quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Bernardo, eremita

Jorge Adelar Finatto


Bernardo, eremita, foi morar no interior do búzio faz muito tempo. Conversa com os peixes. Caminha no jardim das anêmonas.  O búzio onde vive fica na flor dágua, é uma espécie de ilha, tem vista ampla, mas é pouco poroso e, de tão velho, guarda ainda as impressões digitais do Criador.

As gaivotas bailam no ar azul da manhã, nesses começos de setembro. De boné branco, astrolábio e telescópio, Bernardo descortina os quatro horizontes. Faz silêncio na ilha. Só se ouvem as ondas. O vento austral estufa a camisa, espalha os brancos cabelos.

Bernardo sai pouco a navegar no pequeno barco de madeira. Só ele e os bichos vivem ali. Costuma remar de vez em quando em volta do búzio, margeando as palmeiras e falésias. Faz parte do seu cotidiano conversar consigo mesmo. Estranho, tem dias que resolve dizer a si o que pensa  de certas coisas e acaba ouvindo o que não quer.

Longe da ilha tem um farol pintado de branco e vermelho.  Nunca foi até lá, mas admira a persistente luta do faroleiro contra a escuridão. Bernardo queria ter essa força também.

Solitário, pensa: quem sabe um dia descubro alguém pra partilhar a vida?

As gaivotas sobrevoam a ilha. Às vezes, ele sonha viajar até o continente. Talvez saindo da concha encontrará a moça do cabelo preto escorrido e do vestido floreado. Mas já se passaram vinte e cinco anos.  Em que coral, em que ilha distante viverá a moça do vestido floreado?

A maré sobe, os peixes nadam em festa à flor do arrecife. Bernardo recolhe os instrumentos e retira-se com o boné branco para o interior da côncava morada. A música primitiva do vento sopra nas trompas do búzio.

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Foto: J. Finatto

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Os sapatos da primavera

Jorge Adelar Finatto




Da minha janela eu vejo a rua. A rua é um pedaço do mundo. É só uma rua entre tantas.

O mundo é um rio largo e fundo. O tempo das folhas secas cessou. A claridade de setembro invade a sombra.

Escuto na calçada o som de passos que vêm de muito longe. Mas não há ninguém lá fora nessa hora erma. O vento sacode as folhas nas árvores.

A carroça cheia de flores dobra a esquina, para no meio da quadra, debaixo do poste de luz. Na manhã que se aproxima, as pessoas encontrarão a carga suave e perfumada.

Enquanto escrevo, coisas luminosas acontecem em silêncio.  Da janela observo esse ponto pequeno e obscuro do universo, que chamo minha rua, onde todos agora dormem. Mãos desfalecidas nada podem segurar.

Nenhum grito assola a hora nua. O sonho levanta do escuro. 

Os sapatos da primavera cantam na calçada.

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Foto: J. Finatto

sábado, 28 de agosto de 2010

Um doce olhar

O Cavaleiro da Bandana Escarlate


Somos todos sobreviventes em um mundo que despenca ao nosso redor. Só há uma permanência em nossas vidas: a ausência.

Existe algo além de sexo barato, violência gratuita (doentia) e desprezo pelo humano no ar. Ao contrário do que pensa  uma parte dos realizadores de filmes, séries e novelas, pode haver mais do que isso. Sugerem eles que produção que atrai público é  aquela que  beira ou cai na baixaria. Não é verdade. As pessoas, em geral, gostam do que é bem feito, do que fala ao coração e ao pensamento.

O filme turco Bal (Um doce olhar, 2010), dirigido por Semih Kaplanoglu, vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim deste ano, é obra simples e de grande qualidade. Nunca é demais lembrar que, na arte, o simples é o mais difícil de fazer. Muito mais fácil é ser pretensioso e ralo.

