristes barbaridades.

O milharal, tão seco, pegou fogo.

Sentimento e pensamento, secos. O sexo, sem ternura, seco, seco. As páginas do livro de poemas por escrever, secas, secas.

Seco olhar observa no fundo do espelho.

A esperança, um rio seco dentro do coração, talvez volte como a chuva depois do calcinado estio.
 
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Texto revisto, publicado em 23, maio, 2011.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Fora do poema tudo é caos

Jorge Finatto 
 
photo: j.finatto
 
 
Esta frase - FORA DO POEMA TUDO É CAOS - me saiu numa entrevista* ao jornal Zero Hora, de 1984, tendo como entrevistador o jornalista Danilo Ucha. Naquela época  ainda se entrevistavam poetas da aldeia na imprensa local.

Os meios de comunicação se expandiram, mas os espaços para divulgação de arte e literatura, fora do interesse estritamente comercial, diminuíram tanto que tenho dúvida se existem hoje entre nós.

A entrevista versava sobre o lançamento do meu livro Claridade, de poemas, selecionado para publicação dentro do Plano Editorial de 1983, da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Porto Alegre.

Consta, na abertura da matéria, que o autor era um jovem jornalista e poeta de 27 anos. Custo acreditar que já tive essa idade.

O tempo passa, a gente fica mais perdido, mas certas verdades permanecem. Está escrito que o poeta (aquele jovem poeta de 27) estava angustiado e perplexo "diante de uma realidade maluca, atrasada e violenta como a brasileira".

Também está dito que os poemas falavam de uma pessoa que "experimentou na consciência e na pele a dolorosa sensação de viver uma realidade sem perspectivas. Onde o indivíduo se sente arrastado pela opressão e sonhar é quase proibido. Onde viver se tornou a maior transgressão".

Nos poemas, apesar disso, "constata-se a convivência mais harmoniosa entre linguagem e vida. O mundo silencioso onde o real e o imaginário caminham juntos. Há uma integração profunda com a aventura humana. A palavra não salvará o homem, mas será sua projeção e seu espelho. Uma espécie de testemunha de seu próprio destino".

O poeta "trabalha com o poema numa região de luz, sem concessões ao desespero e à morte, acredita na força das coisas belas, na energia positiva das pessoas capaz de gerar zonas de intensa verdade e esperança.

"A fé na existência e no amor sobressai-se como o caminho destinado a vencer o escuro e a dor. O poder transcendente da vida sobre a morte, através da dimensão do amor, transforma e eleva".

Conclui o bardo de 27: "Nunca fiz literatura pelo simples prazer de escrever, ela surgiu na minha vida como uma necessidade inarredável, quase tão vital como respirar. Eu até preferiria viver sem escrever. O grande Manuel Bandeira disse certa vez que só se sentia seguro no chão da poesia. Eu sinto isso. Fora do poema o mundo é algo incompreensível e muitas vezes insuportável. É preciso criar tudo de novo, começar a vida das cinzas, renascer. Fora do poema tudo é caos".

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*Entrevista publicada no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, em 13.4.1984. A matéria foi feita pelo jornalista Danilo Ucha.
Texto publicado no blog em 18 de novembro de 2010. 
 

sábado, 10 de novembro de 2018

Jacó Guinsburg: belas páginas de vida

Jorge Finatto

Jacó Guinsburg. Divulgação
 

FICO PENSANDO: que bela vida teve Jacó Guinsburg, que nos deixou em 21 de outubro passado, em São Paulo, aos 97 anos. Nascido em 1921, em Riscani, Bessarábia, atual Moldávia, veio pequenino com a família para o Brasil, em 1924, e aqui se criou, viveu e trabalhou. De origem judaica, foi um dos nomes mais representativos da cultura e da produção editorial em nosso país nas últimas sete décadas.
 
Ralou um bocado, trabalhou muito. Construindo-se como pessoa e como profissional ajudou muitos outros a construírem-se também. Pensador, escritor, professor, tradutor, ensaísta, especialista em teatro, criou a Editora Perspectiva, das mais importantes já surgidas no cenário editorial brasileiro, com um catálogo brilhante e extenso de autores nacionais e estrangeiros, na área de humanidades.

