quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Vestígios de vida no planeta Terra

Jorge Adelar Finatto


Curiosity. Imagem: Nasa tv


Curiosity, o simpático veículo-robô que parece carrinho de brinquedo, percorrerá durante dois anos o solo de Marte atrás de vestígios de vida naquele planeta. A geringonça da NASA chegou lá na última segunda-feira, 06 de agosto, às 02h32min (hora de Brasília), provocando euforia e alívio entre os responsáveis pelo projeto.

Os cientistas da agência espacial norte-americana têm motivo para alegrar-se. Afinal, Curiosity é o primeiro laboratório de ciência móvel instalado em outro planeta. Ele aterrissou ao sul de Marte, perto do sopé de uma montanha, no interior da cratera de Gale, depois de viajar cerca de 570 milhões de quilômetros desde a Terra até o Planeta Vermelho. A viagem iniciou em 26 de novembro de 2011.

Sou, contudo, mais ambicioso. Ficaria bem mais feliz se uma estrovenga como essa saísse pelo nosso planeta à procura de vestígios de vida aqui mesmo, nas nossas cidades, campos, florestas, rios, lagos, oceanos e ares da Terra

A coisa devia sair por aí salvando as vidas que encontrasse pelo caminho, começando pela vida humana, tão malbaratada, sem esquecer das plantas e animais, seres, como nós, em risco de extermínio.

A esta coisa poderíamos dar o nome Humanity, ou simplesmente Gente, em bom e claro português.

Com a missão de preservar e salvar vidas, todos os esforços seriam empregados em resgatar os famintos de comida e de afeto, os consumidos na humilhação e no abandono, os sobreviventes da criminalidade e das guerras, os que não capitularam diante da corrupção que esfola os pobres para dar aos ricos (prática tão em voga no Brasil).

As pessoas assim salvas teriam, pra começar, direito a uma noite de sono bom, numa cama limpa e segura, com a fome saciada e a certeza de um novo amanhecer neste Planeta Azul, tão escasso de alegria e esperança, com a promessa de ter, daí em diante, uma vida digna.
 

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O impossível voo de Francisco Orange, neto de Francisca Hände von Guter Geburt, parteira, viúva e vidente, em direção a Lisboa, de onde nunca mais voltou nem mandou notícias

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto. Última imagem do balão Terra dos Ausentes


O nome é misterioso e distante como os pensamentos do personagem desta insólita história: Francisco Orange Junge Mit Flügeln dos Santos Passos. Era um dos loucos da cidade.

Em Passo dos Ausentes, a palavra louco foi expulsa dos dicionários. Não é pronunciada em respeito a ilustres antepassados e a alguns dos atuais habitantes. Para o Dr. Fredolino Lancaster, médico, 92 anos,

- A expressão deve ser evitada. As palavras têm fio, são capazes de rasgar mesmo tecidos mais rijos, reabrem velhas feridas. Chamar alguém de doido, em Passo dos Ausentes, é rematada indelicadeza, uma leviana redução do outro.

- Digamos que temos aqui temperamentos sensíveis, insondáveis, determinados, brilhantes às vezes, herança de séculos de isolamento neste lugar.

- O oblívio e a solidão produzem seus frutos.

Francisco Orange passou a infância calado, morando com a avó no Sobrado dos Espelhos. Como se recusasse a conviver com outras pessoas, aprendeu a ler, escrever e fazer contas em casa. A adolescência encontrou-o fazendo projetos e construindo coisas que voam. Primeiro foram as pandorgas, as maiores e mais bonitas que iluminaram o céu da cidade.

Depois vieram as minúsculas e coloridas borboletas de papel de seda. No início de maio, costumava jogá-las do alto da torre do relógio, em número tal que se espalhavam um pouco por toda a cidade.

Nefelindo Acquaviva, construtor de aeroplanos, dirigíveis e balões de fundo de quintal, com vários desastres no currículo, convidou o jovem para aprender a arte da navegação pelo ar. Daí em diante iniciou-se uma longa parceria entre o rapaz incomunicável e o mentor doidivanas. Vários aparelhos foram construídos pelos dois. Pilotados por Acquaviva, todos vieram ao chão, sendo um mistério que a morte não o tenha colhido depois das quedas.

