sexta-feira, 30 de julho de 2010

Composição

Jorge Adelar Finatto


O anjo tombou morto
na terra alheia de uma tela

Van Gogh imagina Gauguin
asfixiando o anjo no jardim
com as mãos queimadas de sol

Dali encoberta a face de granito
com o manto de brilhantes
os brilhantes despojados do anjo

Di Cavalcanti entristece: era uma mulata
o anjo assassinado nas cores do jardim?

Portinari retira-se melancólico
Picasso adentra a gruta de um olho

A noite cai pesada de remorso

Nesse instante todos dão-se as mãos
e cantam a canção predileta do anjo
em volta do corpo estendido no chão

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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

Foto: J. Finatto

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Festival de Cinema de Gramado

Jorge Adelar Finatto


Atendendo pedido dos dois leitores do blog, a redação dO Fazedor de Auroras decidiu pensar alto e vai fazer a cobertura do Festival de Cinema de Gramado, a realizar-se entre os dias 06 e 14 de agosto de 2010. Portanto, a partir de agora começamos a trazer notícias do conhecido festival serrano, que está em sua 38ª edição. A mistura de bons filmes e conversas ao calor da lareira promete madrugadas ensolaradas.

Os dias frios, os bons cafés de Canela e Gramado, os vinhos, a calma interiorana com toque cosmopolita, desanuviam mentes e corações.


Existe a possibilidade, remota embora, de O Cavaleiro da Bandana Escarlate participar da cobertura. O nobre senhor encontra-se deprimido em casa, nas cercanias da Praça Maurício Cardoso, em Porto Alegre. Só faz ler, meditar e cuidar do jardim interior do belo solar de sua alma. Isso é assim desde o incidente ocorrido entre ele e sua musa, conforme aqui relatado em 27, abril último.

Os dois leitores do blog, e outros que a eles eventualmente  se juntarem, podem mandar sugestões de pauta. Isto é o mínimo que se espera de um blog moderno, diz em e-mail Alberta de Motecalvino, essa grande dama de Passo dos Ausentes.

Os ingressos estão à venda no site oficial www.festivaldegramado.net. A partir de 31 de julho poderão ser comprados diretamente no Palácio dos Festivais (cinema onde se realiza o evento).

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Fotos: J. Finatto. Gramado

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Somos uma irrecusável perda sob o sol

Jorge Adelar Finatto

Não suportamos mais despedidas. Quando alguém morre ou vai-se embora, fica um buraco insuportável na paisagem.

photo: j.finatto

 
Inverno. Passo dos Ausentes é um lugar perdido na Serra do Rio Grande do Sul, cercado de neblina e vento. Um resto de sol, entre nuvens, ilumina as ruas.  As folhas secas caem no chão. Passa um vulto na praça, fugindo do frio e da noite próxima.

O inverno impõe um ritual próprio. Nos recolhemos cedo em torno do fogão a lenha, os pinhões na chapa, a água esquentando na chaleira. Pouco saímos à rua. Nos tornamos quase invisíveis. 

Somos poucos habitantes na velha cidade. Estamos quase em extinção. A população, ao invés de aumentar, está diminuindo ao longo dos anos. Os jovens vão embora, só voltam de vez em quando, em datas especiais. A falta de gente faz com que nos agarremos uns aos outros. Preservar o que resta da cidade, tratar bem os que resistem, é o que nos move.


Somos poucos. A memória e o afeto são nosso escudo contra a escuridão.

Em Passo dos Ausentes, qualquer pessoa é mais do que um simples habitante, é alguém da família. Imprescindível como um amigo ou um parente a quem se quer muito. Nesse território tão pequeno e esquecido, não podemos abrir mão de ninguém. Nos procuramos e nos reconhecemos uns nos outros. Espelhos humanos é o que somos, espelhos que não podem quebrar. Somos poucos.



Talvez por isso, mais do que em outros lugares, temos muito presente o sentido da solidão e da brevidade das coisas. As brigas aqui não podem durar mais do que um dia, sob pena de morrermos congelados.