Publicou escritores como Maiakóvski, irmãos Augusto e Haroldo de Campos, Umberto Eco, Antonio Cândido, Fernand Braudel, Décio de Almeida Prado, Scholem Aleikhem, Isaac Bashevis Singer e muitos, muitos outros.

Em 2012, ao ler a obra Tévye, o leiteiro, de Scholem Aleikhem, com tradução do ídiche, organização e notas de J. Guinsburg, escrevi uma resenha. A leitura deste livro extraordinário (vertido para o cinema com o título Um violinista no telhado, vencedor de três Oscar) fez com que mantivesse com ele contatos por e-mail. Revelou-se pessoa interessada, generosa e disposta ao diálogo. Para minha honra, a resenha foi publicada no site da Perspectiva.

J. Guinsburg foi um bem para o Brasil.  Semeou livros, ideias, saberes e beleza. Construiu numeroso patrimônio espiritual, levantando pontes entre culturas. Deixou-nos um legado e um exemplo luminosos. Escreveu belas páginas de vida.
 

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

A fala de Pedrolino

Jorge Finatto

photo: j.finatto. Venezia. Os mascarados

 
PERTENÇO À ORDEM dos amorosos sem camélia.

Os que amaram e se pensaram amados sem o ser. Os que saíram cedo da festa. Os quase.
 
A dama. Meu coração perdido no infinito tabuleiro. O mundo é lugar de barbaridades. Dor, dores.
 
Chamava-se Alberta, Alberta de Montecalvino. Pertencia à nobre estirpe dos Albertos, de Passo dos Ausentes. Foi quando a vida aconteceu.
 
O sol brilhou entre as nuvens. Iluminou a escuridão da vida minha. O triste que eu sou.

A Commedia dell'Arte invadiu a minha existência. Pedrolino, Pierrô.
 
Estava na janela da mansarda, como sempre, olhando a vida passar.

Então ela atravessou a rua. Trazia a sombrinha vermelha, o vestido branco, laço azul na cintura. Os sapatinhos amarelos. Olhou pra mim e sorriu. Rasgou minha solidão.
 
Bailei no ar como folha de plátano no outono, lentamente fui cair a seus pés. Desci correndo, pulando os degraus da escada em espiral. Segui o inefável perfume. Enfim, alcancei a dama.
 
Perguntei se podia fazê-la feliz. Sim, sim. 

photo: j.finatto. Venezia
As iluminações.

Passamos a freqüentar a Praça da Ausência, nas tardes ocres daquele outono. Um dia peguei-lhe na mão. Meu coração cavalo louco. Não dormi durante três dias e três noites.
 
Alberta meu sentimento. Camafeu cravado em minhalma. Ela me deu o lencinho branco perfumado, a letra A bordada em lilás. Guardei-o num lugar secreto, bem no fundo de mim.
 
Aqueles eram dias de ora-veja.
 
A dama, o tabuleiro, eu nunca aprendi a jogar.

Não canto outros amores, que não os tive, e, se os tivesse, silenciaria.
 
Então Arlequim apareceu. Os ódios pularam dentro de mim.

Arlequim e seus guizos, seus versos de algibeira, sua palavra sem valia, seu alaúde. Ser miserável. Animal sem coração.
 
Arlequim disse coisas, deitou falas, expandiu-se em canções. Antes calasse.

Bazófias.
 
Arlequim se espalha no mundo. Faz ares. Blasona. Explorador de amores, ladrão de musas. Arrebatou o coração de Alberta, os suspiros. Até o corpo de violino, que eu nunca toquei, ele possuiu.
 
Eu calado sonhador do fim do mundo. Os devaneios da alma. Voltei só pra mansarda. Nem acreditei.
 
Quem me visse, a face esculpida da dor. Veio o inverno. Invernos.
 
O vero solitário da rua triste. O habitante da mansarda. O que olha a vida da janela. O que foi quase feliz.
 
O sem camélia.
 
