segunda-feira, 18 de abril de 2011

Oscar Wilde em Passo dos Ausentes

Jorge Adelar Finatto

 
O guarda-chuva é um escudo existencial contra a tristeza e a pouca luz do mundo.

Um indivíduo deprimido e solitário não deve andar por aí sem guarda-chuva, mesmo em dias de sol. Não importa o tempo que faz lá fora.

A umbela traz consolo ao coração, além de proteger o esqueleto.

Em Passo dos Ausentes, existe o Sindicato dos Fazedores de Guarda-Chuvas, Chapéus, Bengalas, Luvas e Mantas. A cidade, hoje habitada por muitos fantasmas e poucos seres humanos, foi importante centro produtor e exportador desses produtos. Consta nos registros do sindicato que, entre 1890 e 1939, a Inglaterra importou a quase totalidade da produção.

O cliente mais famoso, na área das artes, foi ninguém mais, ninguém menos, do que o escritor irlandês Oscar Wilde (1854 - 1900). Dizem os antigos que ele chegou a ter perto de 20 chapéus-de-chuva (nome pelo qual também é conhecido o guarda-chuva ) e cerca de 10 bengalas confeccionados na Terra dos Ausentes.

Numa secreta viagem, o autor de O Retrato de Dorian Gray esteve em Passo dos Ausentes, em 1891. Veio a nossa pacata aldeia a fim de mandar fazer, pessoalmente, um modelo exclusivo de guarda-chuva. O artefato tinha, num canto da parte externa do tecido azul-claro, as iniciais D.G., em tom rosa, as mesmas que foram gravadas, em prata, no cabo de osso de anta.

Oscar ficou durante 40 dias por aqui, conforme está registrado no livro de hóspedes da pensão Ao Viajante Solitário. Foi tempo suficiente para encantar a todos. Ganhou o título de cidadão honorário e sua despedida, na estação de trem, foi um dos maiores acontecimentos da cidade em todos os tempos.


Tal impressão causou em nosso meio que, desde então, quando pessoas de Passo dos Ausentes viajam à Inglaterra e à França, fazem uma espécie de peregrinação sentimental atrás de Dorian Gray, quer dizer, Oscar Wilde.

Muitos dos bilhetes apaixonados colocados (todos os dias) junto ao túmulo do escritor, no cemitério Père Lachaise, em Paris, são de gente dos Campos de Cima do Esquecimento.

Entre os políticos que adquiriram essas nossas obras de arte, estão Getúlio Vargas e Winston Churchill. Na Terra da Rainha como em São Borja, são tratados como relíquias e viraram peças de museu. Em diferentes países do mundo, os guarda-chuvas aqui produzidos transmitem-se através das gerações na condição de finas joias de artesania.

Faz 40 anos que Guilherme Baden-Baden, o químico de Passo dos Ausentes, não sai à rua sem carregar o enorme Morcego Negro, espécie de capacete protetor que se afeiçoou a ele como se fosse a extensão de seu esquerdo braço.

Homem pequeno, Baden-Baden quase desaparece sob o para-sol (outro nome do objeto pluvioso). Enquanto estiver com o guarda-chuva aberto, afirma ele, nada de ruim poderá lhe acontecer. Não se trata de vã filosofia, diz o sábio:

- É uma intuição ancestral, uma maneira de ver e sentir a existência.

Nunca ninguém, em qualquer tempo, foi abandonado por um guarda-chuva. O contrário, porém, é muito comum.

Uma das grandes invenções da humanidade, cuja origem se perde na noite dos séculos, o guarda-chuva é, ao lado do cão e dos diários das moças, o melhor amigo do homem.

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Fotos: 1) Oscar Wilde com seu casaco favorito, 1882. Autor: Napoleon Sarony. Fonte: Wikipédia. 2) Guarda-chuva nos jardins da Praça da Ausência. Autor: J. Finatto.
Texto revisto, publicado em 18 de abril, 2011.
Leia também, sobre Oscar Wilde e o beijo proibido:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/06/oscar-wilde-e-o-beijo-proibido.html

sexta-feira, 15 de abril de 2011

O peixe da boca vermelha

Jorge Adelar Finatto
photos: j.finatto

photo: j.finatto


A caminhada polifônica destina-se não apenas ao exercício do corpo como à indispensável atenção às coisas do espírito.