O maestro da banda municipal, o Giocondo, morreu faz cinco anos. Desde então, não apareceu ninguém como ele pra tomar conta do nobre ofício. Os músicos tocam as mesmas músicas, fazem  seu trabalho com esforço. Mas não é a mesma coisa. Falta o Giocondo com seu talento, criatividade, sua cabeça branca, no coreto da praça, regendo os componentes da banda, entusiasmando o público do modo como só ele sabia fazer. Sem a presença do nosso maestro, a banda toca. Mas não encanta.

Os habitantes de Passo dos Ausentes são livros vivos, depositários da memória comum. As histórias que cada um traz, as lembranças, os sentimentos, esse acervo é de todos, nada pode ser desperdiçado.

O frio, a garoa, a névoa, a chuva, o vento não dão trégua. Resta o olhar ao longe através dos contrafortes.

O inverno cultiva sentidos extraviados.



Coisas que para outros não têm importância, para nós são essenciais: o rumor do riacho acordando o dia, o som das asas de uma borboleta cruzando o jardim, o canto dos pássaros nos quintais, na mata em volta da cidade, os ramos floridos das buganvílias subindo nos portões, as cartas antigas no fundo das gavetas.

Em Passo dos Ausentes, as pessoas ruminam tudo o tempo todo. Vasculham o voo das nuvens e das andorinhas azuis, escutam o silêncio das constelações, andam absortas na beira dos peraus que nos cercam. Os detalhes das coisas importam. Não estamos à vontade no mundo. Viver nos pesa muito, muito.

Somos uma irrecusável perda sob o sol. Viajantes audazes a navegar contra o mar do esquecimento. Não suportamos mais despedidas. Quando alguém morre ou vai-se embora, fica um buraco insuportável na paisagem.



Os fantasmas costumam encontrar-se na estação de trem abandonada. Ali Juan Niebla, o bandoneonista cego, executa seus concertos todas as terças-feiras, às cinco da tarde. No banco da gare vazia, com os óculos escuros, seus dedos deslizam rapidamente, às vezes suavemente, sobre o teclado branco e preto, enquanto movimenta a cabeça para os lados, para trás, para frente. 

Sempre em silêncio, com suas grossas mantas e casacos de lã, os fantasmas sentam perto dos trilhos cobertos de hera,  ouvem o concerto de Niebla. 

O relógio redondo e preto, na entrada da estação, está parado desde a metade do século passado.

Diante da evasão das pessoas em busca de outros sonhos e horizontes, e do avanço do oblívio nas ruas e casas, precisamos urgentemente reconstruir a cidade do afeto, da memória  e do encontro. Será que conseguiremos?

Habitamos os Campos de Cima do Esquecimento.

No austero silêncio das nuvens, essa página de busca-vida.

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Fotos: J. Finatto

Leia também A cidade perdida: as origens, post de 25/12/09

domingo, 25 de julho de 2010

Um aparelhinho para Marte... *

José Saramago

Enquanto estamos a falar, há milhares de milhões de pessoas que morrem de fome. Como podemos aceitar que o homem não seja um ser solidário, que já não pense na espécie e se tenha convertido num monstro de egoísmo e ambição que despreza milhares de pessoas que nada têm? Não se faz nada para resolver problemas essenciais. Para milhões de pessoas no mundo, nenhum dos problemas essenciais da vida está resolvido, enquanto nos entretemos a enviar um aparelhinho para Marte…

“O homem transformou-se num monstro de egoísmo e ambição”, El Cronista, Buenos Aires, 11 de Setembro de 1998 [Entrevista de Osvaldo Quiroga]