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Texto publicado em 09 de junho, 2010.
Do livro Calado observador do fim do mundo. Editora Vésper, 2010, Passo dos Ausentes.
 

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Alvaro Moreyra e Drummond

Jorge Finatto

Alvaro Moreyra

Pareço-me com ampolas de injeção de bismuto. Tenho em mim as coisas necessárias. Mas preciso ser sacudido para que se misturem.
                                                      Alvaro Moreyra

ESCREVI uma biografia, talvez melhor dizer reportagem biográfica, do cronista, poeta e autor de teatro porto-alegrense Alvaro Moreyra (1888-1964), publicada em 1985.* Fiz o trabalho movido pela admiração que sentia pelo escritor e pelo ser humano Alvinho, como era carinhosamente chamado.
 
A admiração nasceu de uma crônica de Carlos Drummond de  Andrade (1902-1987), na qual o poeta de Itabira (MG) revelou que foi Alvaro, entre os autores nacionais, aquele que mais o influenciou nos anos de formação.

Ao ler os livros de Alvinho na Biblioteca Pública do Estado, ali na Rua Riachuelo, fiquei encantado. A elegância, sutileza, humanidade e ironia do seu texto vinham temperadas na experiência do homem vivido, cozido e recozido pela vida. Um belo escritor.
 
Fiz o trabalho de pesquisa em bibliotecas e hemerotecas. Não havia reedições de seus livros. Conversei com parentes dele em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. Entrevistei escritores como Jorge Amado e Guilhermino Cesar, entre outros.

Eu trabalhava nas horas vagas, no pouco tempo que sobrava depois da rotina diária como jornalista e funcionário público. Entrava pelas noites, madrugadas, fins de semana. Fui ambicioso, queria um livro abrangente do ponto de vista histórico-cultural e, ao mesmo tempo, próximo da vida rica em acontecimentos e realizações do biografado. 
 
Quando reli o livro depois de publicado, identifiquei algumas falhas de informação e erros de revisão. Embora não comprometam, na essência, o conteúdo, pois no fundamental o livro está correto, me incomodam. Queria a perfeição mas o resultado não foi bem esse. Fiquei um tanto decepcionado. O tempo e a experiência me ensinaram a ser mais humilde. O fato é que, às vezes, essas coisas acontecem. Fazem parte do processo. O negócio é corrigir os erros, aprender com eles, tocar em frente. Se um dia houver uma reedição, espero poder corrigir os erros, ou que outros corrijam por mim.

Carlos Drummond de Andrade
 
O produto final entregue aos leitores serviu ao objetivo de chamar a atenção sobre sua obra e figura humana. Tempos mais tarde recebi carta de Carlos Drummond de Andrade, que guardo como relíquia, na qual ele diz que o livro fez justiça ao Alvinho e teve o mérito de lembrá-lo às novas gerações. Acrescentou tratar-se de um escritor e um amigo de quem sentia grande saudade, e que o trazia na memória do coração. Só por este reconhecimento creio que valeu a pena.
 
Com este breve recuerdo quero homenagear, além de Alvaro Moreyra, o grande poeta Drummond pelos 116 anos de seu nascimento completados hoje.
 
Um abraço para além do tempo, com afeto e gratidão de leitor, a ambos.
 
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*Alvaro Moreyra. Coleção Esses Gaúchos. Editora Tchê!, Porto Alegre, 1985.
O crédito das fotos será dado quando conhecidos os autores.
 

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Os livros e a diáspora

Jorge Finatto
 
 

Fui buscar na LIVRARIA TRAÇA dois livros do escritor maranhense Josué Montello (1917-2006). Nunca tinha lido nada dele. Há muitos anos um amigo me falou bem desse autor e agora resolvi ir atrás. A Traça situa-se na Av. Osvaldo Aranha, bairro Bom Fim, em Porto Alegre, tendo em frente algumas das velhas e altas palmeiras que acompanham o longo traçado daquela avenida. Entre elas, no passado, corriam os bondes. 
 
