quinta-feira, 18 de março de 2010

O testemunho dos livros

Jorge Adelar Finatto



Os livros que nos acompanham pela vida são testemunhas da nossa história. De certa forma, somos feitos dos livros que lemos, e eles fazem parte do nosso ser.

O tecido das manhãs com que foi escrito Vagamundo ainda está presente nas suas páginas. O pequeno/grande livro está na minha estante há muitos anos, mas parece que chegou na semana passada. Difícil descrever o que senti ao ler os contos do volume de 96 páginas do uruguaio Eduardo Galeano. São contos, mas também podem ser chamados poemas. É uma dessas obras inesquecíveis.

Na parte interna da orelha esquerda, o registro do tempo em que o comprei: setembro de 1978. Um pedaço de mim está nesse livro como está nas páginas de tantos outros que me ajudaram a respirar naquele período sufocante, num país doente, num continente afundado em ditaduras, inclusive a de Cuba, que muitos de nós, naquele momento, víamos com outro olhar. Achávamos o sistema cubano justo e necessário.

Um engano, entre tantos, olhando com olhos de hoje. A ditadura cubana, que é uma tirania, está no poder desde 1959. O país não tem liberdade, a pobreza vive nas casas e nas ruas, e as pessoas que procuram mudar a realidade são presas ou mortas, como no recente caso do dissidente político Orlando Zapata Tamayo, que morreu após 85 dias de greve de fome.

De qualquer modo, escritores como Eduardo Galeano alimentaram e alimentam nosso sonho e nosso ideal de uma sociedade mais humana, democrática e muito mais justa. Isto é inspirador em qualquer época, independente de nossos enganos.
 
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Vagamundo, Eduardo Galeano. Editora Paz e Terra, tradução de Eric Nepomuceno, 2ª edição, Rio de Janeiro, 1977. Com texto de apresentação de Otto Maria Carpeaux.
 

quarta-feira, 17 de março de 2010

Homem com naufrágio dentro

Jorge Adelar Finatto



O homem morava dentro do escafandro.
Os peixes o acompanhavam aonde quer que fosse.
Habitava o território de uma aquarela marinha.
As tardes povoadas de barcos, gaivotas, ventos, búzios.
Ela partiu certa manhã para um giro em torno da ilha onde viviam.
Gostava de ouvir o rumor azul do mar batendo nas pedras.
Nunca mais retornou.
O homem foi mirar os longes na beira do alto penhasco.
A barba cresceu, o tempo misturou as folhas do calendário, enquanto ele esperava.
A lágrima verteu cálida sobre a face fria.
Ele foi então morar no interior do escafandro.
Homem com naufrágio dentro.
Ela estava deitada no leito submerso do seu coração.
Nada em sua nudez lembrava a cálida presença.
O rosto parecia sereno, feliz.
Os cabelos flutuavam como anêmona.
Ele quis morar com ela no fundo das águas.
O irremediável abismo o chamava.
Muitas noites adormeceu com a esperança de não acordar.
Os peixes desenhavam coloridos traços ao redor do homem para despertá-lo.
Um dia ele acordou nas profundezas da manhã austral.
Uma força impressionante puxou o escafandro, ele enfim subiu,
arrastando suas correntes.
A praia vazia, as palmeiras, o horizonte.
A voz dela se distanciando na trompa dos búzios.
O homem saiu a andar na praia deserta da aquarela.
O que ele fez para suportar todas as manhãs que vieram depois? É um segredo que só os cavalos-marinhos e as anêmonas conhecem.

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Foto: J. Finatto. Escafandro utilizado por velhos marinheiros da Fragata Sarmiento, hoje museu naval, em Puerto Madero, Buenos Aires.
 