A observação dos seres vivos e da paisagem, a aproximação estética e sensorial da mãe natureza, a respiração do ar limpo e fresco das manhãs (ou tardes), a descoberta de inefáveis epifanias durante o percurso, tudo isso faz parte da polifonia andante.



Andava eu nas cercanias do Lago da Neblina, em Passo dos Ausentes, prevenido com a invencível Coruja, a vetusta máquina fotográfica que me acompanha. Os gansos desistiram de acusar a minha presença. Sabem que sou apenas um caminhante que está só de passagem, um sujeito inofensivo, que anda a bordo de um chapéu de palha branco, com grossas e estapafúrdias lentes nos óculos, catando o invisível.


Um indivíduo assim não oferece risco à fauna e à flora, quiçá a si mesmo.


Nas margens e dentro do lago existe vida pulsante. Estava eu olhando o vazio (essa maneira de encontrar, talvez, o inesperado) quando ouvi um vago rumor na água.



Foi quando me apareceu o amigo (ou amiga) dessas fotos.



Um peixe branco, a boca pintada de vermelho, com traços coloridos espalhados pelo corpo, cerca de 1 metro de comprimento, passou a navegar perto de mim.

Tive a impressão de que sabia da sessão de fotos, ao menos não poupou poses e movimentos. Chegou-se mais para a beira, mas não tão próximo que não pudesse ativar um plano emergencial de fuga caso isso fosse necessário. Não foi.



O peixe da boca vermelha quis dizer alguma coisa com sua presença, e acho que conseguiu. Encheu de beleza a tarde e o meu coração.



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Fotos: J. Finatto
Texto publicado em 25 de janeiro, 2011.

Among maple trees

Jorge Adelar Finatto


Among maple trees
and butterflies
the boy plays

against the street misery
and the family tragedy
he grows up

for a moment
at the world's dawn
the boy spins

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Poem from the book O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
Foto: Photo: J. Finatto

quarta-feira, 13 de abril de 2011

O espantalho no milharal

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Se parar de escrever na casa do labirinto, na difícil procura de claridade, se o silêncio e a solidão crescerem ao meu redor como um vasto milharal, habitado por estranho espantalho vestido de negro, com grossas lentes nos óculos que não ampliam a progressiva e asfixiante pequenez das coisas, esse tal que desistiu do ofício de espantar, sendo ele próprio o contumaz espantado, no oblíquo território do mundo, se os amigos esquecerem de me visitar nas noites de inverno, se algum pássaro soltar o canto, em maio, no galho da araucária diante da minha janela, se essas palavras servirem, ao menos, para distrair o raro leitor (?) do problema da morte e da inefável falta de sentido da vida, a luta do texto terá valido a pena.

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Foto: J. Finatto. Araucária vista da janela. Passo dos Ausentes.

Entrevista com o economista Cláudio Accurso

Jorge Adelar Finatto

No país desigual que temos, os saberes em
ciências sociais estiveram presentes em sua modelagem ou servem apenas para explicá-lo?


A pergunta de Cláudio Accurso nos dá uma ideia do percuciente caminho que percorreu na elaboração de Aportes de Desenvolvimento Econômico*, sua mais recente obra. Economista e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ex-assessor das Nações Unidas em missões na América Latina, Accurso não se limita ao domínio exemplar da técnica. Vai muito além, a bordo do substrato humanista que impregna o saber científico. Leva-nos a pensar com sentimento, provando, uma vez mais, que não existe sabedoria longe do coração. Fizemos ao ilustre professor algumas perguntas, tentando entender melhor as coisas da economia.

O que podemos esperar da economia, no Brasil e no mundo, em 2011?

No mundo, a Europa e os Estados Unidos estão em momento de lento crescimento, com desemprego ainda alto, tentando recuperar-se da crise de 2008 e encontrar novos caminhos para enfrentar o despontar de centros de grande vigor econômico como China e mesmo Índia.

No Brasil, a economia vive um bom momento com um crescimento bastante ativo, com o emprego em alta, com a inflação sob controle e com um governo pilotado por quem conhece muito bem o assunto. Isso tudo oferece uma conjuntura favorável, especialmente se continuarmos a praticar uma desconcentração de renda como nos últimos anos, que tire o Brasil da vergonhosa condição de, com exceção de dois países, ser o mais concentrado do mundo. Se seguirmos, as tensões sociais diminuem e melhora a convivência para todos. Estou otimista.

