quarta-feira, 31 de março de 2010

Theodor Adorno e a poesia depois de Auschwitz

Jorge Adelar Finatto


O filósofo alemão Theodor Adorno (1903 – 1969) perguntou, em 1949, se era possível escrever poesia depois de Auschwitz.

O pensador da Escola de Frankfurt falou em poesia, mas poderia ter dito música, artes plásticas, filosofia, cinema. Podia ter perguntado também se ainda seria possível comer, caminhar, estudar, ler, trabalhar, amar.

A imensa perda de sentido humano que ocorreu naquele campo de concentração nazista, localizado na Polônia ocupada por forças alemãs durante a Segunda Guerra Mundial, leva inexoravelmente ao silêncio.

Mais de um milhão de judeus foram assassinados ali. Como os demais campos, era fábrica de matar gente. Ciganos, homossexuais, Testemunhas de Jeová e dissidentes políticos também padeceram nesses territórios do inferno, construídos por Hitler e seus sanguinários acólitos.

Como seres humanos puderam fazer aquilo com outros seres humanos, é a pergunta que se impõe. Quando uma dor sem limites como essa toma conta de nós, não temos o que dizer.

Não se trata aqui, bem se vê, do silêncio produtivo, que nos leva para longe do ruído estéril e se faz ouvir através do fértil trabalho criativo.

Adorno, penso eu, referiu-se ao desencanto que nos assola e derruba. O mesmo que, hoje, nos invade diante da violência do mundo, nas ruas das nossas cidades.

A perda de sentido das palavras decorre também do trabalho de desvirtuar significados para manipular comportamentos. Essa perda é fonte de desumanização e está presente na sociedade agora como esteve no passado. Fala-se uma coisa, se diz outra e se faz o oposto disso tudo.

As palavras caem na sombra do sem-sentido.

Contudo, precisamos das palavras como o náufrago precisa da tábua.

A limpeza dos destroços resultantes das tragédias pessoais e coletivas passa pela palavra. Através da linguagem vamos tentar salvar o que pode ser salvo e elaborar uma nova maneira de viver.

A palavra é o único recurso disponível quando tudo em volta desmorona.

Necessitamos da palavra para procurar e construir sentidos onde eles se perderam.

Precisamos da palavra porque somos palavra e não podemos viver sem, seja ela poema ou outra linguagem.

O silêncio absoluto é o silêncio da morte.

Portanto, uma possível resposta à pergunta de Adorno será: não só é possível como imprescindível escrever poesia, apesar de tudo.

A aurora da palavra iluminará outra vez nossas vidas. Reconstruiremos sobre as cinzas.

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Foto: Selo comemorativo do centenário de Theodor Adorno, Alemanha, 2003. Fonte: Wikipédia.

Sobre O aborto e o Papa, publicado em 09/3/2.010

Cláudio Accurso
Economista e Professor Universitário, Porto Alegre.

Há muitos ângulos para examinar-se a questão do aborto. Um é tratá-lo como questão individual, em que os múltiplos condicionantes para sua prática recaem apenas em valores pessoais. Outro é vê-lo como questão social, em que a inserção e as perspectivas dela decorrentes vão determinar os condicionantes definitivos para uma avaliação a respeito.

Para pelo menos um terço da população brasileira, cujo futuro de miséria e desamparo está traçado desde o primeiro dia do nascimento, a sua recusa a tal vilipêndio moral é um ato entendível e não pode ser reducionistamente tratado como imoral, pois se trata apenas de um confronto entre princípios abstratos de comportamento sugerido e de realidades cruas de sugestões objetivamente inviáveis. Visto por aí, o aborto é um gesto de acusação contra a falta de garantias sociais para a realização de uma vida digna.

Sou contra o aborto, mas observo não fazer parte desse estrato social sem futuro, o que mostra que não há individualidade sem contexto e que este é muito desigual para cada um, salientando também como é fácil julgar os outros quando se abstrai esse contexto. Na verdade, aborto é questão de foro individual, por isso não proibitível por uma sociedade sem credenciais sociais para tanto, quando aceita secularmente miséria inapelável e ultrajante.