Vivo, vivíssimo*

José Saramago

Intento ser, à minha maneira, um estóico prático, mas a indiferença como condição de felicidade nunca teve lugar na minha vida, e se é certo que procuro obstinadamente o sossego do espírito, certo é também que não me libertei nem pretendo libertar-me das paixões. Trato de habituar-me sem excessivo dramatismo à ideia de que o corpo não só é finível, como de certo modo é já, em cada momento, finito. Que importância tem isso, porém, se cada gesto, cada palavra, cada emoção são capazes de negar, também em cada momento, essa finitude? Em verdade, sinto-me vivo, vivíssimo, quando, por uma razão ou por outra, tenho de falar da morte…

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*O Caderno de Saramago.
Texto de 18/11/2008.
http://caderno.josesaramago.org/.
Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/

terça-feira, 16 de março de 2010

Grupo Sanguinovo

Jorge Adelar Finatto


Estive em São Paulo pela primeira vez em 1979. O motivo da viagem era conhecer de perto os integrantes do Grupo Sanguinovo, que só conhecia por cartas. O poeta Antonio Carlos Lucena, o Touchê, foi um dos idealizadores do movimento. Era um querido amigo e parceiro. Morreu precocemente em 1985.

O Sanguinovo organizou passeatas poéticas em São Paulo, intervenções em lugares públicos, lançamentos de obras, leituras de poemas, e aproximou gente do Brasil inteiro. O Sanguinovo lutava pela democratização do país, queria a livre circulação da arte e da poesia.  O tempo difícil da ditadura exigia fé, coragem e criatividade. Era comum o pessoal mostrar e vender o trabalho do grupo na rua, em bares, festas, reuniões, eventos.  

Touchê criou, entre tantas coisas, os poemas do poste, que eram cartazes com textos de cinco ou seis autores cada um. Era um jeito diferente de mostrar a poesia. O suporte eram os postes de iluminação da cidade. A população gostou, a ideia fez sucesso. Na época, a imprensa ainda abria espaço a esse tipo de manifestação.

Participei do Poema do Poste nº 6, lançado em setembro de 1980. A publicação teve apoio da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, sendo impressa na Gráfica Municipal.

O meu primeiro livrinho de poemas, Viveiro, saiu pelo Sanguinovo em 1981, com noite de autógrafos (!) no Spazio Pirandello, o lugar cult da cidade na época. Na ocasião também foi lançado um livro da poeta Leila Míccolis, outra amiga  e incentivadora do grupo. Aliás, Leila fez uma das apresentações do Viveiro. A outra foi escrita por Heitor Saldanha.  O meu pequeno livro só foi possível graças à participação do poeta Touchê, que tinha um invulgar talento criativo e enorme capacidade de agregação.

Como não havia email, as comunicações entre os integrantes do grupo eram feitas por carta. Durante muitos anos eu tive uma caixa-postal na agência central do correio em Porto Alegre.

Havia muita vida naquelas cartas, muitas trocas, muita amizade. Notícias de sonhos e realidade chegavam e partiam nas malas postais.

Um tempo de esperança e pequenas gentilezas que fazia tão bem.

Cheguei, então, na rodoviária de São Paulo. Como não conhecia nada nem ninguém, saí andando, apenas com um endereço no bolso. Acabei na frente da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo.

Estava estacionada ali perto uma viatura da então muito temida Rota, da Polícia Militar de São Paulo. Havia nela dois policiais. Desceu um deles e veio em minha direção. Eu estava vestindo roupa de brim, tênis, o velho bornal ao ombro, uma mochila. Me perguntou se estava tudo bem, iniciou uma conversa. Eu fiquei frio, e fui sincero: preciso ir neste endereço e não sei como fazer. Expliquei que tinha acabado de chegar de Porto Alegre.

O soldado então me convidou a entrar na viatura. Disse que me levariam até aquele lugar. Entrei, embora desconfiado e estranhando tanta gentileza por parte de policiais, incomum ou inexistente em plena ditadura. Acho que andamos uns 20 minutos. A conversa foi agradável, amenidades. Os policiais me deixaram na frente da casa, que ficava em Vila Madalena, bairro de intelectuais e artistas. Nos despedimos com um aperto de mão.