Qual a orientação que nós, cidadãos comuns e leigos em economia, podemos seguir para fazer frente às dificuldades da economia mundial?

No plano individual, a precaução é sempre prudente em termos de consumo e poupança, embora o quadro esteja favorecendo os investimentos, em que se destaca o imobiliário, diante das facilidades creditícias. É um bom momento. Nossa vigilância, contudo, se transfere do indivíduo para o cidadão, cujas responsabilidades se traduzem na vigilância por políticas convenientes, justas, efetivas, limpas, de modo a serem mantidos ambientes agradáveis, apesar das diferenças e distâncias.

Nossas decepções políticas vêm em grande parte de nossa pouca vigilância e nenhuma militância, deixando aos “outros” que façam por nós. Nossa defesa das conjunturas mundiais se dá no plano das políticas, daí nossa vigilância e questionamentos de cidadãos. Não dá para eximir-se e querer que tudo ande ao nosso gosto. Quem muda o mundo são os interesses, nem sempre os nossos.

Quem dita as regras da economia hoje no mundo?

A economia mundial tem no centro os EE.UU. como potência econômica e militar. Porém atualmente esse centro se configura compartido com a Europa, como bloco único, e com a China em rápida expansão. Mais dez anos, ela iguala o PIB (soma de todos os bens e serviços) americano. Grandes tensões surgirão dessa tripartite, porém sem saídas bélicas. As redes empresariais, antes nacionais, se internacionalizaram com a globalização, derramando e interpenetrando os mesmos interesses por todos os territórios, de modo que toda ação militar termina sendo contra si mesmo.

Hoje, só se faz investida militar onde não há empresas internacionais, porque ninguém bombardearia dependências que são suas. Guerra só em áreas não hegemônicas. Outrossim, todos os bilhões de dólares dos excedentes chineses estão sendo usados para organização de vínculos (empresas próprias, associadas ou assistidas por suas importações e exportações) nas diversas partes do mundo, de modo que todos convirjam para o mundo dos negócios comuns. A concorrência e as disputas se tornaram dialeticamente convergentes e uníssonas, confinando os confrontos ao plano das empresas, não mais das nações.

A globalização parece ser a síntese das contradições nacionais, criando uma nova tese, qual seja, a da concorrência apenas privada. As regras, assim, virão desse novo núcleo hegemônico ainda em formação, embora alguns emergentes como Índia, Rússia, talvez Coreia e Brasil, possam gravitar com alguma influência. Preparemo-nos para governos transnacionais...

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* Obra publicada pela Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2010, e lançada na Feira do Livro de Porto Alegre do ano passado.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

O livro na praça

Helena Jobim

Helena Jobim

Vim para Porto Alegre a convite, participar da Feira do Livro. E aqui estou, nessa terra generosa, terra de meu pai Jorge Jobim. Tornei-me filha de três cidades, e assim posso dizer que sou carioca, belo-horizontina (recebi o título com muita honra) e porto-alegrense. A Feira é uma beleza. Ocupa toda a Praça da Alfândega, onde grandes barracas brancas oferecem livros de todo o tipo. Algumas têm o teto transparente, e é muito bonito ver os jacarandás floridos enfeitarem os tetos com suas pétalas roxas.

Assim que cheguei à Feira, deparei-me com uma grande estátua do General Osório, montado a cavalo. No pedestal de pedra, uma inscrição gravada. Chamou-me muito a atenção. Tomei nota: "O dia mais feliz da minha vida seria aquele em que me dessem a notícia de que os povos civilizados comemorariam a sua confraternização queimando seus arsenais". Vem a calhar para a hora difícil que vivemos.

A Feira é uma grande festa invadindo a praça, com suas árvores antigas, gigantescas, de troncos retorcidos pelo tempo, verdadeiras esculturas. Essa paisagem, de largas sombras e bancos para descanso, sugere a leitura. O ambiente combina com reflexão e cultura. Sabiás e pardais cantam ocultos nas copas de folhagens espessas, como um pano de fundo construído de sons que nos remetem a dias felizes.

