terça-feira, 27 de abril de 2010

O Cavaleiro da Bandana Escarlate

Jorge Adelar Finatto


Vulto na praça. A luz amarela seria poética, não fosse o perigo dos assaltos. Um observador oculto espreita no meio das buganvílias. Quem vem lá? Difícil saber na escuridão. A noite de domingo podia ser romântica. Mas há indivíduos dormindo nos bancos da praça. Dois bêbados mijam sob a pérgula.

A cidade não tem piedade dos seres delicados. Mas há que vencer o mal com o bem. É a hora do menestrel, da capa, da espada e do alaúde. Eis que surge das trevas o Cavaleiro da Bandana Escarlate, montado no seu cavalo branco. Veio galopando desde muito longe. Atravessa a praça cuidando pra não amassar as flores. Um cara passa correndo atrás de outro rua afora, gritando coisas impublicáveis.

O cavaleiro veste a capa de seda preta. A máscara negra não permite descubram-lhe o segredo. Traz o antiquíssimo alaúde a tiracolo. O instrumento pertenceu a um trisavô que veio fugido da Itália e aqui se estabeleceu no ramo dos embutidos.

O cavaleiro passa pro outro lado da rua e estaciona o alvo corcel debaixo do balcão da Meiga Donzela. Dedilha as primeiras notas nas cordas do formoso alaúde. A melodia acorda a musa, que, entre entontecida e furiosa, vai até a janela saber do que se trata. Não acredita no que vê.

O que quereis, ó cavaleiro do alaúde em riste? Acaso não percebeis que são altas horas? Deixai-me dormir, ó  misterioso mascarado. Amanhã é dia de pegar no batente outra vez, voltar pra dureza da vida. Retornai ao vosso castelo de vento, ó romântico senhor, poupai-me. Do contrário, obrigar-me-ei a chamar os homens da lei.

O Cavaleiro da Bandana Escarlate silencia pra não comprometer mais ainda o idílio. Num gesto de rara nobreza, atira uma rosa branca no balcão e parte no trote. Ergue o alaúde na mão esquerda. Na praça, volta-se, empina o cavalo e grita eu retornarei na primavera, ó Estressada Musa.

Alguém abre uma janela próxima e o manda colher caju. Sem perder a altivez, o cavaleiro desaparece na noite. Um bêbado atira uma pedra e quebra a luminária da praça.

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Foto: J.Finatto

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Cálido

Jorge Adelar Finatto



Preciso escrever
o poema
que vai salvar
esse dia

o poema cálido
para atravessar
o tempo difícil
que ainda tenho
pela frente

o poema que vai expulsar
a vontade de morrer
que chega aos poucos
como um gato


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Do livro Memorial da vida breve, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.
Foto: J. Finatto

domingo, 25 de abril de 2010

Gonçalo M. Tavares*

José Saramago

A nova geração de romancistas portugueses, refiro-me aos que estão agora entre os 30 e os 40 anos de idade, tem em Gonçalo M. Tavares um dos seus expoentes mais qualificados e originais. Autor de uma obra surpreendentemente extensa, fruto, em grande parte, de um longo e minucioso trabalho fora das vistas do mundo, o autor de O Sr. Valéry, um pequeno livro que esteve durante muitos meses na minha mesa de cabeceira, irrompeu na cena literária portuguesa armado de uma imaginação totalmente incomum e rompendo todos os laços com os dados do imaginário corrente, além de ser dono de uma linguagem muito própria, em que a ousadia vai de braço dado com a vernaculidade, de tal maneira que não será exagero dizer, sem qualquer desprimor para os excelentes romancistas jovens de cujo talento desfrutamos actualmente, que na produção novelesca nacional há um antes e um depois de Gonçalo M. Tavares. Creio que é o melhor elogio que posso fazer-lhe. Vaticinei-lhe o prémio Nobel para daqui a trinta anos, ou mesmo antes, e penso que vou acertar. Só lamento não poder dar-lhe um abraço de felicitações quando isso suceder.

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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Publicado originalmente em 1º/3/2009.
A grafia é a de Portugal.
http://goncalomtavares.blogspot.com/

sábado, 24 de abril de 2010

Enrolado na manta com um livro na mão

Jorge Adelar Finatto


Há uma espécie de exílio no íntimo das coisas. Um voltar-se para os recônditos aposentos da alma. O vento iniciou seus giros nos caminhos e telhados. Agora o outono chegou. Os últimos dias aqui em Passo dos Ausentes foram de chuva e neblina. Habitamos os Campos de Cima do Esquecimento. A memória é nosso continente. Agora é o tempo do recolhimento. Folhas caindo. A estação das viagens interiores. Fico olhando o mundo lá fora, os plátanos, os pinheiros, as nuvens entre as montanhas. As ruas quase desertas.  A natureza passa por uma busca de harmonia nas entranhas. Há uma força interna em curso. Coisas importantes estão fora de lugar, dentro de nós e no ambiente. As fontes ressequidas. Na entrada da estação de trem abandonada, a alta luminária com luz amarela anuncia que tudo nessa vida é passagem. Homens e mulheres chegam e partem do planeta todos os dias. A viagem imemorial e solitária.  Enquanto as coisas assim se passam, eu me afundo no sofá enrolado na manta com um livro na mão, o Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas, o escritor espanhol que nos faz gostar de caminhar pela alameda ensolarada do texto. A leitura é seiva em movimento.