Aos vinte anos, Francisco Orange construiu um primeiro e pequeno dirigível, que deixou o mestre orgulhoso. Com a geringonça, aventurou-se aos ares até desaparecer nas alturas e lonjuras das montanhas azuis dos Campos de Cima do Esquecimento no frio de julho. Não retornou. Uma expedição de busca foi organizada na Sociedade Histórica, Geográfica, Filosófica, Literária, Musical, Geológica, Astronômica e Antropológica de Passo dos Ausentes, por iniciativa de seu presidente, o filósofo Don Sigofredo de Alcantis.

A expedição encontrou o navegante dez dias depois, no Contraforte dos Capuchinhos, magro, esquálido, enrodilhado no alto de ciprestes, a poucos metros de um penhasco. O arvorista Guilherme Tadeus Baum salvou-o, utilizando um complicado sistema de cordas e polias, momentos antes do dirigível afundar no abismo.

Acostumado a terríveis desastres com suas estrovengas voadoras, Acquaviva sentiu orgulho mais uma vez do discípulo.

- É o modo que ele encontrou de ser feliz, quer ficar mais perto dos anjos talvez. Deixem o Francisco em paz. Deus sabe o que faz. Ele tem a proteção de São Francisco. Nasceu com duas asinhas azuis sobre os ombros. Sempre soube que o menino ia voar um dia - disse a octogenária Francisca Hände von Guter Geburt, parteira, viúva e vidente, que criou o neto na ausência dos pais. 

Juan Niebla, músico cego, tocador de bandoneón na estação de trem abandonada, observador atento das histórias da cidade, relata o último voo de Francisco Orange.

- Era uma manhã de novembro de 1975, os ventos de finados andavam loucos por aí. Francisco Orange tinha então 25 anos, batizou o balão de Terra dos Ausentes. Disse que ia embora para Portugal, de onde viera o trisavô materno. De nada adiantaram os apelos da avó e dos vizinhos. Decolou do quintal ao lado do galpão de Acquaviva, sumiu em direção ao litoral. Não mais se soube dele até o dia em que o nosso astrônomo, Palomar Boavista, pesquisando na Biblioteca Pública de Porto Alegre, deparou-se com aquela notícia do Correio do Povo, gerada pela France-Presse.

- A foto de um balão amarelo caído no Terreiro do Paço, em Lisboa, à margem do Tejo, com aquele homem magro, vestindo mastigada roupa preta, com barba abundante e olhos fundos, não deixava dúvida. Ali estava o jovem com asas de Passo dos Ausentes. O aparelho - o que restou dele - foi recolhido pelas autoridades. O insólito viajante teve de explicar-se.

- No dia em que partiu de Passo dos Ausentes, os tristes ventos de novembro o empurraram rapidamente para o Oceano Atlântico. Doze dias depois uma tempestade o derrubou em Cabo Verde. Sobreviveu por milagre. Com o auxílio da marinha daquele país, após um ano de trabalho consertou a nave e levantou âncora. Cinco dias mais tarde, foi colhido pelo mau tempo em pleno deserto do Saara, no sul do Marrocos, vindo a cair outra vez. Ajudado por beduínos, sobreviveu de novo. Ficou dois anos no deserto com aquela tribo até levantar voo para Portugal.

- As pessoas do deserto foram as melhores que conheci na vida, declarou. Não se sentia tão só entre elas. Não sabia o que seria feito de sua vida. O informe terminou aí.

- A esperança de que Francisco Orange volte um dia para casa com seu solitário balão vai se dissipando com o passar dos anos. Nunca mais tivemos notícia do nosso menino com asas.


domingo, 5 de agosto de 2012

A rua antiga me atravessa

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto.Colonia del Sacramento, Uruguai


A vida se esconde na rua antiga.
A saudade mora aqui desde muito antes do mundo ser inventado.
Os passos dos habitantes se ouvem na longínqua estrela.
Quem nos vê, quem nos vale nesse labirinto?
A vida inteira no postigo.
Tantas coisas eu sonho.
Tantas coisas eu sinto.
As pedras da rua antiga são diamantes do oblívio.
O tempo nela escorre feito lágrima.
Ninguém vê essa cicatriz aberta na face do planeta.
Calado observador do fim do mundo.
A rua antiga me atravessa.