O título original, Bal, significa mel. A história se passa numa  pequena povoação em região montanhosa (muito bonita) da Turquia. É a parte final de uma trilogia de Kaplanoglu. Os outros dois títulos são os longas Yumurta (Ovo), de 2007, e Sut (Leite), de 2008.  Cada um deles mostra uma fase na vida do personagem Yusuf. Ovo trata do homem adulto, poeta sem reconhecimento, dono de um sebo, que retorna à cidade onde nasceu para o enterro da mãe. Leite enfoca o jovem que não consegue entrar da universidade, não é aceito no serviço militar e quer escrever poemas. Esses dois filmes não passaram ainda no Brasil, salvo em exibições especiais. Mas  não há problema para a compreensão de Um doce olhar. Cada um pode ser visto de forma independente. Os três compõem o roteiro de uma vida ao contrário.

Um doce olhar apresenta Yusuf (o ator mirim Bora Altas) com seis anos, vivendo entre montanhas, pássaros, córregos, sons, cores e mistérios da floresta, ao lado do pai, o apicultor Yakup (Erdal Besikçioglu), e da mãe Zehra (Tülin  Özen), cultivadora de chás.

A delicada obra mostra o olhar do menino se apropriando do mundo. É um olhar primevo, inaugural, iluminado pelo contato físico e espiritual com os seres e coisas que o cercam. Yusuf tem dificuldades na escola, onde está aprendendo a ler. Vai e volta sozinho pela estrada de chão. Muito tímido, gagueja sempre, quase não se relaciona.  A pessoa com quem mais e melhor se dá é o pai, que lhe passa conhecimentos sobre seu trabalho e a natureza. A história marca a passagem de Yusuf para outra esfera de consciência, em razão de um doloroso acontecimento.

A fotografia é cativante, com planos longos e silenciosos. Poucos diálogos. Gestos, expressões, objetos e árvores valem muito neste belo filme.

Somos todos sobreviventes em um mundo que despenca ao nosso redor. Só há uma permanência em nossas vidas: a ausência.

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A Sociedade Histórica, Geográfica, Filosófica, Literária e Geológica de Passo dos Ausentes (SHGFLGPA), leia-se Dom Sigofredo de Alcantis na presidência, Alberta de Montecalvino e Juan Niebla no setor cultural, me convida para continuar a escrever neste blog, depois dos textos que rabisquei sobre o Festival de Cinema de Gramado. Acho um gesto de  coragem  e grandeza da parte deles.

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Foto: Yusuf e o pai. Divulgação. Paris filmes.

Saiba mais sobre O Cavaleiro da Bandana Escarlate nos posts de 27 de abril  e 29 de julho de 2010.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Entre plátanos

Jorge Adelar Finatto



Entre plátanos
e borboletas
o menino brinca

contra a miséria da rua
e a tragédia familiar
ele cresce

por um momento
na manhã do mundo
o menino gira


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Poema do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
Foto: J. Finatto

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Passos de algodão


Jorge Adelar Finatto

 
 
 
Amar traz consigo, sempre presente, o risco de perder.

Depois de longa e sentida ausência, ele retornou ao convívio das tardes no escritório. Conheço meu amigo de outros invernos. Partiu em fevereiro sem dizer nada, tão ao seu estilo, e me deixou aqui todo esse tempo sem poder ouvir sua voz cava e rascante, sem poder ver sua plumagem luminosa, seus olhos redondos e atentos.

Sempre sinto falta do seu olhar de banda, da maneira estrambótica de aterrissar num só pé na sacada do escritório. Alziro tem temperamento forte e, às vezes, um certo mau humor o acompanha quando o tempo está pra chuva.

Ele voltou com suas cores vivas para suavizar o inverno. Eu andava mesmo precisado de sua companhia. Não que ele converse muito. No fundo, nem é isso o mais importante.

A silenciosa presença do amigo, sabê-lo perto, partilhando a vida, é motivo de consolo e esperança.