Esta é a 47ª Feira do Livro de Porto Alegre. Chegou o sol e o calor e havia tanta gente pelos largos corredores entre as barracas, que tínhamos de andar devagar, parando a cada instante para examinar os livros. Vontade de comprar tudo. Os homenageados desse evento estavam bem representados em bronze, lado a lado. Carlos Drummond de Andrade, de pé, segurando um livro como se o lesse. E bem junto dele, sentado, Mario Quintana olhava-o, absorto. Tirei retratos junto às estátuas desses dois grandes poetas, pensando em colocar depois as fotos enfeitando meu escritório.

E como foi proveitoso estar com artistas mexicanos! Escritores, roteiristas, editores. Chegavam em comitivas alegres e coloridas, representando o seu país, também homenageado este ano na Feira. Sons e imagens que nos aproximam definitivamente.

Depois de muito andar, palestrar (junto com meu amigo e poeta Jorge Finatto) e autografar "Recados da Lua", atravessei a rua e sentei-me no pequeno Café Antigo, dos anos 30, perfeitamente conservado. E nesse ambiente calmo, de frente para a praça, me dei conta de como é importante para mim o ofício de escrever.

Lá estava eu, testemunha deste importante evento, de lápis e papel na mão, registrando minhas impressões. Dentro de mim vibrava a grande festa do artista, irmanada com as pessoas mais simples que observava folheando livros de todos os tipos, de todas as cores. Poucas vezes na vida um escritor pode saborear tão de perto a avidez do leitor pelo livro, a ponto de me fazer esperançosa em prosseguir na luta com o papel em branco, na busca da sensibilidade, na entrega total aos meus leitores. E me lembro de novo de Cecília Meireles: "Eu canto porque o instante existe/ e a minha vida está completa./ Não sou alegre nem sou triste:/ sou poeta".

Quero hoje agradecer especialmente aos e-mails de Clara e Fred. Suas palavras ajudaram-me também a acreditar na palavra escrita, como forma de melhorar o mundo.

Para se pensar:

                         A vida era por um momento.
                         Não era dada. Era emprestada.
                         Tudo é testamento.

                                   Antonio Carlos Jobim


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Helena Jobim é escritora, autora, entre outros, de Antonio Carlos Jobim, Um Homem Iluminado (Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1996), Trilogia do Assombro (Editora Nova Fronteira, 1998) e Pressinto os Anjos que Me Perseguem (Editora Record, Rio de Janeiro, 2000).

Esta crônica foi escrita por Helena durante sua passagem por Porto Alegre, na Feira do Livro de 2001. Agradeço à querida escritora e amiga a autorização para publicação do texto.
  
Fotos: 1) Helena Jobim. Fonte: livro Antonio Carlos Jobim, Um Homem Iluminado. 2) Helena e o irmão Tom Jobim em 1945. Fonte: site oficial do Instituto Antonio Carlos Jobim: http://www.jobim.org/

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Caminhando na beira do rio

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto (Guaíba, o rio)


O que fazer numa tarde como essa? Azul e fresca, presente transparente do outono. A pergunta pode soar insolente a milhões de homens e mulheres que, em todo o mundo, a esta hora, estão trancados em obscuros ambientes de trabalho.

Vivemos em prisões boa parte da vida. Quando percebemos, passaram-se 30 anos sem nenhuma tarde livre de outono, sem sonhos realizados, sem perspectiva de algo melhor. A vida se resume a ganhar o pão honestamente, ser útil cidadão de bem, o que já não é pouco, mas não é tudo.

As nossas coisas interiores podem esperar, e sempre esperam. Até que um dia o coração amanhece frio. Não reconhecemos aquele rosto no fundo do espelho.

Por isso é bom ter um plano de fuga para executar numa tarde assim. Fugir pelo bordado amarelo do sol no espaço anilado.

Por um momento, esqueço o mundo diante da visão consoladora dos barcos, dos pássaros e do rio.

Fique então registrado, nos alfarrábios da eternidade, que, nesse dia de abril, no sul longínquo do Brasil, um homem parou o tempo para caminhar na beira do Guaíba, sob a concha do céu, e se sentiu vivo. Assim seja.

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Foto: J. Finatto