Mais tarde contei o acontecido às pessoas da casa - artistas pásticos, músicos, escritores, professores - que não acreditaram na minha história. Onde já se viu aquele tipo de gentileza? Custei muito a convencê-los.

Num outro dia, durante aquela viagem, caminhava pela rua quando caiu uma forte chuva. Me abriguei sob o pequeno toldo de uma fruteira. A dona, uma senhora que parecia japonesa, veio lá de dentro e me convidou a entrar. Eu agradeci, disse que não, não queria incomodar. Ela foi lá dentro. Em seguida voltou e me entregou um guarda-chuva para me proteger melhor. Esperei uns quinze minutos até a chuva passar. Entrei, devolvi o guarda-chuva e agradeci. Me despedi. Ela sorriu e desejou tudo de bom.

Na noite em que retornei, caía uma garoa e havia uma leve neblina em São Paulo. Dentro do ônibus, olhando lá fora as ruas da cidade, tive a impressão de ver Mário de Andrade numa esquina, com os óculos redondos, terno e gravata. Segurava um guarda-chuva numa da mãos. Com a outra, me acenou sorrindo.

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Foto: J. Finatto. Poema do Poste nº 6. Grupo Sanguinovo, São Paulo, setembro, 1980.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Pharol de Santa Martha

Jorge Adelar Finatto


Um dos grandes fotógrafos brasileiros, Eduardo Tavares estará autografando seu livro Pharol de Santa Martha, na próxima quarta-feira, 17 de março, a partir das 19h30min, na Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que fica na Rua Ramiro Barcelos, 2705, atrás do Planetário, em Porto Alegre.

A publicação resulta da conviência amorosa do autor com o antigo farol de 1890, cujo nome original era assim mesmo, com ph e th.  Desde 1982 Tavares frequenta o local, situado a 15 km de Laguna, Santa Catarina.

Sempre que pode, ele ocupa uma casinha do Morro do Céu e de lá observa a maravilha. São praias, lagoas, dunas, sambaquis, a flora e a fauna, a vila e seu povo, a pesca, o turismo, o farol iluminando tudo no inverno e no verão. Eduardo remete o leitor a esse ambiente único e também conta a história do lugar.

O livro  tem formato elegante, 264 fotos coloridas e texto do próprio autor. São 68 páginas de beleza e sensibilidade, em papel cuchê, pelo preço de R$ 35,00. Pedidos podem ser feitos pelo email ete@terra.com.br.

Jornalista com notável currículo, Eduardo lecionou na UFRGS e trabalhou em revistas como Veja e Manchete, entre outras.

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Foto: Eduardo Tavares

A solidão segundo Heitor dos Crepúsculos

Jorge Adelar Finatto

 


Somos poucos e invisíveis. Habitamos os Campos de Cima do Esquecimento.
 
O outono amadurece nas ruas da velha cidade. É quando, no silêncio de antigos retratos, as imagens ganham vida própria e passam a viver outra existência. Um certo rumor habita o silêncio.

O fantasma-mor de Passo dos Ausentes diz que desistiu de aparecer e desaparecer no ar feito nuvem de neblina. Heitor dos Crepúsculos afirma que o motivo é simples: a canseira que isso lhe dá.

- Materializar-se, desmaterializar-se, não apenas cansa, como é parte de um formalismo que perdeu a razão de ser neste lugar, - declara.

- É um ritual desnecessário em Passo dos Ausentes, onde todos padecem do fenômeno da invisibilidade.  A cidade e seus habitantes nem ao menos figuram no mapa do Rio Grande do Sul, - constata Heitor.

O nosso lugar no universo é um mistério.
 
Somos personagens de um mundo em extinção.

A cidade não existe oficialmente, apesar dos inúmeros pedidos nesse sentido feitos ao Estado ao longo do tempo, todos denegados. E, no entanto, somos uma das cidades mais antigas da Província de São Pedro. Surgimos logo depois da destruição da Missão de São Miguel Arcanjo pelos exércitos de Espanha e Portugal. Essa história já abordamos no documento A cidade perdida: as origens, neste mesmo espaço.