Providenciei hoje a reposição de pedaços de banana no pratinho dos pássaros, fruto muito do seu gosto.

Em certos dias, Alziro deixa a cerimônia de lado, entra no escritório, em passos de algodão, e ensaia uma pequena incursão no ambiente. Olha o teto, os lustres, a mesa, os livros, os quadros, as plantas e relógios, tudo com silenciosa atenção. Faço que não percebo para deixá-lo à vontade.

Do mesmo jeito que chega, o meu amigo vai embora. Como sempre, não se despede e nem diz quando voltará, apenas alça o improvável voo adunco rasgando o ar.

O que importa, diz o coração, é que a velha e boa amizade está rediviva. Se tudo der certo, talvez ele retorne amanhã ou quem sabe depois. Só espero que não me falte tão cedo, porque meu inventário de ausências já vai longo na vida.

Amar traz consigo, sempre presente, o risco de perder.

 
 
 


 


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Fotos. J. Finatto.

domingo, 22 de agosto de 2010

Olinda, a epifania do olhar

Frederico Vasconcelos

 
"Olinda é só para os olhos. Não se apalpa, é só desejo.    Ninguém  diz: é lá que eu moro. Diz somente: é lá que eu vejo." (Carlos Pena Filho)

A primeira aproximação de Olinda deveria ser, sempre, pelo mar. Roteiro sentimental é escolha de foro íntimo, mas é a partir do mar que a cidade surge mais bela.

É só conferir nas gravuras de Franz Post ou nas vistas que Rugendas eternizou.

Receio que essa visão seja desperdiçada pelas novas gerações bem-sucedidas que passam velozes em suas lanchas, ansiosas para chegar a Itamaracá, ponto de exibição de jet skis, buggies e ultraleves -bons tempos aqueles quando a praia do forte Orange ainda era uma região deserta...

Há quem prefira a Olinda agitada dos Carnavais. Folião aposentado, hoje gosto mais da cidade tranquila dos dias de semana. Mas tenho boas lembranças dos desfiles de rua e da rivalidade -ainda presente- entre a Pitombeira dos Quatro Cantos e o bloco dos Elefantes (era adepto do primeiro, mas gostava do hino do rival, que ouvi, pela primeira vez, executado pelo autor, Clídio Nigro, no velho piano alemão da minha casa).


O desafio era "tirar" o bloco na sede, "pedir passagem", pulando nas ruas estreitas e íngremes, e aguentar o repuxo até o "regressar". Era preciso fôlego redobrado, ativado pela mistura prévia de "bate-bate com doce" (batida de frutas, açúcar e muita cachaça). É quando a população está com a "goitanga" (com o diabo no corpo, em bom "pernambuquês").

Na minha imaginação, prevejo o dia em que aquela massa humana, pulando ao mesmo tempo, abrirá uma grande cratera, descobrindo os túneis e subterrâneos secretos que cortam Olinda. Ou as botijas cheias de riquezas, enterradas nos tempos de saques e incêndios dos holandeses.

Conhecer Olinda não carece da companhia de guias ou de roteiros. É só fazer a ligação entre as igrejas e confirmar como eram espertos os primeiros ocupantes: jesuítas, beneditinos, franciscanos e carmelitas, todos souberam conquistar os espaços mais belos, no alto. É das celas dos mosteiros e conventos que se descortina a melhor paisagem litorânea.

Olinda pode ser dividida a partir das áreas de ocupação pelas várias ordens religiosas. Nasci numa casa na rua de São Bento, próxima ao mosteiro dos beneditinos. A rua é definida por historiadores como um referencial do núcleo urbano (a casa da primeira infância, na travessa do Fortim, o mar levou).
Graças à planta de Olinda de Gaspar Barleus (1674), descubro que a casa da minha juventude, na rua 27 de Janeiro, ficava exatamente na fronteira entre duas ordens religiosas. A frente da casa estava nos limites dos beneditinos. O quintal ficava em terreno pertencente aos frades carmelitas.

