sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

A vida é mesmo amanhecer

Jorge Adelar Finatto


A minha porta nunca se fecha para a dúvida. O que parece definitivo é, quase sempre, e apenas, provisório. As certezas do mundo são verdades passageiras. Estar aberto a mudanças, quando isso é o melhor a fazer, reconsiderar diante  de novas evidências, significa andar pra frente.

Não se trata de mudar ao sabor do vento.  Mas de querer  ser melhor. Como é que um ser transitório, de limitada capacidade de compreensão, pode ter a pretensão de achar que tem a verdade absoluta? Temos a verdade, sim, até que outra mais verdadeira se apresente. A rigidez excessiva não é boa conselheira.

               @                    @                    @         

Agora, por ser Natal e véspera de Ano Novo (fim da linha pra 2010), há esse simbolismo de nascimento, luz e renovação.

Os livros do Novo Testamento têm impressionante significado literário e espiritual. Há força ativa naquelas palavras, além do insuperável valor estético que lhes é inerente. Essa força é capaz de gerar vida (transformação) dentro de nós.

Acredito que todas as histórias, todos os livros, nasceram da Bíblia, de algum dos 66 livros que a compõem. Está tudo lá, revolta, beleza, drama, esperança, luta, justiça. Quantos livros terão a sensualidade, a delicadeza e o trato da palavra de O Cântico de Salomão?

Cristo está acima das religiões (organizações humanas e, como tal, cheias de falhas) e não é monopólio de nenhuma delas.

Que cada um aproveite da melhor maneira esse período e que a bondade, a justiça e o perdão sejam mais que simples palavras em nossas vidas.

________

Foto: J. Finatto

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Conversa no scriptorium: primeiro ano do blog

Jorge Adelar Finatto


Não alimento a ilusão do devorador de livros. Sou um leitor calmo e persistente. Nem me atenho demasiado ao cânone. Já li muita bula de remédio e texto de pacote de maisena. Pequenas notícias de jornal podem guardar preciosidades. Descobri frases e versos memoráveis em livros considerados menores. Li grandes embromações de autores famosos.

O lugar onde me sinto menos sozinho, nesse velho mundo de Deus, é o território dos livros. Pode ser a biblioteca, a praça, o escritório, o ônibus, metrô, avião ou trem. Muita vida há nas páginas impressas. Uma existência de tinta e papel. Sim, agora chegou também o livro eletrônico. Não digo que dessa água não beberei.

Corações solitários e livros são bons companheiros. Se além do livro a criatura tiver o luxo de um abraço, então é o passeio no paraíso.

Essas anotações vêm à luz do dia bonito que faz hoje aqui. Esse respirar claro. Na rua em frente o flamboyant é todo flor. Nunca nos falte.

Quero compartilhar com você esse dia luminoso. E agradecer o primeiro ano de convivência no blog que hoje se completa.

Uma joaninha marrom com bolinhas brancas resolveu caminhar sobre o teclado. O mínimo que posso fazer diante da doce visita é desligar a máquina.

________

Ilustração: Scriptorium, Monk at work. Autor: William Blades (1824-1890). Domínio público. Fonte: Wikipédia.

Livro Europeu do Ano para Roberto Saviano e Sofi Oksanen



O italiano Roberto Saviano foi distinguido com o Prémio Livro Europeu do Ano, na categoria de não ficção, com A Beleza e o Inferno, e a finlandesa Sofi Oksanen venceu na de ficção, com o romance Purge. O júri, presidido pelo escritor e realizador alemão Volker Schlöndorff, decidiu premiar dois livros marcados pela violência que se exerce no norte e no sul do continente europeu. Purge (Puhdistus, em finlandês), editado pela Stock e já distinguido com o Prémio Femina Étranger 2010, relata a violência de que foram vítimas as mulheres estónias durante a ocupação soviética. Filha de mãe estónia e pai finlandês, Sofi Oksanen tem 32 anos e venceu em 2008, ano em que foi publicado o seu romance na Finlândia, os três maiores prémios literários do país, entre os quais o equivalente ao francês Goncourt. O Prémio Livro Europeu do Ano é organizado pela União Europeia e tem como objectivo promover os valores europeus e contribuir para uma melhor compreensão dos cidadãos da União Europeia como entidade cultural. (fonte: Público)

________

Publicado por Casa Fernando Pessoa, Lisboa, em 13/12/2010, às 15:39, no seu blog: http://mundopessoa.blogs.sapo.pt/
A grafia é a de Portugal.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Uma gaivota sonha

Jorge Adelar Finatto


A memória da nave se dissolve no ar.
 