As pessoas nada sabem da nossa cultura, das nossas origens, do nosso sentimento e da nossa história. Vivemos isolados. Em parte devido às difíceis condições de acesso pelas encostas das montanhas. Também influi o fato de sermos uma pequena comunidade com cada vez menos habitantes. Um outro aspecto tem a ver com a indiferença dos governantes e dos meios de comunicação, que só vêem o que lhes interessa.

Simplesmente não nos vêem, não nos conhecem, não nos sentem.

A Sociedade Histórica, Literária, Filosófica, Geográfica, Artística, Geológica e Astronômica de Passo dos Ausentes, presidida pelo filósofo Don Sigofredo de Alcantis, decidiu incluir Passo dos Ausentes na carta estelar da constelação de Atlântida, como forma de melhorar a nossa autoestima. É onde hoje figuramos no universo.

De certo modo Heitor tem razão de abandonar certas formalidades fantasmagóricas na Terra dos Ausentes. Anda pelas ruas como um de nós. Ninguém estranha.

A única norma fantásmica da qual Heitor não abre mão é a que diz respeito a jamais deixar-se fotografar. Isso, segundo afirma, seria expor-se demasiado, até mesmo para um fantasma com costumes e idéias liberais como ele.

O lugar preferido de Heitor dos Crepúsculos, na verdade, são dois.

Um deles é o Café Somos Poucos, um recanto aprazível, com gerânios nas janelas, perto da Praça do Esquecimento. Ali se pode tomar o delicioso cappuccino dos suspiros, acompanhado do inefável sonho do oblívio.

Heitor senta-se no fundo do café. A pequena mesa fica ao lado de uma janela que tem sempre metade da veneziana fechada, a seu pedido.

- Gosto de ficar aqui lendo, é o meu ponto de observação das palmeiras, da estrada de ferro e das ausências que povoam esse não-lugar - observa.
 
O outro lugar de Heitor dos Crepúsculos é a velha estação de trem abandonada. Está desativada desde 1951. A antiga maria-fumaça permanece na gare, como nos tempos dos trens de passageiros. Mas nunca ninguém mais viajou como antes.

Dos Crepúsculos aparece na estação, nas tardes cinzentas, pra conversar com seu amigo Juan Niebla, 86 anos, músico cego que toca bandoneón pra alegrar os invisíveis passageiros que não chegam mais. Niebla, apesar disso, não abandona o cargo público para o qual fez concurso e foi nomeado aos 15 anos, em 1927, ficando cego logo em seguida. Permanece no seu posto aguardando a volta do trem de ferro.
 
- No dia em que o trem voltar a nossa cidade, subindo as íngremes montanhas outra vez, estarei aqui para receber os viajantes - diz ele.

Às vezes, Niebla e Heitor saem a caminhar sobre os dormentes até desaparecer na névoa que aqui em Passo dos Ausentes é permanente. Em certas ocasiões, Heitor faz movimentar a maria-fumaça e eles saem em breves passeios pelo caminho dos pinheiros, na margem sinuosa do Rio da Ausência.
 



O trem, que nunca mais desceu os temerários paredões de basalto da Serra dos Ausentes, contorna perigosos peraus nas cercanias da cidade, descortinando ao longe uma das mais belas vistas do planeta. O trem fantasma depois volta para seu lugar na estação.

Numa de nossas conversas, Heitor dos Crepúsculos confidenciou o quanto a solidão lhe pesa no coração.

O fantasma gosta de me visitar vestindo o negro capote, nos dias de chuva, no escritório.

- Como já disse uma vez, um fantasma só se torna fantasma porque ama a vida e não aceita volatilizar-se em definitivo. Sonha a impossível permanência entre os vivos. Sempre me sinto sozinho, o que não é de espantar para alguém que se matou, num momento de bobeira, aos 27 anos. O anoitecer é o pior momento do meu dia. Queria ter sido uma pessoa mais leve, mais feliz, com mais fé. O que se há de fazer?
 