Referência maior, o "sobrado mourisco", hoje um famoso restaurante na mesma rua, já na praça de São Pedro, era no passado um armazém de secos e molhados, de propriedade do então prefeito. Na parte superior, residencial, minha mãe morou durante 20 anos.

Nos anos 70, já morando em São Paulo, voltei a Olinda acompanhado de um grupo de jornalistas. No alto da Sé, alguém pediu-me informações sobre o local onde haveria uma festa. Ofereci-me para servir de guia. A festa acontecia na rua da minha juventude e exatamente na mesma casa em que morei. Foi uma noite inesquecível.

São circunstâncias como essa que alimentam, mesmo à distância, a mania besta de todo olindense de achar que somos parte daquele patrimônio da humanidade.

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Este texto foi originalmente publicado na Folha de São Paulo, edição de 06/10/1997. Agradeço ao Frederico e à FSP a autorização para reprodução. 
J. Finatto

Frederico Vasconcelos é jornalista, repórter especial da Folha de São Paulo. Mantém o Blog do Fred (blogdofred.folha.blog.uol.com.br) ,  um dos mais importantes e acessados da área do sistema judicial brasileiro.
Pelos seus trabalhos, recebeu, entre outros, o Prêmio Esso, o Prêmio Bovespa de Jornalismo, o Prêmio BNB de Imprensa, o Prêmio Icatu de Jornalismo Econômico e foi finalista do "Premio a la Mejor Investigación Periodística de un Caso de Corrupción", do Intituto Prensa y Sociedad e Transparency International Latinoamérica y El Caribe.
Nas horas vagas, dedica-se a outro teclado: toca piano (Jazz e MPB).
E-mail: fvasconc@folhasp.com.br

Fotos: As três fotografias são reproduções do site da Prefeitura de Olinda (www.olinda.pe.gov.br), tendo como autor Passarinho: 1) Igreja de São Pedro Apóstolo 2) Os Mascarados 3) Mosteiro de São Bento.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A pensão dos viajantes solitários


Jorge Adelar Finatto



A cidade é onde o abandono é dono.

As praças vazias onde me quedo ouvindo falecidas conversas.
Bardo obscuro e tabelião em Passo dos Ausentes, eu vivo os interstícios. Os ásperos padecimentos da humana travessia. A bordo de um frágil e ridículo corpo existimos. Ninguém sabe até quando.

Cheio pela borda de cansaços e desejos. Quem houvera nesta vida me escutasse os ais.

Viver é assunto proceloso e bem escuro.

As coisas que não aconteceram são as que mais se afeiçoam na minha lembrança. A biografia que merece os veros registros: a dos não-acontecimentos.

Por isso estou aqui. Me inventando, me contando.

Sou o bardo barroco, ressuscitado em salvadoras prosopopeias. A obsessão pela música interior. Essa que me faço. Conjuro o venturoso canto.

Não me interessa a realidade. Quem tiver a realidade, que a bem guarde e embale.

Sou viajante de um tempo que se esfuma.

A saudade é um retrato em branco e preto na gaveta da memória. Os destroços de cada um.

O meu coração habita um quarto de pensão. A pensão se chama Ao viajante solitário.

Às vezes penso que o mundo é uma grande pensão. A pensão dos viajantes solitários. A existência é um fio de orvalho estendido de manhãzinha sob o sol.

Somos parceiros das nuvens.

Caminho para o lugar mero do esquecimento.

Eu, Landgrave dos Santos Esquecido, inquilino do absurdo, de tudo dou fé e assino. Passo dos Ausentes, nos Campos de Cima do Esquecimento, Rio Grande do Sul.

Primavera, primaveras.

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Do livro Calado observador do fim do mundo, Editora Vésper, Passo dos Ausentes, 2010.
photo: j.finatto