Uma gaivota branca e sonhadora pousa no alto do barco à espera da última viagem.

O ofício de esquecer atravessa as fendas de aço.  A embarcação aderna como um peixe que perdeu as asas.

É duro ser capitão de nau tão desolada.

A cor do tempo, marcas de ferrugem. As escotilhas rotas miram o impossível horizonte.

O colorido infantil recorda felizes partidas ao vento.  Imóvel paisagem nas janelas caladas.

O espectro de Ulisses caminha pelo convés.

Há um barco abandonado no cais.

_______ 

Foto: J. Finatto. Barco fantasma com gaivota a bordo. Rio Guaíba, Porto Alegre.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Calle de los suspiros

Jorge Adelar Finatto


De não ver os olhos estão vazios.
De não escutar os ouvidos estão ocos.

Um dia encontrei no mapa aquela cidade ao sul.
Nela havia uma rua chamada Calle de los Suspiros.
Um lugar que nasceu num tempo muito velho.

A rua dos suspiros está povoada de passos perdidos.
Os fantasmas ocupam as casas coloniais.
Quem mora na rua dos suspiros?

A moça na janela olha as buganvílias.
O homem que não sai de casa vê seres incorpóreos nos telhados.
A luz das luminárias é amarelo calmo.

À noite se ouve nas pedras a batida de cascos de cavalos que não existem mais.

A rua dos suspiros é um camafeu pregado na alma do tempo.

Os ventos se reúnem na calle antes de sair a galope pelo mundo.

A dor envelheceu nesta rua.
Neste lugar, todos sofrem pra dentro.

Há um salão de baile desabitado com mesas no escuro.
A orquestra foi embora carregando a música e os casais que dançavam.

A rua dos suspiros habita um retrato no oblívio.

Quem chora a essa hora na calle deserta?


__________ 

Foto: J. Finatto
Imagem de Colonia del Sacramento, Uruguai.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Cavalo-marinho

Jorge Adelar Finatto


Enquanto meu filho espera
no útero marinho da mãe
eu escrevo um poema
que ninguém lê
entre peixinhos e caravelas

invento uma alegria simples
um jeito novo de viver
e de querer bem

e vou até a janela
até a estrela mais próxima
onde algum homem há de existir
pra repartir comigo esta ternura
enquanto meu filho espera

________

Poema do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, Porto Alegre, 1983.

Imagem: Hippocampus Kuda. Autor: Robbie Cada. Obra constituída pelo autor em domínio público. Fonte: Wikipédia.

O menino do poema, que na época esperava no útero materno entre peixinhos e caravelas, hoje completa 29 anos. Ao Lorenzo, pois, renovo estes velhos versos, com a mesma emoção daquele jovem pai  encantado pela chegada ao mundo do primeiro filho.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Partilha do estar no mundo

Jorge Adelar Finatto


As palavras viajam em torno da essência das coisas. Como num velho barco que se aproxima da ilha, e adormece na praia depois de longas voltas no seu entorno, o poeta navega no poema. As palavras tangenciam, quase tocam, mas seu destino é ficar ao largo. Às vezes mais perto, às vezes mais longe do cais. Nunca alcançamos a expressão exata e ideal daquilo que queremos comunicar. Trabalhar com palavras é deparar-se com a impossibilidade da criação perfeita, a partir dos limites da condição humana, da cognição e do sentimento incompletos que temos em relação ao mundo e a nós mesmos. Somos imperfeitos e nossa percepção e nossa fala também o são. Somos parte de um mistério infinitamente maior do que  o cotidiano. Por isso escrevemos tanto e dizemos tão pouco. Por isso falamos durante uma vida e o resultado é tão escasso.

O que não nos impede de empregar todos os esforços na busca da expressão luminosa.

 Se com palavras é difícil viver, sem elas estaríamos condenados à escuridão da caverna.

Cada palavra clara é um fósforo que se acende no breu. Uma maneira de dizer sim à partilha do estar no mundo.

______ 

Foto: J. Finatto