sexta-feira, 7 de junho de 2019

Ao viajante solitário

Jorge Finatto

Canela, RS. photo: jfinatto
 
AS COISAS que não aconteceram são as que mais se afeiçoam à minha memória. A biografia que vale os veros registros: a dos não-acontecimentos, a dos impossíveis sonhos. 

O resto são pedras que se carregam dentro dos bolsos. Como os suicidas caminho do mar. Essa cidade é onde o abandono é dono.

As praças vazias onde me quedo ouvindo falecidas conversas. Ó ausências do mundo!

Bardo obscuro e tabelião de papéis perdidos em Passo dos Ausentes, eu vivo os interstícios. Os ásperos padecimentos da humana travessia. Cheio pelas orelhas de frustrações, tapas na cara, rasteiras e desejos. Quem houvera nesta vida maledeta se dignasse escutar meus ais.
 
Viver é assunto proceloso e bem noturno. Por isso estou aqui. Me contando, me inventando.

Sou o bardo barroco, ressuscitado em salvadoras prosopopéias. A obsessão pela música interior. Essa que me faço e entrego ao vento. Construo o venturoso canto. Não me interessa a realidade. Quem quiser a realidade, bem a guarde e embale.

Sou viajante de um tempo que se esfuma. O tal.

A saudade é um retrato em branco e preto na gaveta do oblívio. Os pedaços de cada um.

O meu coração habita um quarto de pensão. A pensão se chama Ao viajante solitário. Às vezes penso que o mundo é uma grande pensão. A pensão dos viajantes solitários. E viver é um fiozinho de orvalho estendido de manhã sob o sol.

Somos parceiros das nuvens e da bruma. Caminho para o lugar ermo dos esquecidos.

Eu, Landgrave dos Santos Strano, inquilino do absurdo, apresento-me ante vossa alta ausência.

Passo dos Ausentes, nos Campos de Cima do Esquecimento. Rio Grande do Sul, Brasil, Fim da Via Láctea. Dou fé e assino.

Provavelmente outono.
 

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