Continua Heitor:

- À noite é quando fica mais escuro dentro da minha alma. Saio a me procurar pelos corredores, escadas e sótãos do meu ser abandonado. Sinto essa falta de ser que sempre me acompanhou. Durmo por exaustão, é como cair num poço. É estranho como certas ausências nos acompanham pela vida e atravessam o umbral conosco.

- A noite me invade e me desconcerta. Esse frio e esse vento me habitam. Vivi, vivo (modo de dizer) no chapadão dos Campos de Cima do Esquecimento. Um tempo sem relógios.
 
- Os dias caem do calendário como as folhas no outono.

- Nasci em Passo dos Ausentes, aqui me criei.  O meu melhor amigo sempre foi Juan Niebla. Não me evita como os outros.

Niebla costuma dizer:

"Pra mim, nunca morreste, Heitorzinho. Não sei se és um fantasma como dizem, nessa altura pouco me interessa. Se fores, tanto faz. Sou músico e sou cego, moro nessa lonjura, um pouco fantasma também. O importante é que me visitas. Como vês, aqui na estação tudo é muito solitário. Sou eu, meu bandoneón e este banco. Ainda bem que estás por perto.
 
"Acho que somos todos uns desarraigados neste mundo, uns pobres coitados, cada um traz o irremediável dentro de si, só que uns escondem melhor o desamparo do que os outros".

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A cidade perdida: as origens:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/06/cidade-perdida-as-origens.html

Um fantasma quer conversar:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/05/um-velho-fantasma-quer-conversar.html

A claridade do coração:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/04/claridade-do-coracao.html
 

sábado, 13 de março de 2010

O Clube da Esquina

Jorge Adelar Finatto




O que nos dizia o Clube da Esquina no vendaval das nossas vidas pequenas e massacradas na década de 1970? Dizia que era possível ir muito além da pobreza material e espiritual daqueles dias. Dizia que valia a pena acreditar na amizade, no encontro, na ousadia, na transgressão do ódio e da hipocrisia.

Mostrava que nada podia amputar nossos sonhos, nossa criatividade. A vida podia e devia ser bonita.

O Clube da Esquina não tinha carteirinha, nem endereço, tampouco piscina e sede campestre. Era um lugar espiritual onde as pessoas se reuniam em qualquer dia, qualquer hora, qualquer estação do ano. Os sócios espalhavam-se pelo Brasil.

A senha dos frequentadores do Clube estava no jeito, no olhar, no modo de ser, na amizade verdadeira, na busca.

Muitos construíram saídas existenciais frequentando o Clube da Esquina. Ali se cultivavam encontros, pomares de alegria, viveiros de afeto. Um modo diferente de olhar a vida num país que tinha perdido o encanto e a esperança.

Uma maneira diferente de traduzir essa coisa tão velha que é o indivíduo estar no mundo, mergulhado numa paisagem sombria, sob sol e chuva, e seguir adiante, apesar de tudo.

Construções melódicas e letras inusitadas, instigantes, sensíveis, tão diferentes do que tinha sido feito até então.

O fundo musical da minha adolescência foi inventado pelo Clube da Esquina, de Milton Nascimento, Lô Borges e companheiros de estrada. Estamos falando dos anos 1970. O famoso clube mineiro vinha dos anos sessenta, quando Milton tinha vinte e poucos anos e havia feito músicas eternas como Travessia (em parceria com Fernando Brant) e Morro Velho, que chamaram a atenção do mundo.

O Clube da Esquina, disco lançado em março de 1972, trazia um recado urgente. Era uma música nova, numa época difícil. As portas estavam fechadas para a juventude. Os ares das montanhas de Minas Gerais, o sertão, as veredas, as paisagens de concreto, vidro e aço das grandes cidades, a loucura da história, tudo vinha junto nas canções. O antigo e o moderno.

