terça-feira, 22 de junho de 2010

Maratona de leitura de «O ano da morte de Ricardo Reis» na Casa Fernando Pessoa

Amigos,
Porque acreditamos que a voz dos grandes escritores só morre quando a nossa voz os deixa morrer, convidamos-vos a ler em voz alta O Ano da Morte de Ricardo Reis, na próxima sexta-feira, dia 25, na Casa Fernando Pessoa. Faremos a leitura integral desta obra, numa maratona que terá início às 12 horas.

Contamos convosco,
Inês Pedrosa
Directora

Leitores confirmados: Pilar del Rio, Leonor Xavier, José Luís Peixoto, António Mega Ferreira, José Mário Silva, Luísa Costa Gomes, Gonçalo M. Tavares, Fernando Pinto do Amaral, Clara Pinto Correia e Patrícia Reis.

Câmara Municipal de Lisboa
Casa Fernando Pessoa
R. Coelho da Rocha, 16
1250-088 Lisboa
Tel. 21.3913270
Autocarros: 709, 720, 738 Eléctricos: 25, 28 Metro: Rato
http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt
www.mundopessoa.blogs.sapo.pt
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Imagem e texto: Casa Fernando Pessoa, Lisboa.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Segredos do implúvio

Jorge Adelar Finatto



I

Dizem
que escrever
        poemas
é ofício
   de pouco valimento
mas pouco se revelou
sobre a memória da sombra
as paredes úmidas
da velha casa de madeira
o esquálido corredor
onde se morria
um dia todos os dias
              sem notícia
sem amanhã

II

alguém precisava
recordar
os soturnos habitantes
             da rua humilde
na cidade serrana

lembrar o cheiro
de suas vestes
as pedras soltas
na porta das casas
os casacos pretos
nas manhãs de geada

III

nada ou muito pouco
se disse
dos segredos do implúvio

eu me pergunto por que
esse vazio em torno

estaria no silêncio
acre das caves
o destino de partir?

trabalho lento
nas escarpas
     do coração

IV

não fossem
os trilhos
do trem
o barulho santo
do trem
atravessando
a madrugada
criando ao menos
em tese
a possibilidade
da fuga
muitos teriam
desistido de tudo
ali mesmo
como fez Chico
o Esquecido

V

o coração não é
assim mero

cresce em segredo
na dura colheita

não se esvazia
o coração
como se esgotam
as cisternas

VI

alguém precisava contar
a náusea persistente
a longa e tortuosa estrada
que desce na Capital

melhor não inventar
                   histórias
de castelos e linhagens
que nunca existiram

e se houve
federam
como podem feder
as escadarias
dessas obscuras passagens
perdidas no planeta
que recolhem
seres rastejantes

VII

o que se registra
no tombo do tempo
é que há um menino
imóvel
à beira da jovem defunta

naquele lugar
a despedida
com alguma flor
sussurros abafados

ele pergunta
onde ela foi habitar

o que vê
é a morte
e seu absurdo trabalho
convertendo em pó
a luz dos olhos

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Poema do livro O habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.
Fotos: J.Finatto

sábado, 19 de junho de 2010

Adeus, José

Jorge Adelar Finatto


Cada um de nós é por enquanto a vida. 
Isso nos baste.

A morte de José Saramago ontem, 18 de junho, significa a perda de um notável ser humano e o ponto final na trajetória de um escritor essencial do nosso tempo. Neste mundo em que a média de lucidez e sensibilidade é muito baixa , um homem dessa natureza fará muita falta.

O desaparecimento do escritor português, aos 87 anos , na ilha de Lanzarote, situada no arquipélago espanhol das Canárias, onde vivia desde que o governo de Portugal censurou seu livro O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), representa uma dor pessoal para seus muitos leitores espalhados pelo mundo. Todos faziam parte da família espiritual que Saramago construiu através de seus livros, suas posições corajosas contra a injustiça, sua fé na razão  humanista e na solidariedade como instrumentos de luta diante das trevas que inundam o planeta. Foi o primeiro e, até agora, único escritor de língua portuguesa a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998.

