segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Ao que parte

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

Um pedaço de ti rompe a neblina.
                                         Carlos Drummond de Andrade 

Quem te acolherá
na distante cidade
que agora dorme
emoldurada
sob antigas luzes
abandonada
em si mesma?

atravessas o Atlântico
e gotas do mar
grande mar da diáspora
enchem teus olhos

quem tocará tua face
quando lá chegares
insone e áspero
no meio da ventania?

na cidade estrangeira
haverá alguém
esperando
em solidária vigília?

dói a memória
dos que partiram
e partindo perderam-se
no sombrio traçado
de um mapa rasgado

és palavra
na tenebrosa
escuridão
que te cerca


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Do livro Memorial da vida breve, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O prisioneiro da Ilha de Patmos

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

A família espiritual de A eram os livros. Os poucos que havia na casa quando ainda era menino e depois os outros, que foi amealhando feito formiga, um a um, com tenacidade e alumbramento.

A família dos livros tinha uma vantagem. Nenhum de seus membros morria ou desaparecia, o que acontecia com alguma frequência com os outros familiares.

Os livros retirados das bibliotecas por empréstimo eram parentes distantes. Traziam a aura de quem passou por muitas casas, iluminando solidões diurnas e noturnas. Guardavam o cheiro misturado dos ambientes que tinham frequentado.

Na casa antiga, havia muitos silêncios. Vultos moviam-se calados. Um relógio velho de parede tentava acompanhar a passagem do tempo, mas nele as horas tinham enlouquecido.

O mundo de papel e tinta surgiu para espantar os fantasmas que o amedrontavam. Sabia que, mais dia, menos dia, acabaria só, como todos.

Uma espécie de eternidade habitava os livros.

Havia um gato na casa, porque gatos gostam de histórias assombradas. No porão gelado e sombrio, coisas inúteis eram esquecidas.

Um retrato de Getúlio Vargas ocupava o centro da parede da sala, o pai dos pobres, como se dizia.

A janela do quarto de dormir olhava o nada.

A rua se chamava São João, nome do apóstolo que teve as visões na Ilha de Patmos, no mar Egeu, onde esteve exilado por falar de Deus e dar testemunho de Jesus, e na qual escreveu o livro bíblico Apocalipse (Revelação).

A rua São João era a Ilha de Patmos. Ali todos eram prisioneiros de um tempo e de um lugar e o destino lhes era comum: afundar no esquecimento.

Exilados do mundo, todos alimentavam o sonho secreto de um dia fugir. Fugir para sempre, para qualquer lugar, ainda que fosse o último ato da vida.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Manhã pulsando no breu

Jorge Adelar Finatto




O que é um escritor sem leitor?

Poucas coisas são tão solitárias quanto o ofício de escrever. O processo todo acontece a capela. Não há testemunhas dessa luta. É um trabalho que se faz em silêncio, com persistência e recolhimento.

O ato de escrever encerra uma grande incerteza: haverá ou não leitor do outro lado. O esforço poderá dar em nada.

Existe cada vez mais gente escrevendo e publicando. Publica-se hoje como nunca. Além da publicação em papel, temos agora o ambiente virtual.

A abundante oferta de textos faz com que o leitor se torne um artigo de luxo.

Nenhum autor tem paciência de esperar pela posteridade. A procura de reconhecimento, por parte de quem escreve, é natural como em qualquer outra atividade.

O escritor vivo tem de lutar por um lugar ao sol, não apenas entre os contemporâneos, como entre uma infinidade de autores mortos.

Há aqui uma visível desproporção. Se por um lado existe uma legião de escritores, por outro, entre os leitores, só podemos contar com os vivos...

A luta do escritor começa na ideação e vai até a produção do texto, com todas as circunstâncias e incertezas que cercam o ato de criar. Mas não se esgota aí. Quando, enfim, consegue mostrar o resultado, resta saber se o trabalho contará com a atenção do sempre difícil, exigente, esquivo, disputado e raro leitor.

Uma possível resposta à pergunta inicial: um escritor sem leitor é um músico tocando para uma sala escura e sem ninguém.

Manhã pulsando no breu.

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photo: j. finatto

domingo, 23 de outubro de 2011

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Puyehue manda notícias

Jorge Adelar Finatto

photos: j.finatto

O nome parece de personagem de desenho animado, mas é de um vulcão. Nos últimos tempos, o chileno Puyehue (tem que pronunciar com calma pra não enrolar a língua) deu pra ferver, grunhir, bufar e expelir fogo, rochas, gases e cinzas, mercê das intensas atividades intestinas que o acometem (problemas digestivos, possivelmente). 

Na segunda-feira (17/10), interrompi a lida no escritório, no meio da tarde, para observar o Vale do Olhar. É um suave descanso que ameniza o peso e a solidão da faina. Fiquei surpreso ao ver uma claridade opaca que vinha do céu e se espalhava sobre as montanhas.


