segunda-feira, 25 de março de 2013

Recuerdo do rio Uruguai

Jorge Adelar Finatto

Rio Uruguai. photo: Wikipédia



 
 
A recordação mais antiga que eu tenho de um rio é do rio Uruguai. Por algum motivo que desconheço, meus avós - com quem vivia - foram morar na cidade de São Borja, na fronteira com a Argentina, quando eu tinha dois anos.
 
O rio Uruguai corria (e corre ainda) largo e murmurante em São Borja, mais unindo que separando o Brasil da Argentina.
 
Recordo que aquela foi a primeira vez que viajei de avião. Tenho a longínqua lembrança de olhar através de uma janela redonda. Estava no colo da avó.

Partimos da Serra para o ancestral território das Missões Jesuítico-Guaranis. São Borja foi um dos povos missioneiros. Moramos por lá cerca de dois anos e depois regressamos às montanhas.

Lembro-me muito vagamente de passeios ao rio, onde as pessoas faziam piqueniques e tomavam banho na praia. Na beira do Uruguai havia conchas e pedras, em meio à areia e vegetação. 
 
Luminosos dias missioneiros, ao menos para o menino que nada sabia de coisa nenhuma. Tenho uma foto de época vestindo pala, bota, chapéu e bombacha. Acho que foi a única vez na vida que usei indumentária de gaúcho (com muito garbo, diga-se de passagem...).

O tempo passa num doido galope.
 
Com os cacos da felicidade de um dia, a gente vai compondo um vaso de rara porcelana que, por falta de peças, nunca se completa. Mas o rio Uruguai está desenhado com sua cor, sua luz e seu som no mosaico daquele tempo feliz. 
 

sábado, 23 de março de 2013

Somos todos de uma distante galáxia

Jorge Adelar Finatto
 
Imagem da galáxia espiral NGC 1637, divulgada nesta semana.*


A idéia de que alguém na Islândia ou na galáxia espiral NGC 1637, a cerca de 35 milhões de anos-luz da Terra, na constelação do Rio Erídano, pode estar lendo estas linhas dá o que pensar. Revela também o poder da palavra na internet, capaz de estreitar distâncias, suavizar o tempo e mitigar solidões.

Se é verdade que somos todos estrangeiros neste inóspito universo, resta ao menos a esperança de encontrar pelo caminho pessoas para partilhar a vida, tornando a viagem menos árdua e solitária.

Escrever num blog, raro leitor, é como escrever em direção a uma nuvem de estrelas. Ninguém sabe no que vai dar. 

A palavra impressa passa o sentimento físico de permanência, ao contrário do ciberespaço, no qual domina a sensação de extrema fugacidade.

Estamos acostumados a pensar no papel como se nele a palavra estivesse a salvo do tempo, do desaparecimento.

Mas a impressão de perenidade é uma quimera.

A imensa maioria dos livros está condenada ao esquecimento por falta de leitores. Sobrevivem fisicamente nas estantes, mas é uma existência sem brilho. Na verdade, vivem no escuro. A luz não ilumina suas páginas fechadas.

Só está vivo o texto, virtual ou impresso, quando encontra um leitor que o acolhe e retira da escuridão.

O resto é poeira e sombra na biblioteca (ou na tela do computador).

O blog é uma esquina onde amigos invisíveis se encontram pra conversar. Um meio de comunicação aberto a todos, lugar de partilha, região de claridades.
 
Escrever na nuvem, portanto, é uma maneira de resistir. Uma ilusão quem sabe, mas ajuda a viver.

Estou falando essas coisas talvez porque é madrugada de sábado, faz muito frio lá fora e eu olho para o céu limpo deste início de outono, tentando descobrir uma janela aberta na NGC 1637.
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*Imagem produzida e divulgada pelos astrônomos do Observatório Europeu do Sul, no norte do Chile, nessa 4ª feira, 20 de março.
 

sexta-feira, 22 de março de 2013

Série Retratos 14 (Outono, outonos)







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photo: Jorge A. Finatto
Pedidos de reprodução podem ser feitos ao autor pelo e-mail
 

quinta-feira, 21 de março de 2013

O bandoneón de Jorge de la Brume

Jorge Adelar Finatto 
 
bandoneón. fonte: Wikipédia
 

No fundo da cegueira pode haver muita luz. Foi o que pensei enquanto ouvia Juan Niebla tocar Adiós, Nonino, de Piazzolla, no seu velho bandoneón argentino. Perguntei-lhe de onde vinha a afinidade com o instrumento.

Isso foi ontem, quarta-feira, primeiro dia do outono, chuvoso e gelado outono. Ficamos na mesa com vista para o Vale do Olhar, no Café da Ausência, que fica na estação de trem. Conversamos até o entardecer. Conversa regada a bule de café preto com pão torrado passado em geléias de laranja, framboesa, figo e uva.
 
Disse ele que três anos depois de tornar-se músico da cidade, por concurso público, e assumir o posto na estação de trem, recebeu um convite. A jovem e bela viúva Alberta de Montecalvino pediu que fosse com ela a Buenos Aires.