As crianças que dormem nas ruas, os homens sem trabalho e o desamparo de milhões de pessoas testemunham o infortúnio que não foi evitado. Um país que vive do futuro não tem que reclamar de seu presente... é só esperar...

segunda-feira, 29 de março de 2010

A arte de ser juiz

Jorge Adelar Finatto



Ser um bom juiz resulta de um tipo de sabedoria que não se aprende somente em livros técnicos. Nem decorre de uma progressiva conquista de graus acadêmicos. É algo maior e mais profundo.

O juiz que fará bem a seus semelhantes e trabalhará pela dignidade da vida, ao contrário de complicar e piorar as coisas, será aquele capaz de ouvir e respeitar as pessoas nas suas intransferíveis circunstâncias.

A justiça começa nas relações mais simples do dia a dia, em casa, na rua, no ambiente de trabalho, em comportamentos éticos que são, na aparência, bastante prosaicos, mas que acabam construindo todo o resto.

Amar as pessoas e a justiça é a condição primeira para ser juiz.

Não se ingressa na magistratura pensando no status da profissão, no valor do subsídio, nas garantias que cercam o cargo - que visam a proteger a sociedade e não a pessoa do juiz. Esses atrativos são insuficientes para manter alguém que não é do ramo na função. Dedicação, capacidade de renúncia, entusiasmo, reflexão e estudo permanentes são algumas das exigências.

A magistratura é a típica atividade que se destina a mulheres e homens com vocação, que buscam no ideal de bem servir a sua realização.

Pelo menos três pilares são fundamentais na formação do juiz: ética, humanismo e técnica.

Quando é que alguém se torna juiz? Muitos acham que isso ocorre quando o candidato é aprovado no extenuante concurso público, é nomeado e toma posse no cargo. Mas não é elementar assim.

A pessoa torna-se magistrado muito tempo antes do concurso. O que realmente define quem se tornará juiz é a essência e a atitude de cada um diante da existência. A luta por uma vida mais justa e solidária está na alma do julgador. Existe uma imposição de ordem interna que o leva a decidir-se pela profissão, ainda que isto não esteja muito claro na adolescência e mesmo no início da vida adulta.

A gente se prepara para ser juiz uma vida inteira, pois todo dia é dia de viver e aprender.

Coisas como agressividade, excesso de vaidade, cinismo, indiferença e fanfarronice não combinam com a toga.

Um temperamento humilde, diferente de subserviente ou arrogante, disposto a respeitar, mais do que tolerar, as diferentes visões de mundo, é sempre muito importante. Ninguém é dono do conhecimento e da verdade.

Não existe modelo pronto de juiz. O magistrado terá de construir o seu. Por outro lado, não faltam exemplos de pessoas que dignificam o ofício.

Pensar de modo mais criativo e humanista o ingresso na magistratura, e a própria construção do Poder Judiciário brasileiro, é o desafio que temos em tempos tão difíceis.

A dura realidade exige magistrados mais participantes e comprometidos com o bem-estar da sociedade. Cada vez mais o Judiciário é chamado a decidir sobre situações que afetam a vida de todos. As dores e os dramas das pessoas chegam aos juízes a toda hora em todos os dias do ano.

A busca de uma existência mais feliz e harmônica é a razão de ser da atividade jurisdicional.

O que se pede ao juiz não é que seja um super-herói, mas que decida como um ser humano sensível, e saiba olhar com os olhos do coração, com a mesma empatia com que todos – juízes e não juízes - esperamos ser tratados nas horas difíceis.

Empatia, a sua dor no meu coração.