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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído de Outros Cadernos de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Publicado em 23 de julho, 2010

sábado, 24 de julho de 2010

Um mundo muito perigoso

Jorge Adelar Finatto

Deus andava por perto quando aconteceu. O cenário era de grande desolação em Canela, no amanhecer da quinta-feira, 22/7. Na noite anterior, em torno de 21h, um tornado, ciclone ou fenômeno parecido (o nome ainda é objeto de discussão pelos técnicos) se abateu sobre certas áreas da cidade. Durou entre um e dois minutos. O resultado foi devastador. Pinheiros, caneleiras e diversas outras árvores de grande porte, algumas centenárias, foram arrancadas do chão pela raiz, como se fossem pequenas plantas. Telhas, chaminés, calhas, letreiros, galhos, vasos e objetos de todo tipo foram arremessados pelo ar como cisco. Várias casas foram destruídas, postes de iluminação caíram. Nunca  tinha visto algo assim. Felizmente, não houve mortos.  Fiquei impressionado com a capacidade de reconstrução das pessoas. Homens e mulheres trabalharam duro. Em 24 horas muitas  das casas estavam sendo reerguidas e a paisagem de devastação começava a  desaparecer. O espírito de solidariedade tomou conta da região, havendo doação de alimentos, materiais de construção,  móveis, roupas, cobertores (o frio é intenso), e acolhimento a desabrigados. As cidades vizinhas, como Gramado, estão ajudando.

As pessoas com quem falo atribuem o fato às agressões contra o ambiente. Ninguém tem dúvida. O que mais será preciso, quantos desastres mais no mundo, para que governos, empresas e sociedades mudem o rumo da conversa e passem a administrar a economia para a vida e não para a morte?  O egoísmo e o consumo levados a extremos tornaram o mundo um lugar muito triste e perigoso. Precisamos urgentemente voltar a ser seres humanos, cidadãos razoáveis, ao invés de consumidores.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Camélias brancas

Jorge Adelar Finatto



Caminho numa praça cheia de silêncio e camélias brancas. O som do vento é um remorso percorrendo a cidade. A branca passagem do nevoeiro pelas ruas de Passo dos Ausentes. Sobre a mesa, há  um vaso com flores de inverno. Por isso, quando retorno pra casa, penduro o chapéu e o bornal ao lado da porta.  Porque há dias de procurar flores na neblina.

Seis são as cadeiras em volta da mesa.  Cinco são os fantasmas em volta de mim. O relógio não cessa de fazer seus giros. As horas caem  silenciosas no chão como as camélias na praça. A frágil e fugidia beleza.


Quem salvará das geleiras e dos ventos eternos os nossos corações? O frio excessivo faz ranger as paredes de madeira.  Sob o grosso cobertor da solidão, fecho os olhos na cadeira de balanço. Caminho nos pátios e sótãos do oblívio. Quatro vezes saí de madrugada até a esquina para encontrar os camaradas. Eles tinham partido. Quatro noites sentei perto da janela pra respirar melhor. Quatro noites passei em claro esperando amanhecer.


Onde estão os postais da primavera  para iluminar o inverno? Onde foi que enterraram aquelas manhãs?  Não quero afundar com as coisas que desapareceram.

O vento canta na trompa de nácar do búzio.

Caminho entre as camélias brancas caídas no chão da praça.

Invento claridades.

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Foto: J. Finatto

quarta-feira, 21 de julho de 2010

A matéria de que somos feitos

Jorge Adelar Finatto

A fragilidade da vida humana é comovente. A biblioteca nos dá a ilusão do infinito. A matéria de que são feitos os livros é mais duradoura do que aquela de que são feitas as pessoas. Tenho na minha pequena biblioteca alguns livros com mais de cem anos. Estão vivos como quando nasceram, já amarelecidos pelo tempo, mas cumprem a função para a qual foram criados. Há livros com vários séculos nas bibliotecas do mundo. Não conheço e nem ouvi falar de gente que tenha vivido 150 anos, com exceção de certos relatos escritos, como na Bíblia. Os livros e suas histórias são, perto de nós, sempiternos. A leitura nos dá um sentimento de participação na eternidade. Raskólnikov viverá para sempre nas páginas de Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski. Fernando Pessoa morreu aos 47 anos em Lisboa, em 1935, mas os poemas que escreveu durarão até o fim (improvável) dos tempos. O gênero humano é eterno, mas o indivíduo é mortal. A doce ilusão dos livros é parecida com aquele olhar através da janela do avião nos minutos que antecedem o pouso no país distante. Quando estamos em movimento, sobrevoando palavras ou cidades, a vida está acontecendo e nada de ruim poderá nos suceder.
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