Perguntei ao livreiro se o negócio de livros sofreu muito os efeitos da crise (econômica, política e ética) que assola o país. Ele respondeu que livrarias fecharam ali no Bom Fim (antigo bairro judeu) nos últimos tempos. Observou, ainda, que aumentou o número de pessoas que vendem suas bibliotecas. A Traça trabalha com novos e usados.
 
O incremento da venda de bibliotecas caseiras está relacionado a mudanças de endereço por razões econômicas. As pessoas vendem imóveis maiores para ir morar em menores. Não podem levar junto seus livros. As mudanças ocorrem dentro da própria cidade, em geral. Mas cresceu o número dos que vão embora do Brasil. 
 
Há uma espécie de diáspora brasileira que vem aumentando a cada ano. Muita gente busca fugir da crise e da falta de perspectivas, situação a que chegamos após muitos anos de má gestão e intensa corrupção. Quem parte para outros países não pode levar livros. Doloroso. Os livros são patrimônio espiritual dos indivíduos e dizem muito sobre quem eles são e como foram se construindo no tempo.

Os livros que adquiri na Traça são Diário da Tarde (1987) e Diário do Entardecer(1991), páginas de diários de Josué Montello. Comecei a leitura do Diário da Tarde e fiquei bastante impressionado com a qualidade do texto (conteúdo e forma) e com a ampla e generosa visão do escritor em relação à vida e à cultura.

Estou deixando para logo mais a leitura de Os Tambores de São Luís (1985), romance que trata da escravidão no Brasil, desde o cativeiro até após a abolição, que localizei em outro sebo. Dizem que é sua obra-prima. Não encontrei seus livros em edições recentes. Lembro que o autor foi bastante conhecido em vida, sendo inclusive membro da Academia Brasileira de Letras (o que, para muitos, é coisa importante; eu acho bastante duvidoso).
 
Um detalhe, um regalo. Diário da Tarde contém uma dedicatória. Não consegui entender direito o que está escrito, a letra é difícil e meus olhos não ajudam muito. Supus que era um livro dado de presente a alguém. Pesquisando informes sobre o escritor no Wikipédia, encontrei por acaso um seu autógrafo. Para minha surpresa, constatei que a dedicatória foi assinada pelo próprio autor.

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Os três livros mencionados são da Editora Nova Fronteira.
 

domingo, 21 de outubro de 2018

Outubro

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto
 

É OUTUBRO. O jardim está florido outra vez. Respira cor, perfume. Uma ilha de delicadeza em meio a um país calcinado pelo ódio, violência, cinismo, corrupção.

Mas é outubro e o jardim floriu outra vez.  Vida que continua, apesar do medo que assola as cabeças, as casas, as ruas.
 
Não há de ser o fim do mundo (o mundo acabou faz tempo). Nem o fim da esperança (ela teima em não apagar entre as cinzas do estúpido incêndio).

É apenas mais um incêndio no meio do caminho. Mas o que é isso pra quem já superou outros e sobreviveu?

O verbo do Brasil continua a ser: sobreviver. Sobreviver aos tiros, aos socos na cara, às facadas, às ofensas à inteligência e à sensibilidade. Sobreviver às mentiras cuspidas todos os dias na cara da gente.
 
O ipê é amarelo, o céu é azul. Cada pessoa é parte de Deus, uma cor no belo arco-íris da criação. Mas é preciso merecer isso. Viver e seguir seu caminho é direito de todos. Só não pode querer, como muitos querem,  apagar a cor do outro.

Todos têm direito à sua luz.
 

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

O medo

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 

MEU medo
é adormecer um dia
de repente
e não te encontrar
nunca mais
Maria Izabel

entrar no bosque
álgido da bruma
profunda
varado
de tua ausência

se ao menos
tivesse
tua mão
amorosa
outra vez
 

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Montevideo: despacito suave suavecito

Jorge Finatto

charla en la Rambla. photo: jfinatto
 

GOSTO DE MONTEVIDEO. Me sinto bem caminhando por suas ruas de plátanos, praças, visitando seus cafés, livrarias, museus. Ando pela Rambla como um nativo do lugar, sem compromisso, sem paranoia, com o vento me empurrando feito um barco. 
 
