segunda-feira, 12 de abril de 2010

Sobre Fernando Pessoa*

José Saramago


Era um homem que sabia idiomas e fazia versos. Ganhou o pão e o vinho pondo palavras no lugar de palavras, fez versos como os versos se fazem, como se fosse a primeira vez. Começou por se chamar Fernando, pessoa como toda a gente. Um dia lembrou-se de anunciar o aparecimento iminente de um super-Camões, um camões muito maior que o antigo, mas, sendo uma pessoa conhecidamente discreta, que soía andar pelos Douradores de gabardina clara, gravata de lacinho e chapéu sem plumas, não disse que o super-Camões era ele próprio. Afinal, um super-Camões não vai além de ser um camões maior, e ele estava de reserva para ser Fernando Pessoas, fenómeno nunca visto antes em Portugal. Naturalmente, a sua vida era feita de dias, e dos dias sabemos nós que são iguais mas não se repetem, por isso não surpreende que em um desses, ao passar Fernando diante de um espelho, nele tivesse percebido, de relance, outra pessoa. Pensou que havia sido mais uma ilusão de óptica, das que sempre estão a acontecer sem que lhes prestemos atenção, ou que o último copo de aguardente lhe assentara mal no fígado e na cabeça, mas, à cautela, deu um passo atrás para confirmar se, como é voz corrente, os espelhos não se enganam quando mostram. Pelo menos este tinha-se enganado: havia um homem a olhar de dentro do espelho, e esse homem não era Fernando Pessoa. Era até um pouco mais baixo, tinha a cara a puxar para o moreno, toda ela rapada. Com um movimento inconsciente, Fernando levou a mão ao lábio superior, depois respirou fundo com infantil alívio, o bigode estava lá. Muita coisa se pode esperar de figuras que apareçam nos espelhos, menos que falem. E porque estes, Fernando e a imagem que não era a sua, não iriam ficar ali eternamente a olhar-se, Fernando Pessoa disse: “Chamo-me Ricardo Reis”. O outro sorriu, assentiu com a cabeça e desapareceu. Durante um momento, o espelho ficou vazio, nu, mas logo a seguir outra imagem surgiu, a de um homem magro, pálido, com aspecto de quem não vai ter muita vida para viver. A Fernando pareceu-lhe que este deveria ter sido o primeiro, porém não fez qualquer comentário, só disse: “Chamo-me Alberto Caeiro”. O outro não sorriu, acenou apenas, frouxamente, concordando, e foi-se embora. Fernando Pessoa deixou-se ficar à espera, sempre tinha ouvido dizer que não há duas sem três. A terceira figura tardou uns segundos, era um homem daqueles que exibem saúde para dar e vender, com o ar inconfundível de engenheiro diplomado em Inglaterra. Fernando disse: “Chamo-me Álvaro de Campos”, mas desta vez não esperou que a imagem desaparecesse do espelho, afastou-se ele, provavelmente tinha-se cansado de ter sido tantos em tão pouco tempo. Nessa noite, madrugada alta, Fernando Pessoa acordou a pensar se o tal Álvaro de Campos teria ficado no espelho. Levantou-se, e o que estava lá era a sua própria cara. Disse então: “Chamo-me Bernardo Soares”, e voltou para a cama. Foi depois destes nomes e alguns mais que Fernando achou que era hora de ser também ele ridículo e escreveu as cartas de amor mais ridículas do mundo. Quando já ia muito adiantado nos trabalhos de tradução e poesia, morreu. Os amigos diziam-lhe que tinha um grande futuro na sua frente, mas ele não deve ter acreditado, tanto assim que decidiu morrer injustamente na flor da idade, aos 47 anos, imagine-se. Um momento antes de acabar pediu que lhe dessem os óculos: “Dá-me os óculos” foram as suas últimas e formais palavras. Até hoje nunca ninguém se interessou por saber para que os queria ele, assim se vêm ignorando ou desprezando as últimas vontades dos moribundos, mas parece bastante plausível que a sua intenção fosse olhar-se num espelho para saber quem finalmente lá estava. Não lhe deu tempo a parca. Aliás, nem espelho havia no quarto. Este Fernando Pessoa nunca chegou a ter verdadeiramente a certeza de quem era, mas por causa dessa dúvida é que nós vamos conseguindo saber um pouco mais quem somos.