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Foto: J. Finatto
 
jfinatto@terra.com.br

domingo, 28 de março de 2010

Uma certa inocência*

José Saramago



Durante muitos anos Jorge Amado quis e soube ser a voz, o sentido e a alegria do Brasil. Poucas vezes um escritor terá conseguido tornar-se, tanto como ele, o espelho e o retrato de um povo inteiro. Uma parte importante do mundo leitor estrangeiro começou a conhecer o Brasil quando começou a ler Jorge Amado. E para muita gente foi uma surpresa descobrir nos livros de Jorge Amado, com a mais transparente das evidências, a complexa heterogeneidade, não só racial, mas cultural da sociedade brasileira. A generalizada e estereotipada visão de que o Brasil seria reduzível à soma mecânica das populações brancas, negras, mulatas e índias, perspectiva essa que, em todo o caso, já vinha sendo progressivamente corrigida, ainda de que de maneira desigual, pelas dinâmicas do desenvolvimento nos múltiplos sectores e actividades sociais do país, recebeu, com a obra de Jorge Amado, o mais solene e ao mesmo tempo aprazível desmentido. Não ignorávamos a emigração portuguesa histórica nem, em diferente escala e em épocas diferentes, a alemã e a italiana, mas foi Jorge Amado quem veio pôr-nos diante dos olhos o pouco que sabíamos sobre a matéria. O leque étnico que refrescava a terra brasileira era muito mais rico e diversificado do que as percepções europeias, sempre contaminadas pelos hábitos selectivos do colonialismo, pretendiam dar a entender: afinal, havia também que contar com a multidão de turcos, sírios, libaneses e tutti quanti que, a partir do século XIX e durante o século XX, praticamente até aos tempos actuais, tinham deixado os seus países de origem para entregar-se, em corpo e alma, às seduções, mas também aos perigos, do eldorado brasileiro. E também para que Jorge Amado lhes abrisse de par em par as portas dos seus livros.


Tomo como exemplo do que venho dizendo um pequeno e delicioso livro cujo título - “A descoberta da América pelos turcos” - é capaz de mobilizar de imediato a atenção do mais apático dos leitores. Aí se vai contar, em princípio, a história de dois turcos, que não eram turcos, diz Jorge Amado, mas árabes, Raduan Murad e Jamil Bichara, que decidiram emigrar para a América à conquista de dinheiro e mulheres. Não tardou muito, porém, que a história, que parecia prometer unidade, se subdividisse em outras histórias em que entram dezenas de personagens, homens violentos, putanheiros e beberrões, mulheres tão sedentas de sexo como de felicidade doméstica, tudo isto no quadro distrital de Itabuna (Bahia), onde Jorge Amado (coincidência?) precisamente veio a nascer. Esta picaresca terra brasileira não é menos violenta que a ibérica. Estamos em terra de jagunços, de roças de cacau que eram minas de ouro, de brigas resolvidas a golpes de facão, de coronéis que exercem sem lei um poder que ninguém é capaz de compreender como foi que lhes chegou, de prostíbulos onde as prostitutas são disputadas como as mais puras das esposas. Esta gente não pensa mais que em fornicar, acumular dinheiro, amantes e bebedeiras. São carne para o Juízo Final, para a condenação eterna. E contudo…E, contudo, ao longo desta história turbulenta e de mau conselho, respira-se (perante o desconcerto do leitor) uma espécie de inocência, tão natural como o vento que sopra ou a água que corre, tão espontânea como a erva que nasceu depois da chuvada. Prodígio da arte de narrar, “A descoberta da América pelos turcos”, não obstante a sua brevidade quase esquemática e a sua aparente singeleza, merece ocupar um lugar ao lado dos grandes murais romanescos, como “Jubiabá”, “A tenda dos milagres” ou “Terras do sem fim”. Diz-se que pelo dedo se conhece o gigante. Aí está, pois, o dedo do gigante, o dedo de Jorge Amado.

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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago.
  O Caderno de Saramago. Texto de 14/10/2008
  http://caderno.josesaramago.org/.
  Fundação José Saramago
  www.josesaramago.org
  A grafia é a de Portugal.
  Foto: Jorge Amado (esquerda) e José Saramago.  Site da Fundação  José   Saramago.

sábado, 27 de março de 2010

O Segredo dos Seus Olhos

Jorge Adelar Finatto



Ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, O Segredo dos Seus Olhos nos mostra que sem justiça e sem democracia não há esperança, resta só a barbárie.

Sou admirador do cinema argentino há bastante tempo. Filmes como O Filho da Noiva e Clube da Lua, entre outros, dignificam qualquer cinemateca. Diria que podem figurar, sem favor, no que de melhor se fez na arte cinematográfica nos últimos trinta anos. Na minha visão, são muito melhores do que filmes como Bastardos Inglórios, êxito de bilheteria, que dá grande destaque ao espetáculo da violência e deixa no espectador um profundo desalento em relação à condição humana.

O que eu vejo de diferente no cinema argentino? Acho que é a capacidade de nos fazer sentir e pensar. São filmes que nutrem esperança no ser humano, sem esconder os dramas da realidade. Além de bem construídos tecnicamente, nos contam uma boa história.