Gosto de vagabundear sem medo pelas calles, onde em cada esquina se descobre um café, uma banca de jornal, pessoas conversando. Gosto de ver os velhos andando despacito, suave, suavecito, em qualquer hora do dia ou da noite, nas calçadas, entrando em restaurantes, sozinhos ou acompanhados, senhores de si.

Os criminosos cessaram aqui suas atividades e foram para outro lugar. Talvez para o Brasil.

Cafe Misiones. photo: jfinatto

Gosto de ler Galeano, Benedetti, Juan José Morosoli, Juan Carlos Onetti, Idea Vilariño, Felisberto Hernández, Mario Arregui. De passear pelas páginas terríveis dos Cantos de Maldoror, do famoso Conde de Lautréamont, o mais misterioso, espantoso, impressionante e cruel escritor do universo. Montevideano, claro.
 
Gosto de regressar ao quarto de hotel, echar una siesta, mientras escucho la Radio Babel. Con la lluvia en la ventana

Librería El Más Puro Verso. photo: jfinatto
 
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Radio Babel:

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Mensagem numa garrafa

Jorge Finatto
 
photo: Dave Leander. fonte: abc News
 

QUEM COLOCA MENSAGEM dentro de uma garrafa, jogando-a ao mar, ou ao rio, alimenta a esperança de que um dia alguém a encontre e leia. A palavra escrita, dentro e fora de garrafas, é um modo de lutar contra o esquecimento. No íntimo de cada um, o desejo de prolongar a vida no texto, de fazê-la maior, mais humana, menos frágil.
 
Ansiamos ressuscitar nos olhos de quem nos lê. As cartas, os bilhetes dos suicidas, as mensagens eletrônicas, os poemas, os livros, os blogues, as tais redes sociais, são maneiras de dizer: estou vivo. Tudo se escreve para fugir da casa do oblívio. 
 
A palavra, ao contrário de nós humanos, permanece. É capaz de carregar por séculos  a nossa efêmera felicidade, a nossa perplexidade, o nosso desespero e a nossa esperança. Por vezes, é tudo que fica de um dia feliz numa ilha ensolarada. Às vezes, é tudo que fica de uma vida.
 
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Excerto de texto publicado em 24 de junho de 2013.

domingo, 30 de setembro de 2018

Meu Caro Tito Madi

Jorge Finatto
 
Tito Madi
 

FAZ UM FRIO DE PRIMAVERA em Passo dos Ausentes. O fogão a lenha está aceso, como da vez em que estiveste aqui, e o pinhão cozinha na chapa. Pra completar, está chovendo... Uma chuva intermitente, que me lembra os versos da tua inesquecível Chove lá fora. Com saudades do amigo, coloquei teu disco a tocar: Balanço zona sul, Cansei de ilusões, Gauchinha bem-querer, Não diga não, Há sempre um amanhã, Minha, Dançador e tantas outras.
 
Além das belas melodias, as tuas letras (poemas) respiram sentimento, harmonia, sofisticação, elegância. E a tua voz cálida e doce vibra na exata medida, entre samba-canção e bossa nova, da qual foste precursor. É sempre uma maravilha te escutar.
 
A delicadeza da obra tem a ver com tua ascendência árabe (filho que és de pai libanês) e com o jeito brasileiro de ver o mundo. Nasceste em Pirajuí, interior de São Paulo, em 1929. No registro de nascimento está escrito Chauki Maddi. Mas és, de fato, o nosso Tito, Tito Madi, grande compositor e cantor do Brasil.
 
Soube que Carlos Drummond de Andrade gostava de teus escritos vertidos em música. Não surpreende diante de tanta qualidade.
 
Entre os que cantaram tuas canções, estão Agostinho dos Santos, Elizeth Cardoso, Maysa, Ivon Cury, Dolores Duran, Maria Bethânia, Wilson Simonal, Leny Andrade, Caetano Veloso, João Gilberto. Entre os parceiros, Mario Telles, Georges Henry, Paulo César Pinheiro.