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Texto publicado em 28 de maio, 2011.

sábado, 4 de agosto de 2012

Cais

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


Tem dias em que saímos
com o corpo nu
para alojá-lo na primeira copa de árvore
e chorar longe dos homens

dias em que os desejos
até os mais secretos
sucumbem apagados
na penumbra

tempo de total privação
da carne e do sonho
tardes em silêncio reveladas
intervalo entre dois mundos

olhamos o céu
no quadrado da janela
esperando ver a face de Deus
procuramos Deus
no íntimo da alma e das coisas
precisamos repousar no colo de Deus
sentir suas mãos nos olhos
para amparar a lágrima quente
que por ali verte

tem dias em que estranhamos
o próprio olhar
que amanheceu mais seco
não reconhecemos a rua
onde tantas vezes inventamos o amor
na sombra dos cinamomos

as melhores viagens
ficaram sonhando no cais
enquanto navios partiam
repletos de homens decididos
em busca de cidades felizes

onde andará o menino
que nos visitava nos dias
em que tudo em volta
parecia desabar?

em que gare deserta
perdeu-se o guarda-chuva melancólico
com que meu avô ia à cidade
buscar a porção diária de pão
esperança
e jornal?

tem manhãs em que apesar do sol
não habitamos o claro sentido
de existir
mal percebemos a luz
acalentando o corpo

manhãs em que o carteiro
extravia a carta que irá nos salvar
a notícia tão esperada
que nos revelará
um mundo desconhecido
onde pandorgas falam
e o arco-íris é uma escada
que nos retira do poço

não compreendemos
as mãos cansadas
a boca amarga
com que damos bom-dia aos vizinhos
cumprimentamos os superiores

tem dias em que o isolamento
é tão assombroso
que sentimos tristeza em tudo
principalmente na alegria ingênua
das velhas fotografias
uma dor inevitável
diante dos sonhos da infância

dormimos em quartos de aluguel
projetamos ataúdes de aluguel
as dívidas invadem a porta
os poros

o amanhã ficou torto
na cordilheira dos dias
sem luz

a cidade parou no escuro
sufocou nossos melhores anos
inundou o rio
com seus maus óleos
seu excremento

não merece um verso
sequer uma notícia fugidia
em página de jornal

talvez careça uma bomba
um terremoto
talvez uma flor
povoando o asfalto

estamos um pouco mais tristes
e calados
(um pouso só)

trazemos um gosto de sol
entre os dentes
um resíduo de primavera
na palma da mão
uma promessa de encontro
nos olhos

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Do livro O Fazedor de Auroras, Jorge A. Finatto, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
photo: Cais de Porto Alegre, j.finatto

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Mario Quintana, 106 anos

Jorge Adelar Finatto

photo: Moacir Gomes, 1966

Ser poeta é uma maneira de ser e não de escrever. O leitor de poemas é um poeta sem saber.¹
Mario Quintana

Atravessei o corredor que ligava a redação da Folha da Tarde com a do Correio do Povo, os dois jornais da Companhia Jornalística Caldas Júnior, hoje extinta. Contornei o vetusto elevador, cuja porta se abria que nem uma sanfona metálica, entrei no Correio em busca do meu entrevistado. Devia ser 3 da tarde, ele ainda não tinha chegado. A mesa do poeta estava coberta de livros, revistas, jornais, cartas. Em 1982 eu era um jovem repórter da Folha.

No alto da parede, à direita da ampla sala, a foto ampliada (acima) que eternizou o encontro daquele grupo de escritores, em 1966, na cobertura cultivada com plantas e pássaros do cronista Rubem Braga, no Rio de Janeiro. Da esquerda para a direita: Drummond, Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira, Quintana e Paulo Mendes Campos.

Enquanto aguardava Mario Quintana, conversei com o jornalista Paulo Fontoura Gastal, outro notável daquela redação. O Correio da época era dos melhores jornais que havia no Brasil. A edição dominical (a principal da semana) muitas vezes superava em qualidade jornais do centro do país, como Jornal do Brasil, O Globo, Folha de São Paulo e Estadão. 