Nessa semana assisti a O Segredo dos Seus Olhos (El secreto de sus ojos), dirigido por Juan José Campanella e interpretado pelos excelentes atores Ricardo Darín (foto), protagonista, Soledad Villamil e Guillermo Francella. Trata-se de mais um belo trabalho produzido por nossos vizinhos do Rio da Prata.

O filme leva-nos a refletir sobre muitas coisas, mal sentimos o tempo passar durante as duas horas e nove minutos. Me chamou a atenção a clareza com que mostra as graves consequências que resultam quando o estado se omite ou negligencia na tarefa de realizar justiça.

Fica muito claro em O Segredo dos Seus Olhos que sem justiça e sem democracia não há esperança, resta só a barbárie. A história nos remete ao período da ditadura militar na Argentina e ao acobertamento de um criminoso pelo regime. Mais um grande filme argentino, que por seus notáveis méritos ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro neste mês.

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Foto: Ricardo Darín. Divulgação do filme.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Calle de los suspiros

Jorge Adelar Finatto


De não ver os olhos estão vazios.

De não escutar os ouvidos estão surdos.

Um dia encontrei no mapa aquela cidade ao sul.
Nela havia uma rua chamada Calle de los Suspiros.
Um lugar que nasceu num tempo muito velho.

A rua dos suspiros está povoada de passos perdidos.

Os fantasmas ocupam as casas coloniais.

Quem mora na rua dos suspiros?
A moça na janela olha as buganvílias.
O homem que não sai de casa vê seres incorpóreos nos telhados.

A luz das luminárias é amarelo calmo.

À noite se ouve nas pedras a batida de cascos de cavalos que não existem mais.

A rua dos suspiros é um camafeu pregado na alma do tempo.

Os ventos se reúnem na calle antes de sair a galope pelo mundo.

A dor envelheceu nesta rua.

Neste lugar, todos sofrem pra dentro.

Há um salão de baile desabitado com mesas no escuro.

A orquestra foi embora carregando a música e os casais que dançavam.

A rua dos suspiros habita um retrato no oblívio.

Quem chora a essa hora na calle deserta?


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Foto: J. Finatto
Imagem de Colonia del Sacramento, Uruguai.

terça-feira, 23 de março de 2010

A volta do barco de papel

Jorge Adelar Finatto


 
Saí a navegar no meu barco de papel pra esquecer o mundo.

Eu, quando quero dar férias à realidade, entro no barco colorido e parto em viagem pelo Guaíba.

Dessa vez reforcei a embarcação. Tomei uma folha de papel mais resistente à intempérie, fixei melhor as dobras. Levantei mais a vela. Na parte interna, coloquei utensílios mais leves.

Um forte vento sul, porém, apanhou o barco no meio do rio. Agitou as águas de tal modo que as ondas começaram a jogar o barco pra cima. O pior era a queda livre na volta. O corpo ficou todo dolorido.

Pra piorar a situação, desabou uma tempestade.

Frágil, o barquinho foi se desmanchando. A vela foi a primeira peça a ruir.

Filipo, o papagaio que me acompanha nas navegações, achou que daquela não escaparíamos.

- Vamos morrer, capitán!

- Tenha fé, nobre Filipo -, disse-lhe eu. Não desanimemos numa hora dessas, amigo. As nuvens más haverão de dissipar-se.

O peixinho Moisés, nosso companheiro de aventuras, nadava aflito ao lado do pequeno veleiro.

Quando o barquinho, enfim, se transformou numa pasta branca de papel, eu respirei fundo antes de afundar no Guaíba.

Mas não era dia de morrer.

A ventania, na sua fúria, nos empurrara pra perto da margem.

Ao cair no rio, a água bateu na altura da cintura. Filipo, que estava encolhido e agarrado no meu esquerdo ombro, gritou animado:

- Conseguimos, capitán!

Moisés respirou aliviado, deu um salto de felicidade e voltou para o interior do rio.

A navegação em barco de papel é uma arte.

Como toda arte, tem sua ciência e seus segredos.

O que é preciso pra navegar desse jeito? Bem pouca coisa.

Uma folha branca, lápis de cor, imaginação e um coração quase feliz

 
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Imagem e foto: J. Finatto