A impressão é que nada de importante escapava dos integrantes do Clube. Eram poetas lúcidos e líricos, profundamente brasileiros, latino-americanos, um canto universal.

Havia no trabalho daqueles jovens músicos e compositores muito de cinema, leitura de filosofia, literatura, conhecimento da arte em geral, que os levava a uma reflexão atual sobre a vida, a risco, a céu aberto. O paredão da censura e do medo não lhes caía bem, o grupo rejeitava com coragem esse tipo de interferência.

Eu estudava com meia bolsa numa escola particular de Porto Alegre, na qual havia filhos de famílias de classe média e alta. Quando vim a ter a minha primeira jaqueta Lee, americana, esse vestuário já saíra de moda.

Sempre estive fora de moda naquela escola. Ir todos os dias pra casa, no bairro distante, no ônibus velho e lotado, era de certa forma um alívio. As pessoas mais afortunadas não conseguem esconder certa estranheza diante dos pobres, quando eles entram no seu ambiente.

Mas a leitura e a música, duas coisas relativamente acessíveis, abrem caminhos ensolarados.

No Clube da Esquina não se barravam pessoas pela classe social ou qualquer outra. Aprendi a olhar nos olhos dos outros, sem ter vergonha de ser pobre e não ter as coisas materiais que, para muitos, são importantes. Havia outras riquezas.

Foi um amigo da escola, filho de militar de alta patente do Exército, quem comprou o primeiro Clube da Esquina. Me convidou para ouvir o disco. O cara tinha até um quarto só pra ele! Passamos muitas tardes de nossas vidas de adolescentes dentro do Clube.

Podíamos, então, sair em viagem com O tem azul (Lô Borges e Ronaldo Bastos):
Coisas que a gente se esquece de dizer
Frases que o vento vem às vezes me lembrar
Coisas que ficaram muito tempo por dizer
Na canção do vento não se cansam de voar
Você pega o trem azul
O sol na cabeça
O sol pega o trem azul
Você na cabeça
O sol na cabeça

O Clube da Esquina era a gente andando no meio do mundo. A gente vivendo numa realidade seca, mas com esperança.

Os militares ocupavam o poder de forma truculenta. Do outro lado, pessoas estavam na luta armada. O país se matava. Não havia conversa, não se encontravam saídas. Era o tempo dos assassinatos, dos sequestros, da tortura, dos banimentos, dos assaltos a bancos, das emboscadas, da violência como única forma de luta.

A luta encarniçada pelo poder.

A estética do Clube da Esquina era a da resistência e do rompimento com o atraso e a falta de imaginação. Em 1972, o antológico disco foi um enorme acontecimento. Entre os participantes estavam Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Lô Borges, Márcio Borges, Beto Guedes, Toninho Horta, Wagner Tiso, Paulo Moura, Nelson Ângelo, Eumir Deodato, além, claro, do próprio Milton. Em 1978, veio à luz o Clube da Esquina 2, com nomes em acréscimo, como Tavinho Moura, Paulo Jobim, Joyce, Ruy Guerra, Novelli, Danilo Caymmi, entre outros.

As pessoas que participavam do Clube da Esquina tinham em comum a inquietação pelo novo, na vida pessoal e no espectro coletivo, sendo a música a via de chegada a este tempo futuro, que já se fazia presente nas letras e canções. Pessoas de diferentes classes sociais, com aspirações de justiça e fraternidade, se encontravam no Clube.

Em 1975, Milton Nascimento apresentou-se com seus amigos em Porto Alegre. Foi no Gigantinho, ginásio de esportes ao lado do Gigante da Beira Rio, do Internacional, à beira do Guaíba. Lembro-me que não ocupamos a arquibancada, o público era pequeno. Sentamos no chão mesmo, à vontade, diante do palco improvisado, a poucos metros dos músicos. Foi um grande e inesquecível show, Milton cantando os "clássicos" que faziam tremer nossos corações. Depois, generosamente, atendeu aos pedidos de músicas extras.