Quintana viveu a maior parte da vida em quartos de hotel, o mais lembrado deles Hotel Majestic (depois transformado na atual Casa de Cultura Mario Quintana), na Rua da Praia, não distante do portão do cais de Porto Alegre. Ele era um caminhante contumaz da cidade velha, junto ao Guaíba. Sempre me pareceu que andava como um veleiro no rio, a cabeça levemente erguida, olhar alheio ao movimento, deslizava calmamente, parecendo flutuar.

Naquele nevoeiro
Profundo profundo...
Amigo ou amiga,
Quem é que me espera?²

Nasceu em Alegrete em 30 de julho de 1906, há 106 anos, e morreu em 05 de maio de 1994, em Porto Alegre. É uma das principais vozes da poesia brasileira e um dos importantes tradutores que tivemos. Pela Editora Globo, verteu para o português obras do inglês e do francês, de autores como Marcel Proust, Virginia Woolf, Aldous Huxley, Honoré de Balzac, Voltaire, Guy de Maupassant, Somerset Maugham, entre outros.

O poeta chegou à redação trazendo a sacola que costumava carregar naquele tempo. Sentou-se e pediu-me que lesse as perguntas, cinco ou seis, que tinha feito. Pegou a anotação e começou a responder por escrito, à mão, solícito e bem-humorado, enquanto conversávamos. Com as respostas, voltei para a Folha e fiz a matéria. Infelizmente, tempos depois extraviei o manuscrito.

Em certas tardes perdidas, no café do jornal, vi Mario Quintana sentado diante da indefectível taça de café preto, com o quindim amarelo no pires. Lia alguma coisa, livro ou jornal, ou simplesmente olhava para algum ponto indefinido, caminhando dentro de si mesmo. Nunca me atrevi a interrompê-lo naqueles momentos, que podiam durar uma hora, às vezes mais.

Não tinha pressa de viver nem de escrever. Vivia, escrevia. O primeiro livro, A rua dos Cataventos, veio a lume em 1940, revelando um poeta senhor do ofício. O tempo foi seu aliado e concedeu-lhe numerosos dias para construir a rica obra que deixou.

Uma vez disse: O proletário é um sujeito explorado financeiramente pelos patrões e literariamente pelos poetas engajados. Achava que se um poeta quisesse mudar o mundo deveria candidatar-se a um cargo público, ao invés de escrever versos que os mais pobres não leriam por falta de tempo ou por não saber ler. É verdade que Castro Alves influiu na abolição da escravatura. Mas acontece que Castro Alves era genial e nós temos apenas algum talento

Um homem que viveu em estado de poesia, um hóspede solitário a vagar pelas ruas de Porto Alegre, cidade que tanto amou. Inquilino do mistério, a simples presença de Quintana, entre nós, foi um acontecimento luminoso. Um ser raro, desses que aparecem de vez em quando para nos fazer encontrar e sentir um pouco de beleza.

Não constituiu uma família tradicional, com mulher e filhos, viveu só. No entanto, conquistou uma numerosa e cálida família entre seus leitores e amigos. Nos últimos 20 anos de existência, foi celebrado como grande poeta no Rio Grande do Sul e no Brasil. Teve a merecida ventura de ser reconhecido em vida.

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¹ Entrevista concedida a Vitor Edézio Borges, jornal MJ, da PUC/RS, em 1978.
² Primeiros versos do poema O cais, do livro O aprendiz de feiticeiro, incluído na antologia Poesias, Editora Globo, Porto Alegre, 1977.
³ Entrevista a Geneton Moraes Neto, publicada no caderno Ideias do Jornal do Brasil, em 30 de julho de 1988.

sábado, 28 de julho de 2012

A pátria da língua portuguesa

Jorge Adelar Finatto

Fernando Pessoa nos azulejos do Martinho da Arcada*. photo. j.finatto


Após um tempo sem falar português, num país distante, quando, enfim, entrei no avião da TAP, de regresso a Lisboa e, horas mais tarde, ao Brasil, disse aos tripulantes, na entrada da aeronave: a nossa pátria é a língua portuguesa.