A Dama da Biblioteca queria companhia para visitar a capital portenha, onde tinha um encontro marcado com um certo senhor Jorge De La Brume, com quem se correspondia há alguns anos.
 
- Acontece - afirmou Niebla, acomodado dentro do grosso capote azul-marinho - acontece que a intimidade dos missivistas transbordou das cartas para a vida. Alberta e este senhor descobriram que havia entre eles um mundo de coisas em comum, que não se resumia ao interesse pelos livros.

- O senhor De La Brume, que era escritor, teve a iniciativa do encontro. Mas havia um entrementes. Ele era cego, não podia viajar sozinho até Passo dos Ausentes para conhecê-la.

Continuou Niebla:
 
- Ele tinha muita vontade de conhecer Passo dos Ausentes, a cidade do fim do mundo, de que já ouvira falar. Ficou interessadíssimo nas histórias que Alberta contava nas cartas. Chamou-lhe especialmente a atenção o caso dos espelhos espirituais. (Nossos espelhos não refletem a imagem da pessoa, mas sim seus sentimentos.)
 
- O ano era 1956. Tirei férias, pegamos o trem e iniciamos a longa viagem ferroviária que durou oito dias até Buenos Aires, com várias baldeações pelo caminho.

- Numa terça-feira, Alberta e eu fomos, enfim, ao apartamento onde o escritor residia na companhia da mãe, uma senhora mui gentil. Então conversamos muito, De La Brume e eu, conversa de cegos.

- Alberta ficou numa outra sala com a mãe dele. Ele era um homem afável, recitou alguns textos que tinha na memória. Coisas dele e de outros. Disse que lia e escrevia com os olhos da mãe e de amigos. Ouvia a leitura de livros e ditava seus textos.

- Aquela foi uma tarde inesquecível. Ele estava absolutamente fascinado com a história dos espelhos. Expliquei que era verdade, eu muitas vezes ficara diante do espelho olhando as imagens dos meus sentimentos, antes de perder a visão. Eram pinturas iridescentes. Um bosque, um córrego esperto entre árvores, pássaros, vultos esgueirando-se em corredores escuros, pessoas solitárias sentadas na praça, um banco vazio, um homem partindo, uma mulher chorando, uma boneca queimada. E muitas outras imagens indecifráveis.

- Jorge de La Brume ficou enlouquecido com aquilo.

- Antes de nos despedirmos naquele dia, La Brume presenteou-me com este bandoneón, dizendo que seria meu companheiro. "Este bandoneón é irmãos dos livros da minha biblioteca, mora lá com eles. Agora ele será teu irmão", falou.

- Pediu-me que tocasse alguma coisa. Foi o que fiz, improvisando Les chemins de l'amour, de Francis Poulenc, num arranjo inspirado por aquele encontro mágico. Acho que nunca toquei tão bem uma peça de Poulenc. Contou-me Alberta, depois, que, enquanto eu tocava, uma lágrima escorreu na face do escritor (apoiava as mãos sobre a bengala, sentado na poltrona bege de couro).

- Nos três dias seguintes, ele e Alberta saíram a caminhar pelas ruas da cidade, foram a cafés, bibliotecas, livrarias, bosques. Fizeram muitas coisas juntos naqueles poucos dias. Alberta era elegante, culta e discreta (como é até hoje). Eu passei as tardes com a mãe do escritor, ouvindo casos, histórias, e provando o delicioso chá que ela servia. Toquei algumas músicas também. 

- Jorge de La Brume e sua mãe fizeram questão de despedir-se de nós na estação de Buenos Aires. Lembro do cálido abraço que ele me deu. Uma tarde de outono muito fria como essa. Eu era jovem. Um cego emocionado com seu novo amigo e com o bandoneón.

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Juan Niebla, 88 anos, é músico da estação de trem de Passo dos Ausentes desde 1940, ano em que ficou cego aos 15 anos. Vice-presidente da Sociedade Histórica, Geográfica, Antropológica, Astronômica, Geológica, Artística e Antropofágica.

Alberta de Montecalvino:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/07/alberta-de-montecalvino.html
A estação de Passo dos Ausentes:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/12/a-estacao-de-passo-dos-ausentes.html
Música na estação de trem:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/05/musica-na-estacao-de-trem.html
A claridade do coração:
 http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/04/claridade-do-coracao.html
Les chemins de L'amour, na voz de Véronique Gens:
http://www.youtube.com/watch?v=ex-IxBQndqM
 

quarta-feira, 20 de março de 2013

O show de Bibi e de sua plateia

Carlos Alberto de Souza
 
 
Bibi Ferreira. photo: Prêmio Claúdia Abril*

 
Sábado, dez e meia de uma noite fria para o verão que termina, entro no Bourbon Shopping para sacar um dinheirinho no caixa eletrônico. O sobrinho que me acompanha chama a atenção para a enorme fila de pessoas que, na calçada, sob neblina, esperam táxi.
De início, imagino tratar-se de um movimento normal de sábado, dia em que muita gente vai ao cinema nas várias salas do Bourbon e do Iguatemi, do outro lado da rua. À medida que avançamos dentro do shopping, dou-me conta que de dentro dele saem grupos de pessoas idosas, – mas não idosos de 60 anos, e sim de 80 pra cima - a maioria senhoras, bem arrumadas, que se dirigem para a rua.
Cai a ficha: é o público de Bibi Ferreira que foi assisti-la no teatro que funciona no local. Comento com Fernando, estudante de engenharia elétrica que acende sua curiosidade e quer saber quem é a cantora.