Numa época em que se misturam os conceitos de escritor e publicitário, em que o marketing pessoal muitas vezes vem antes do trabalho literário e da consciência do que este representa, José Saramago foi uma notória exceção. Antimarqueteiro por excelência, não se preocupava em atender as demandas e caprichos do mercado. Nele o cidadão andava junto com o criador de páginas belas, densas, simples e memoráveis. Dizia o que pensava e o que sentia . Não tolerava a opressão e a coisificação da vida. Não fugia dos temas polêmicos, a indiferença jamais fez parte de seu modo de ser e escrever. Queria denunciar a iniquidade e a desumanização, e o fazia com  destemor, acendendo e partilhando a boa luz que emanava de seu espírito. 

Esse homem de origem muito humilde, nascido na pequena povoação de Azinhaga, província do Ribatejo, em 16 de novembro de 1922, apontou a irracionalidade de religiões que investem contra a dignidade das pessoas. Criticou Israel na luta desigual, violenta e injusta contra os palestinos, acusou a perseguição movida ao juiz espanhol Baltasar Garzón por querer apurar os crimes cometidos pela ditadura franquista, e insurgiu-se diante de muitos outros atos  de violência.

Terá cometido erros como todos, do contrário não seria gente. Mas o legado literário, ético e humano que deixa para as pessoas de todas as nações é digno de atenção e profundo respeito.

Em sua importante produção, encontramos livros como Levantado do chão (1980), O ano da morte de Ricardo Reis (1988), Ensaio sobre a cegueira (1995), O conto da ilha desconhecida (1998), As pequenas memórias (2006).

O blog que manteve a partir de 2008, intitulado O Caderno de Saramago, na página da Fundação José Saramago na internet, foi mais uma manifestação concreta de grande generosidade e  capacidade de intervenção na realidade.

Tenho um irmão siamês
(Minha morte antecipada,
Já deitada
À espera da minha vez.)

O homem silenciou.

A obra continuará viva entre nós.

Por isso, lhe seremos sempre gratos.

Adeus, José.

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Foto: José Saramago, janeiro de 2009. Arquivo da Fundação José Saramago.
Textos do escritor, em itálico vermelho, extraídos do livro  de poemas Provavelmente Alegria, Editorial Caminho, Lisboa, 1985.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

O processo

Jorge Adelar Finatto


Sou habitante
da beira do rio
condenado
a não ver o rio

afundado em seco
decifro papéis
que nada me dizem

a página em branco
espera o verso
que não escreverei

o que encontro
no gabinete
a essa hora
da manhã
é não ter tempo
pra mais nada

enfrento a trama
invencível
a dor sem abrigo

a grande trituração
das almas
no processo

resta apenas
o duro ofício
que não pode
ser adiado

impossível fugir

o carteiro
envelhece
enquanto aguarda
as cartas
que não enviarei

observo por um momento
o voo branco
da gaivota
sobre o Guaíba

nesse instante
invade-me a tristeza
do prisioneiro
(a essa hora da manhã)

desapareço
na névoa

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Poema do livro Memorial da vida breve, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.

Foto: J.Finatto

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Breve notícia de um domingo

Jorge Adelar Finatto


A moça do casaco de lã azul tem cabelos encaracolados. Os dentes da moça do casaco azul são muito brancos. A cidade fica iluminada quando a moça sorri. Essa moça de cabelos encaracolados não sabe que espalha encanto e dor na tarde fria e triste do domingo de junho. Por isso, enquanto conversa fazendo gestos suaves, na moldura branca do banco da praça, o riso da moça apaga e acende como farol no meio da melancolia que insiste  no coração. Dá vontade de caminhar na estrada ensolarada que a moça inaugura toda vez que sorri dentro do casaco azul.