No ano 2000 (foi ontem, Tito), perguntado sobre como te sentias pelo fato de muita gente considerar Gauchinha bem-querer uma composição folclórica (é uma das mais lindas músicas já escritas tendo o Rio Grande do Sul e o amor por tema), assim respondeste, em memorável entrevista ao Caderno de Literatura nº 7, da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul:
 
- A minha música, de fato, já quase virou folclore gaúcho. Fico feliz com isso. Porto Alegre me deu essa extraordinária oportunidade de homenagear o querido Estado do Rio Grande do Sul. A canção nasceu da grande paixão pelo Rio Grande e pelos grandes amigos que aí conquistei. Entre eles, os integrantes do conjunto Norberto Baldauf, Adão Pinheiro - um dos maiores pianistas do Brasil -, Salimen Júnior, Glauco e Primo Peixoto.
 
Uma pessoa generosa, discreta, amorosa. E um senhor criador. Essa a imagem que guardo do artista - e do ser humano -, naqueles encontros aqui na Serra, em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. Nada a ver com vaidade, caras e bocas, umbigo no centro do mundo. 

Uma pessoa, enfim, de quem sinto muitas saudades (assim mesmo, no plural) e a quem mando um grande abraço, ainda que, desta vez, infelizmente, póstumo diante da morte na última quarta-feira.
 
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Tito Madi morreu em 26 de setembro de 2018, aos 89 anos, no Rio de Janeiro onde vivia.
 
Balanço Zona Sul:

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

A volta do Cavaleiro da Bandana Escarlate

Jorge Finatto

photo jfinatto


VULTO NA PRAÇA. A luz amarela seria poética, não fosse o perigo dos assaltos. Um observador oculto espreita entre as buganvílias.

Quem vem lá? Difícil saber na escuridão sem trégua. A noite de domingo até podia ser romântica. Mas há indivíduos dormindo nos bancos da Praça Maurício Cardoso em Porto Alegre. Dois bêbados urinam sob a pérgula.

A cidade não tem piedade dos seres delicados. Mas há que vencer o mal com o bem. É essa a hora do menestrel, do cavalo fiel, da capa, da espada e do alaúde.

Eis que emerge da treva tremenda o Cavaleiro da Bandana Escarlate, montado no seu cavalo branco. Vem galopando desde muito longe, desde os Campos de Cima do Esquecimento, desde o fim do mundo. Vem para a batalha final.

Atravessa a praça no garboso corcel de arado, cuidando aqui e ali pra não amassar as flores. Um cara passa correndo atrás de outro pela rua afora, gritando coisas impublicáveis.

O cavaleiro veste a capa de seda preta. A máscara negra não permite lhe descubram o segredo. Traz o antiquíssimo alaúde a tiracolo.

O mimoso instrumento pertenceu a um seu trisavô que veio fugido da Itália. Aqui se estabeleceu no ramo dos embutidos e depois mourejou em negócios obscuros.

O cavaleiro tem genealogia, portanto. Mas o que passou, passou.

Neste momento ele cruza pro outro lado da rua e estaciona o alvo eqüino (com trema, por favor) debaixo do balcão da Meiga Donzela Dionéia (com acento, por favor, não obstante o desprezível (des) acordo ortográfico).

(Não levamos fé no tal contrato ortográfico, por isso lutaremos até o fim deste texto para salvar de morte cruel o vero escrever de João Guimarães Rosa deste lado do Atlântico como fazem, por seu turno, nossos aliados na Terra de Camões, Raul Brandão, Pessoa, Saramago, Florbela e Lobo Antunes.)

O nosso herói saca com grande donaire o lustroso instrumento.

Dedilha então os primeiros acordes. A melodia acorda a Musa que, entre estremunhada, descabelada e furiosa, vai até a janela do balcão saber do que se trata. Não acredita no que vê.

- O que quereis, ó, Cavaleiro do Alaúde em Riste? - pergunta com voz sinistra. - Acaso não percebeis que altas horas são? Não vos dais conta do ridículo? Estamos em 2020, please!