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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago:
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago:
http://caderno.josesaramago.org/.
Publicado originalmente em 05/10/2008.
A grafia é a de Portugal.
Foto de Fernando Pessoa reproduzida do site da Casa Fernando Pessoa, Lisboa, Portugal:
http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/index.php?id=4287

domingo, 11 de abril de 2010

A memória do coração

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto

Em 1985, eu reunia material para o livro que estava escrevendo sobre a vida e a obra do poeta, cronista e renovador da arte cênica brasileira Alvaro Moreyra. Durante uma entrevista que fiz com Guilhermino Cesar, no seu apartamento, na Avenida Independência, em Porto Alegre, sabendo do meu interesse em entrevistar Carlos Drummond de Andrade, ele me passou o telefone do poeta. 

O mineiro Guilhermino foi um notável escritor, estudioso e professor, amigo de Drummond. Aquerenciou-se no Rio Grande do Sul, onde viveu, lecionou e escreveu até o fim da vida.

No Rio de Janeiro, mantive contato com Sandro Moreyra, jornalista, cronista esportivo, filho de Alvaro e Eugenia Moreyra, e também com outros familiares, que me auxiliaram generosamente no trabalho. Em Porto Alegre contei com a colaboração inestimável de Jorge Moreira, sobrinho de Alvaro. 

Durante a permanência no Rio, tomei coragem e decidi telefonar para o bardo de Itabira, na tentativa de colher alguma declaração. Sabia da dificuldade de entrevistar Drummond, que na época contava mais de 80 anos.

Fiz a ligação para o número que Guilhermino me dera, sem levar fé. Imaginava encontrar insuperáveis interlocutores, senhas inacessíveis. Afinal, tratava-se do grande poeta brasileiro do século XX. Para meu espanto, porém, logo na primeira tentativa o próprio Drummond atendeu o telefone. O diálogo que se seguiu foi cordial e econômico. O poeta falou que havia escrito sobre Alvaro em livro. Não havia o que acrescentar ao que escrevera.

O raro habitante da Rua Conselheiro Lafayette, em Copacabana, atendeu-me com gentileza e atenção. 

Em dezembro daquele ano, após receber o livro, Drummond escreveu-me uma carta que guardo como relíquia. Ao falar de Alvaro Moreyra, disse tratar-se de um escritor e de um amigo que lhe inspirava uma grande saudade, e que o trazia na memória do coração.

Nunca será demais lembrar que Carlos Drummond reconheceu no porto-alegrense Alvaro a sua mais forte influência literária, nos anos de formação, entre os autores brasileiros

Da experiência guardei a lição de simplicidade e generosidade intelectual.


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Foto: J. Finatto. Escultura em bronze de Drummond, na Avenida Atlântica, Copacabana, Rio de Janeiro.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

A pele cor-de-rosa da chuva

Jorge Adelar Finatto



O ser humano tem direito constitucional de andar nas nuvens.

A sentimental algaravia.
 
Ah, um dia livre pra sair por aí. O que ela mais gosta.

As horas difíceis, cotidianas, que a vida tem. Poucos momentos de gozo. Vida bonsai. Um ermo. O medo, medos.
 
Um dia se deu conta que. Olhou no espelho, estranhou. Quem é essa? Deus!

Vivia no austero e no precavido.

Desde que ele, enfim. Adeus, adeuses. Casa abandonada. Depois só quireras, uns fanicos de dar dó. Ninguém mais.

Dia feriado, sábado, domingo, aniversário: nenhum fio de luz embaixo da porta, escuridão completa. Ninguém vem, ninguéns.

Coração solitário no meio dos corvos vorazes.

Noites em claro, sede. Janela sobre a cidade vazia. Invoca rezas antigas, banho de madrugada, dorme diante da tv.

A solidão pintada na cara. Ocos dias de se viver

Ah, bem-vindo, vento do rio. Na chuva sente-se protegida, agasalhada. Sai a divagar caminhos molhados. Os longes habitam a sua alma.

Peixes coloridos soltos no ar.

Sopram presságios no voo de algodão das gaivotas.