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Foto: J.Finatto

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Camisola*

 José Saramago


Quando hoje saí do hospital, fresco como uma rosa, trazia comigo duas satisfações. Uma, a de me ter visto livre, finalmente, de uma impertinente bronquite que há meses, com altos e baixos, parecia não querer largar-me, mas que desta vez teve de resignar-se a ir à procura doutro hospedeiro. Oxalá não o encontre. A segunda satisfação era de diferente natureza. Sucede que neste pequeno hospital de Lanzarote, certamente com surpresa de quem me leia, trabalham nada mais, nada menos que 17 ou 18 enfermeiros vindos de Portugal, da província do Minho na sua maior parte. Sucede também que, antes de sair, tive de fazer uma radiografia ao tórax para que ficasse devidamente documentado que o paciente, como costuma dizer-se, está bem e recomenda-se. Eu levava posto o que hoje chamamos um “jersey”, portanto foi um “jersey” que despi e deixei em cima de uma cadeira. O enfermeiro, português de Felgueiras, devia verificar se as chapas haviam resultado tecnicamente satisfatórias e, para isso, teve de passar para um compartimento ao lado. Disse: “São só dois minutos, depois dou-lhe a camisola”. Creio que estremeci. Não tornara a ouvir a palavra desde há uns trinta anos, talvez mais, e aqui, em Lanzarote, a dois mil quilómetros da pátria, um jovem enfermeiro de Felgueiras, sem o imaginar, dizia-me que a língua portuguesa ainda existia. Abençoada bronquite.

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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Publicado originalmente em 21/abril/2009.
A grafia é a de Portugal.

Foto: José Saramago escrevendo Caim. Arquivo da Fundação.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Alberta de Montecalvino

Jorge Adelar Finatto


Veneza é o sonho de toda Colombina. Eu passei a vida em Passo dos Ausentes. O que é esse lugar? Um território perdido no vento. A neblina, o frio e a chuva povoam a cidade o ano inteiro. Habito com amargura e ironia esta estação de fim de mundo.

Casei-me aos 16 anos com Dom Alberto de Montecalvino, o Solitário da Biblioteca. Na época ele contava 69 anos. Desde aquele quando, passei a viver neste austero castelo de basalto e vidro. Hoje tenho 70 anos, sou deveras viúva e, às vezes, me perco nos salões da memória. As intermitências.

Daqui de cima, na larga janela da biblioteca, avisto o Contraforte dos Capuchinhos. Gosto muito dessa visão porque por ali é que se vai embora de Passo dos Ausentes. Mas nunca passei naquela estrada. Dom Alberto me pediu que jamais o fizesse. Os medos. Atendi o bom homem. Passaram-se os anos.

O muito amado do meu coração é Pedrolino. Dom Alberto sempre soube, suportou, era como um pai pra mim. O meigo Pedrolino. Amoroso e fiel. Seu amor é casto e resignado. Tem as delicadezas.

Arlequim é o senhor das labaredas. Inconstante e fútil. Nunca vem ao meu coração. Tem meu corpo, jamais minha alma. Com ele muito me rio, é engraçado, leviano. Incapaz de amar alguém além de si mesmo. Não tem sentimento.

O corpo tem fome e a fome seus apetites. Arlequim é malicioso, egoísta, por isso sabe agradar quando quer. Pedrolino é terno, quase um menino, vai direto ao assunto. Não conhece as sutilezas.

Quem pudera reunir, na mesma pessoa, as gratas virtudes. O mundo humano foi bordado imperfeito, eu sei. Tal felicidade ninguém merece.

Ambos os dois, Arlequim, o devasso, e Pedrolino, o amado, são a minha devoção. Cada qual no seu momento. Sou a Senhora da Biblioteca. Viúva mui constante em negras vestes de luto. Os respeitos a Dom Alberto. Tenho a minha idade. Cultivo as devoções, no discreto.

Não me julguem tão depressa. Poupem-me da vossa moral de almanaque. De metafísica e solidão o cemitério está cheio. Conheço os reveses. Eu vivo os enquantos.

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Foto: J.Finatto
Alberta, Colombina