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Foto: J. Finatto

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Pessoa no Dia Mundial do Livro*

Comemora-se hoje, dia 23, o Dia Mundial do Livro.

Entre as diversas acções que vão decorrer por todo o país, algumas incluem Fernando Pessoa:

•As cidades de Coimbra, Viseu e Porto serão invadidas por sósias de escritores clássicos, como Luís de Camões, Fernando Pessoa e Eça de Queiroz, numa acção de guerrilha. Os sósias vão presentear todos os transeuntes com sessões de leitura das suas obras e distribuir vales com 10% desconto na compra de qualquer livro nas Livrarias Bertrand.
•Em Loulé, na Biblioteca Municipal Sophia de Mello Breyner Andresen, será apresentado o espectáculo “Pessoas”, apresentado pela "A Gaveta – Associação Cultural e Pesquisa Teatral". Um espectáculo sobre os heterónimos de Pessoa.

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*Notícia transcrita do site Um Fernando Pessoa, de Portugal, editado por Nuno Hipólito.

Visite:
http://blog.umfernandopessoa.com/

A carne viva do ser no mundo

Jorge Adelar Finatto


O tempo passa, pessoas somem da paisagem, casas e coisas desaparecem. O que resta de tudo? Essa é a bruma silenciosa que nos cerca. A questão se impõe mesmo ante a visão dos gerânios que iluminam a janela. Houve um tempo em que tudo o que ele mais queria era ficar morando pra sempre com os avós na ruazinha qualquer da serra, o arroio passava no fundo do quintal. Numa ocasião, quis tornar-se carteiro, que é ofício nobre de quem leva palavras para as pessoas. Noutra vez, pensou ser marinheiro de longo curso. Mais tarde decidiu que devia jogar futebol. Às vezes fica imaginando o que aconteceria se tivesse realizado algum desses quereres. Seria outra pessoa. Existe um tanto de mistério e imponderável nos caminhos. Dizem que  os rigores da sobrevivência nos definem. Pode ser. Mas não é só. O inconsciente e as emoções apresentam suas demandas e objetos de desejo. A carne viva do ser no mundo. O vivente pode querer transformar-se em pedra. Mas não conseguirá desvestir-se da pele e do sensível tecido de que são feitos os quereres.  Podemos ser, e já o somos só de imaginar, um pouco dos vários sonhos que nos habitam. Agora atravesso a ponte de pedra no meio da neblina. O fugidio instante. Felicidade casual. Assim seja.

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Foto: J. Finatto

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Entre o Guaíba e o Mondego

Jorge Adelar Finatto



A cidade vista a partir do rio não é a mesma que observamos no continente. Ao navegar ao largo, vemos coisas que não percebemos em terra. Os barcos nos ajudam a entender melhor essas ilhas de solidão e exílio que são as cidades onde vivemos.

É como se saíssemos do nosso corpo e nos enxergássemos, por um instante, à distância.

Então essas são as orelhas? Esse é o jeito de sentar à mesa para ler o jornal enquanto espera alguém? Essa é a maneira de fazer de conta? E são esses os olhos que pouco revelam do que vai na alma? Visto de fora, um ser diferente talvez do que somos. Mas estamos ali.

A cidade está povoada de gente que nunca ousou embarcar e partir. Barcos e homens são sonhos que se sonham.

Coimbra tem seu rio, seus barcos, seus pescadores, seus estudantes. É uma cidade antiquíssima e adolescente, ao mesmo tempo. Gosto de me perder em suas vielas, ladeiras e largos medievais, onde vivem seus poetas, escritores e fadistas.

Em torno da Universidade de Coimbra - a mais antiga de Portugal e uma das primeiras da Europa - o velho e o novo convivem, se estranham, se transformam.


O Mondego me dá saudade do Guaíba.

Quando estou nas margens do Guaíba, penso no Mondego.

Recordo o sublime e trágico amor de Inês de Castro (1320 - 1355) e do infante Pedro, que mais tarde viria a ser D. Pedro I, Rei de Portugal.  Ela foi assassinada a punhaladas a mando do Rei D. Afonso IV, pai de Pedro, que não aceitou, por razões políticas, a união do filho com sua amada. As lágrimas derramadas por Inês na ocasião de sua morte teriam formado a Fonte das Lágrimas, na Quinta das Lágrimas, perto do Mondego. Naquele lugar suave e triste, ouvimos o pranto de Inês através dos séculos.

Em vão procuro entender por que a tarefa do amor é, muitas vezes, a impossível tarefa.

Escrevi um texto, em 03 de março passado, sobre o Basófias, o barco que leva passageiros a ver Coimbra de dentro das águas do Mondego. Recebo agora um email de Renato Ladeiro, diretor comercial da empresa que o administra. Ele tem a gentileza de encaminhar uma fotografia , e informa sobre as atividades da embarcação em prol da cidade. O conforto que o barco oferece, as iguarias, os roteiros, o tratamento dispensado aos visitantes fazem a gente sonhar com a próxima viagem no lendário Basófias.

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Fotos: 1) Símbolo do Basófias, imagem da empresa; 2) o  Basófias; 3) o Rio Mondego, J. Finatto.