Moças saltam das janelas, invadem as ruas como ela. Anêmonas. Saias flutuam. Sombrinhas navegam no vento.

A esperança. Ninguém pode viver sem, nem ela nem. Se a solitude fosse um abraço.

Instantes migalhas de vida são. Breves eternidades. Venham os dias.
Felicidade é relâmpago. Farândola no coração.

A pele cor-de-rosa da chuva.

Outono, outonos.
  
 

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Acordo Ortográfico: intenções e decepções

Niamara Pessoa Ribeiro
Graduada em Letras e Especialista em Teoria Literária. Porto Alegre.


O trema tornava o "u" sonoro, audível (nos grupos gue/gui e que/qui). Como ensinar a uma criança que, nesses grupos, o "u" permanece sonoro mesmo sem a existência de um sinal para marcar a pronúncia?

Como todo assunto polêmico, o Acordo Ortográfico, mais conhecido como Reforma Ortográfica (ou, segundo o povo, "Desacordo Ortográfico"), arregimentou defensores e oposicionistas. Fácil seria adotar-se posição maniqueísta, tipo "(Brasil) ame-o ou deixe-o", de tão triste memória nos anos de chumbo sequentes ao golpe militar de 64. Com o Acordo Ortográfico, embora já promulgado, as coisas não foram colocadas bem assim ("ame-o ou deixe-o"), pois aparentemente existe a via dialógica abrindo espaço a reavaliações. Isso, porém, é mais teoria do que prática. O Acordo foi sancionado; o prazo para adoção definitiva (1º de janeiro de 2013), estabelecido.

Considerando o elevado nível dos leitores d'O Fazedor de Auroras, dispensável detalhar o texto em seus itens, até mesmo porque edições proliferam com amplas explicações quanto às mudanças. Portanto, de maneira breve, ressalto o infradeclinado.

Um aspecto positivo: a queda do acento na primeira vogal dos hiatos "ee" / "oo" (abotoo, leem, enjoo, creem, voo, deem...). O acento era completamente desnecessário, pois impossível ler-se a palavra, mesmo sem acento de marca paroxitônica, como se acentuada ela fosse na última sílaba (pois a regra das oxítonas por si só imporia o acento pertinente).

Um aspecto neutro: a tentativa de simplificação no caso do hífen. Os "acordistas" trocaram "meia dúzia por seis". O custo-benefício valeu? Quem possuía ilustração, teve que se atualizar. Quem encontrava dificuldades, assim permanece. Quem nada sabia, continuará à margem de impactos culturais. Simplificação? Não houve. A regra continua indigesta, não oferecendo a reforma atrativos, principalmente para discentes.

Um aspecto "maligno": a supressão do trema. A mudança foi ortográfica, "visual", mas não fonética, "auditiva", porque a pronúncia quedou inalterada. O trema tornava o "u" sonoro, audível (nos grupos gue/gui e que/qui). Como ensinar a uma criança que, nesses grupos, o "u" permanece sonoro mesmo sem a existência de um sinal para marcar a pronúncia? A criança vai visualizar "consequência" e "linguiça", e informaremos que o "u" é pronunciado, mesmo sem o trema. Pelas tantas, o aluno vai se deparar com "quero", "querida", "enguiça" ... Sem o sinal diacrítico nos outros grupos citados, como querer que o educando em processo de letramento entenda que não se pronuncia "qüero", "qüerida", "engüiça" ?

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Olhos Negros

Jorge Adelar Finatto


Um senhor disco, um dos mais belos que ouvi na vida. Olhos Negros, de 1990, nos traz Johnny Alf em sua plena criatividade e talento. A voz clara, o canto transcendente, a emoção solta na justa medida, o modo único de tecer harmonias, construir encantos e encontros, tudo está presente nesse trabalho.

O pianista, compositor e cantor Johnny Alf, o nosso Alfredo José da Silva, foi um homem simples, contido, generoso. Um dos grandes artistas que o Brasil já produziu, sua obra não recebeu o devido reconhecimento. Nos deixou, discretamente como viveu, em março passado. A beleza harmônica, as letras cheias de poesia, a refinada composição de suas canções nos remetem a raros momentos de fruição estética.