Aquilo saiu assim, de repente, quase um desabafo, ao reencontrar pessoas que compartilham o mesmo idioma, depois de um período de exílio longe da língua.

Minha pátria é a língua portuguesa. A frase de Fernando Pessoa, do Livro do Desassossego, trecho 259, expressa essa verdade cósmica e sentimental: pertencemos à língua que nos viu nascer, essa que sussurrou aos nossos ouvidos, nos instantes inaugurais da vida, o som das primeiras palavras de acalanto e consolo.


Amanhecer no oceano perto de Lisboa. photo: j.finatto

Os membros da tripulação não se mostraram espantados com o palavroso passageiro, ao contrário, aderiram à minha saudação, talvez levados por um sentimento de saudades de Portugal e do Tejo, naquela tarde fria do norte europeu.

A maternal língua de Camões nos lambe desde o berço, como lambeu Pessoa, Vitorino Nemésio, Eugénio de Andrade, Carlos Drummond, Heitor Saldanha, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Henrique do Valle, entre tantos, da mesma maneira que lambe o vendedor de peixe do mercado público de Porto Alegre, a florista da Praça da Aurora, o homem da banca de jornais.

O português cultivado no Brasil enriqueceu-se dos sons e novos sentidos advindos das falas de origem africana, indígena, espanhola e de todos os povos que vieram ao continente brasileiro.

A língua portuguesa, amarga e doce, nos habita, e com ela tentamos nos comunicar no duro ofício de viver, sonhar e sofrer. Essa pátria nos carrega dentro de si aonde quer que nos levem os ventos oceânicos.

A língua é nosso território espiritual no mundo.

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* Café Restaurante Martinho da Arcada, um dos mais antigos do mundo, em Lisboa. Patrimônio Nacional português. Nele Fernando Pessoa costumava beber, jantar e receber amigos no balcão do café (foto acima) e na sua mesa cativa. O proprietário de então, reza a lenda, amigo a admirador do poeta (pobre), não cobrava as suas despesas. Há no local cópias de manuscritos, de fotografias e outros documentos do poeta. Fica na Praça do Comércio (ou Terreiro do Paço), sob os arcos, quase à margem do Tejo.(Jorge Finatto)


quarta-feira, 25 de julho de 2012

A volta do barco de papel

Jorge Adelar Finatto

barco: j.finatto


Saio a navegar no meu barco de papel pra esquecer o mundo.

Eu, quando quero dar férias à realidade, entro no barco colorido e parto em viagem pelo Guaíba.

Dessa vez reforcei a embarcação. Tomei uma folha de papel mais resistente à intempérie, fixei melhor as dobras. Levantei mais a vela. Na parte interna, coloquei utensílios mais leves.

Um forte vento sul, porém, apanhou o barco no meio do rio. Agitou as águas de tal modo que as ondas começaram a jogar o barco pra cima. O pior era a queda livre na volta. O corpo ficou todo dolorido.

Pra piorar a situação, desabou uma tempestade.

Frágil, o barquinho foi se desmanchando. A vela foi a primeira peça a ruir.

Filipo, o papagaio que me acompanha nas navegações, achou que daquela não escaparíamos.

- Vamos morrer, capitán!

- Tenha fé, nobre Filipo -, disse-lhe eu. Não desanimemos numa hora dessas, amigo. As nuvens más haverão de dissipar-se.

O peixinho Moisés, nosso companheiro de aventuras, nadava aflito ao lado do pequeno veleiro.

Quando o barquinho, enfim, se transformou numa pasta branca de papel, eu respirei fundo antes de afundar no Guaíba.

Mas não era dia de morrer.

A ventania, na sua fúria, nos empurrara pra perto da margem.

Ao cair no rio, a água bateu na altura da cintura. Filipo, que estava encolhido e agarrado no meu esquerdo ombro, gritou animado:

- Conseguimos, capitán!

Moisés respirou aliviado, deu um salto de felicidade e voltou para o interior do rio.

A navegação em barco de papel é uma arte.

Como toda arte, tem sua ciência e seus segredos.

O que é preciso pra navegar desse jeito? Bem pouca coisa.

Uma folha branca, lápis de cor, imaginação e um coração quase feliz.

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Texto publicado em 20 de outubro, 2010.