E prossegue a Incontornável camena:

- Deixai-me dormir, ó, Misterioso Mascarado. Amanhã é dia de pegar no batente outra vez, voltar pra dureza inglória da vida. Retornai ao vosso castelo de areia e vento, ó, Romântico Senhor, poupai-me. Do contrário, obrigar-me-ei a chamar os homens da lei para vos untarem com rudes afagos, que é o que deveras mereceis.

O Cavaleiro da Bandana Escarlate silencia o mimoso instrumento. Baixa a cabeça. Parece não acreditar no que acaba de ouvir. Cavalgou durante dias por estradas cheias de perigos. Mais de uma vez viu-se forçado a jogar-se no matagal com o esbaforido e lácteo corcel por força de grosseiros caminhões.

Para não comprometer ainda mais o idílio, decide retirar-se. Num gesto de rara nobreza, joga uma rosa branca ao balcão. Depois ergue alto o alaúde na mão esquerda, empina o pangaré e grita:

- Eu voltarei na primavera, ó, Estressada Dionéia, Musa Minha Indomada. A rejeição é uma refeição que se come fria. Mas jamais esfriará este esgualepado coração.

Ao proferir essas sonantes palavras, escorrega do gentil animal e estatela-se na fria calçada, magoando a triste cabeça que a escarlate bandana - agora rasgada - antes cobria.

Aos poucos recompõe-se o Nobre Cavaleiro. Junta o alaúde, apruma-se sobre o valoroso eqüídeo (nessa altura, tanto faz como tanto fez o trema) e parte no trote.

Enquanto cruza de volta a Praça Maurício Cardoso, um insensível abre a janela num edifício próximo e manda:

- Vá tomar no seu caju (aqui é suprimida a expressão original pela fruta, a fim de manter o mínimo decoro).

Assim que, sem perder a altivez, o nosso Ilustre Menestrel Medieval desaparece na noite escura da grande cidade.

Um bêbado atira uma pedra e quebra a luminária da praça. Fim.
 
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Texto revisto e atualizado, publicado no blog em 27 de abril, 2010.

terça-feira, 25 de setembro de 2018

O barco mais triste do mundo

Jorge Finatto
 
Coimbra e o pequeno cais. photo: jfinatto

A MINHA PAIXÃO por barcos e navegações sempre me leva a cidades de mar ou rio. Sou um bicho das águas. O fato de ter nascido, e de ter voltado a viver, depois de muitos séculos, numa cidade serrana é apenas uma das contradições que me definem.
O sonho menino de ser marinheiro nunca me abandonou. Contudo, não vesti a farda azul-marinho. Em contrapartida, conheço o suspiro das cordas que seguram os navios no cais.
Em Coimbra, existe um barco de passageiros com o nome de Basófias, fundeado no pequeno cais, perto do centrinho da cidade portuguesa que possui uma das mais vetustas universidades da Europa.
Resolvi, em três ocasiões, em diferentes anos, ir ao encontro do Basófias e fazer um passeio pelo Mondego, o belo rio que me faz sentir saudade do Guaíba quando estou por lá. Ocorre que em nenhuma delas consegui realizar a navegação.
Numa das vezes, o barco estava em manutenção; noutra, não havia passageiros além de mim; numa outra ainda, o tempo mau do inverno não permitiu levantar âncora.
A tripulação do Basófias é composta por marinheiros uniformizados a rigor, afáveis no trato. A pose e o orgulho náuticos não deixam dúvida de que estamos, possivelmente, diante de calejados navegadores.
O Basófias, porém, permaneceu no meu imaginário como um barco que jamais saiu do cais.
Às vezes, fico pensando nas minhas vãs tentativas com o Basófias. Nas amarras que o impedem de lançar-se ao Mondego e cumprir o destino para o qual nasceu. É talvez o barco mais triste do mundo.
De certa forma, o Basófias é a metáfora da existência de muitos. Tantas vidas que ficam à margem, esperando no cais, esperando uma viagem que nunca acontecerá.
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Texto revisto, publicado antes em 03 de março, 2010.