Em Olhos Negros, ele canta com Chico Buarque, Caetano Veloso, Zizi Possi, Emílio Santiago, Gal Costa, Leny Andrade, Gilberto Gil e Sandra de Sá. O disco tem, ainda, a participação de Roberto Menescal e Márcio Montarroyos. Seu sofisticado piano toca ao lado de cuidadosos arranjos com pequena orquestra.

No dia em que for morar numa ilha deserta, vou levar comigo, entre outros objetos essenciais, esses lindos Olhos Negros do sublime Johnny Alf.

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Imagem: capa do cd Olhos Negros, 1990.

terça-feira, 6 de abril de 2010

A arte da navegação em barco de papel

Jorge Adelar Finatto



A arte de navegar em barco de papel é tão antiga quanto a humanidade.

Um menino de oito anos pergunta, através de e-mail, como pode alguém com o meu tamanho se aventurar em barco de papel pelo Rio Guaíba.

A perplexidade surge a propósito do que escrevi aqui nos posts dos dias 23 de março e 02 de janeiro deste ano. Miguel Antônio ficou deveras impressionado.

- Como isso é possível? Eu também faço barcos de papel, mas, se quiser entrar neles, ficam destruídos na hora – pondera meu novo amigo.

Estou feliz por ver que esse assunto desperta sua atenção. De fato, poucas pessoas se dedicam a esse belo ofício naval.

Os meninos e as meninas costumam navegar até certa idade. Depois crescem, tornam-se adultos e esquecem.

Com a passagem do tempo, as pessoas vão desistindo das aventuras e dos sonhos.

Sou um velho marinheiro de barco de papel.

Felizmente, não esqueci como se faz isso. Por essa razão, quase não tenho com quem conversar.

O papagaio Filipo é meu companheiro de navegação. Ele vem do bosque onde vive, vestindo o boné e a jaqueta de marujo. Moisés, o peixinho que nada ao lado da nossa minúscula embarcação, também faz parte da tripulação.


Faço a estrutura do barquinho com um papel muito branco, depois pinto o casco, o timão, a âncora e a vela. Tomo cuidado para fixar bem as dobras, para não deixar a água entrar. Coloco apenas as coisas essenciais na cabine, porque o espaço é muito reduzido, tudo num barco de papel é muito pequeno.

Levo-o para a beira do rio. Empurro-o na água e dou um pulo para dentro. Vamos nós!

Não consigo explicar, só com palavras, como isso acontece. O fato é que é assim.

O que eu sei é que só me sinto feliz, de verdade, quando entro no meu barquinho Solitário - esse é seu nome - e saio pelo Guaíba afora, deixando pra trás a cidade, as tristezas e os medos.

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Ilustrações: Maria Izabel Schissi

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Caio Fernando Abreu e as pequenas epifanias

Jorge Adelar Finatto




Estive três vezes com o escritor Caio Fernando Abreu.

Conheci-o na década de 1970 e o primeiro encontro ocorreu na redação da Folha da Manhã, jornal de vanguarda feito em Porto Alegre por excelente equipe de jornalistas, escritores, artistas e intelectuais de várias áreas.

A Folha da Manhã era a filha rebelde da Folha da Tarde, e neta do vetusto Correio do Povo, os três da Companhia Jornalística Caldas Júnior, que não existe mais (mudou mais de uma vez de proprietários, de orientação e de perfil jornalístico). A sede dos jornais, no velho prédio que ainda permanece, ficava a poucas quadras do Rio Guaíba.

Numa outra vez visitei-o, junto com jovens escritores e poetas, no seu apartamento no centro da cidade, ainda nos anos 70.

O assunto nesses encontros girava, invariavelmente, em torno da literatura e da vida, no Brasil opressivo da ditadura militar. Caio ouvia as nossas conversas com interesse e, sem paternalismo, dizia suas coisas. Era delicado, gentil, às vezes irônico, às vezes triste, e até duro, se fosse o caso.

Em alguns invernos, vi-o de passagem na Esquina Maldita, território porto-alegrense de resistência. Ali havia bares e restaurantes onde se reuniam estudantes, artistas, livres-pensadores em geral. A famosa (na época) Esquina ficava no cruzamento da rua Sarmento Leite com a avenida Osvaldo Aranha, com suas altas e elegantes palmeiras.