O pessoal do Clube da Esquina não assumiu pose de ídolo. Eram ao natural. Começando pelo primeiro, Milton Nascimento, reservado, com notável intuição, informação cultural e uma capacidade impressionante para decifrar os enigmas do tempo e ver adiante. Com suas músicas, esses artistas iluminaram o nosso duro chão de viver.

Ainda hoje escuto as músicas do Clube da Esquina com o mesmo arrepio, o mesmo alumbramento dos anos setenta do século passado. Como puderam fazer algo tão bonito e ao mesmo tempo tão presente na vida de tanta gente? O trabalho dos integrantes do Clube vinha de outra esfera de consciência, reservas espirituais.

Estavam perto de Deus, dos anjos, dos homens.

Com eles, num domingo qualquer, sem nenhuma perspectiva, aprendemos que Nada será como antes (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos):
Eu já estou com o pé nessa estrada
Qualquer dia a gente se vê
Sei que nada será como antes, amanhã
Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Alvoroço em meu coração
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite
Um gosto de sol


Num domingo qualquer, qualquer hora
Ventania em qualquer direção
Sei que nada será como antes, amanhã
Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Sei que nada será como está

Éramos urbanos, mas, nas canções do Clube, colocávamos os pés também no interior, em estradas de terra, conhecendo nosso país. Andávamos de carro de boi, atravessávamos vales e montanhas, tomávamos banho de rio e de mar.

Nenhum outro movimento musical nos disse tantas coisas, nos tocou tanto, nos projetou para o futuro, em um país que tratava - e ainda trata - seus jovens como marginais.

A obra visceral de Milton Nascimento e seus amigos nos alimentou com vida solidária e convivente.

Um sentido de partilha atravessou a escuridão.

Uma visão de transcendência espalhou-se no cotidiano.

Uma paisagem vista da janela mostrou-nos que a vida pode ser o que fizermos com ela.

Um pouco/muito da existência de muita gente no canto e na voz humana de Milton Nascimento.

No meu bornal de lembranças, lá está o trenzinho passando na frente das montanhas, com o sol atrás, como no desenho de Milton. Aquelas canções seguem dentro de nós pelas ruas vazias, nas salas de espera, nas filas dos ônibus, trens, barcos e aviões, nas calçadas, nos hospitais, praças, na volta do mercado público de Porto Alegre, nos difíceis ambiente de trabalho.

A vida nunca mais seria a mesma.

Milton gravou mais uma vez a amizade, no Clube da Esquina 2, na canção Que bom, amigo, de sua autoria:
Que bom, amigo
Poder saber outra vez que estás comigo
Dizer com certeza outra vez a palavra amigo
Se bem que isso nunca deixou de ser
Que bom, amigo
Poder dizer o teu nome a toda hora
A toda gente
Sentir que tu sabes
Que estou pro que der contigo
Se bem que isso nunca deixou de ser
Que bom, amigo
Saber que na minha porta
A qualquer hora
Uma daquelas pessoas que a gente espera
Que chega trazendo a vida será você
Sem preocupação

O Clube da Esquina, sem carteirinha de sócio e sem sede, nos acolheu e tratou como irmãos.
Como disse Milton, no excelente livro Os sonhos não envelhecem*, do poeta, escritor e autor de letras de canções Márcio Borges:

“E mais uma vez penso que o Clube não pertencia a uma esquina, a uma turma, a uma cidade, mas sim a quem, no pedaço mais distante do mundo, ouvisse nossas vozes e se juntasse a nós. O Clube da Esquina continua vivo nas músicas, nas letras, no nosso amor, nos nossos filhos e quem mais chegar”.

O Clube da Esquina, solto no espaço como nuvem, tem a porta de entrada no nosso coração.


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Foto: capa do disco Clube da Esquina, 1972.
*Os sonhos não envelhecem. Histórias do Clube da Esquina. Márcio Borges, p.358. Geração Editorial, São Paulo, 1996.