Uma espécie de cerração tomou conta do espaço, mas não era nevoeiro. Dali a pouco, os telhados e ruas se cobriam com cinzas.

As condições atmosféricas peculiaríssimas de Passo dos Ausentes fazem deste lugar um território à parte no mundo. Às vezes, neva em pleno verão. Dias de primavera costumam florescer no inverno. Isso sem falar da bruma espessa e persistente, que definiu, aliás, o gentílico de quem nasce aqui: Neblinense.

Ainda sem saber do que se tratava, resolvi fotografar o evento nubiloso. O resultado são estas imagens. Mais tarde, levei as fotos até o Café da Ausência, na estação de trem abandonada da cidade, para mostrar aos amigos durante o nosso  costumeiro cappuccino com graspa, de fim de tarde.


Palomar Boavista, astrônomo e pesquisador de fatos do clima, esclareceu a todos que aquilo eram nuvens de cinza que nos visitavam, provenientes do vulcão chileno, após voar milhares de quilômetros, conforme a direção dos ventos.

As nuvens de cinza agora começam a se dissipar, mas não totalmente. Sonhamos com a chuva para nos valer, limpando a atmosfera. Queremos de volta a boa e poética neblina molhada.

Ultimamente, sentimos gosto de cinza até na alma.


quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Somos os que estão por aí

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


O mundo é um hospício sem muro. Estão todos soltos. A loucura é herança bem dividida entre os humanos. As partilhas registradas nos cartórios do existir.

A pessoa precisa ter reservas de luz pra suportar tanta escuridão.

Somos os que estão por aí. Os por enquanto. A gente mói e é moído. O que acha? O moinho triste da vida. Tem vivente que passa a existência sem receber um afago, um ora-veja. Os que. Pra eles não existe vem-cá-meu-bem-me-dá-cá-um-beijinho. Só pedras, perdas.

Os esquecidos jazem no fundão. O mundo não presta atenção nos sem-afeto. Os outros, a turma dos contentes, dos bem amados, quando muito vivem pra si. Os que se acham. As almas leves. Corações secos.

O moinho pesado gira no esconso. Caminho de sombras.

Às vezes um resolve resilir o contrato com o eterno. Quase ninguém nota o último ato do infeliz. Nenhuma flor se colhe em sua difícil memória. Nenhum pensamento, nenhuma ternura. As indiferenças. Os giros insensíveis da roda de fazer pó e esquecimento.

Assim se afunda o coração dos bonecos de vetríloco.

Viver são uns suspiros, uns carinhos desaparecidos.

Alguns poucos levam a lanterna na mão. Esses, ao menos, ainda choram, se comovem, não se conformam, lutam, amam. Fazem os caminhos. Por eles a aurora tece os fios rosados da manhã.

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photo: j.finatto
Texto revisto, publicado antes em 13 de abril, 2010.

 

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A alma não é casa de assombração

Jorge Adelar Finatto



Se encontro um fantasma querendo se acomodar, num dia ventoso, um travo de ausência de mim mesmo no ar, como hoje, começo a escrever e expulso o intruso. Sai pra lá, longe de mim, coisa sombria.

Os gelos eternos da solidão humana. A frase me vem a propósito das mil coisas a que a sobrevivência nos obriga. É um ofício medonho e insano. 

Quando menos esperamos, lá está o fantasma no ambiente de trabalho. Outras vezes, em casa, ou em ambos. Aparece sentado no escritório ou na mesa de jantar; com a mão na cintura, surge de pé, na curva da escada; exibicionista, pendura-se no lustre. E tem esses que vão entrando pela casa, pelo telefone ou pelo computador, sem pedir licença, trazendo más notícias ou simplesmente sendo desagradáveis.

Os fantasmas também costumam esconder-se nos armários, gavetas, corredores, sótãos. Embrenham-se nas velhas anotações, gostam de habitar antigos retratos, remexem cartas esquecidas, cadernos extraviados.

Às vezes um grupo joga cartas dentro do guarda-roupa. E dizem o tempo todo: não haverá beleza, nem sossego, nem alegria. Se deixar, eles ficam morando na casa e no coração da gente.

A luta contra os fantasmas é uma luta de ganhar ou afundar na melancolia.

Nem todo fantasma é mau, claro. Como em tudo, há exceções. Alguns são inofensivos e até meigos. Heitor dos Crepúsculos e Arquibaldo Van Der Brook, por exemplo, me visitam, tomam café comigo, saímos a caminhar pelas ruas estreitas de Passo dos Ausentes. Mas são visitantes que chegam e depois vão-se embora.

Os fantasmas se alimentam do nosso medo e da nossa tristeza. Mas as manhãs expulsam a escuridão. Essa é a hora sagrada de fazê-los desaparecer e não permitir que andem ao nosso lado.

A alma não é casa de assombração.

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photo: j.finatto. Vale do Quilombo, Canela, Rio Grande do Sul.