Começo por dizer, como que rendendo uma homenagem à artista, que ela tem 90 anos. Interpreta maravilhosamente bem, não só em português como em outros idiomas. Recentemente se apresentou no Lincoln Center, em Nova York, e, ano passado, deu uma entrevista ao Jô Soares que vale a pena ver, resumindo a sua vida durante o talk show.
O meu sobrinho, nos seus flamantes 22 anos, espanta-se com a faixa etária das pessoas que saíram de suas casas, numa noite nada convidativa, e deslocaram-se, sabe-se lá que distância, para assistir a um musical na zona norte de Porto Alegre.

Ao vê-las, a maioria mulheres acompanhadas de amigas, umas amparadas nas outras, ou nas suas “secretárias” ou cuidadoras (provavelmente, viúvas), todas elegantes e bem vestidas, pensei o quanto aquele programa mobilizou-as. Muitas certamente foram ao salão de beleza, escolheram a melhor roupa, aguardaram ansiosamente para assistir a talentosa e inquebrantável Bibi Ferreira.
Uma lição de vida diante de nossos olhos. Gente que não está em casa esperando a morte chegar. Está indo ao encontro da vida aonde ela estiver. Na volta do caixa eletrônico, entramos na fila do táxi e atrás de nós postou-se uma das senhoras com a sua acompanhante. Perguntamos como havia sido o show.
Seus olhos brilharam, o rosto se iluminou: “Maravilhoso”, disse ela, emendando logo em seguida, para caso não soubéssemos, que Bibi “está com 90 anos”. Essa também é, mais ou menos, sem medo de errar, a idade de nossa interlocutora. Reflito que, tal como Bibi no palco, ela, como todas as senhoras da plateia, merece aplausos e gritos de “bravo”. Ali, na calçada fria, restou fazer o gesto possível a uma verdadeira dama: dar-lhe a preferência para embarcar no táxi que finalmente chegara.
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Carlos Alberto de Souza é jornalista em Porto Alegre.
smcsouza@uol.com.br

O show de Bibi realizou-se no Teatro do Bourbon Country, Porto Alegre, em 16 de março passado.
photo de Bibi Ferreira:
http://premioclaudia.abril.com.br/finalistas/bibi-ferreira/
 

segunda-feira, 18 de março de 2013

Jorge Luis Borges e a névoa do tempo

Jorge Adelar Finatto
 
photo: J.L.Borges. Fonte: Fundación Internacional JLB


Gradualmente, o aprazível universo o foi abandonando; uma insistente névoa apagou as linhas de sua mão, a noite se despovoou de estrelas, a terra era insegura sob seus pés. Tudo se afastava e se confundia. Quando soube que estava ficando cego, gritou; o pudor estóico ainda não fora inventado e Heitor podia fugir sem menoscabo. "Não verei mais (sentiu) nem o céu cheio de pavor mitológico nem este rosto que os anos vão transformar." ¹

Jorge Luis Borges


Buenos Aires, calle Tomás Manuel de Anchorena, 1660. Neste endereço está a Fundación Internacional Jorge Luis Borges.

Aqui se encontram objetos de uso pessoal e documentos que pertenceram a Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo, entre eles duas bengalas, manuscritos, fotografias, talismãs, medalhas, títulos, coisas curiosas como uma vestimenta de samurai, e livros, muitos livros, como as primeiras edições de suas obras, e publicações preciosas de outros escritores, entre elas Os Lusíadas, de Luís de Camões.

O lugar é silencioso. Os iniciados na obra de Borges vêm a esta casa numa peregrinação em busca da memória do mestre. Querem ver algum sinal, algum vestígio, saber se Borges de fato existiu ou se foi só um sonho sonhado pelo outro Borges, o fantasma que vaga pelos espelhos e bibliotecas.


photo: fachada da FIJLB (j.finatto)

Na escadaria da antiga casa, paira o seu retrato. A senhora que atende o visitante é atenciosa. Informa que no andar superior será montado, em breve, o quarto do autor de Fervor de Buenos Aires (1923), Historia Universal de la infamia (1935), Ficciones (1944), El Aleph (1949), Los Conjurados (1985), entre tantos textos. Neste espaço todos os detalhes passam pelo exame da guardiã da memória de Borges, María Kodama, viúva do escritor.

A fundação foi criada em 1988 e situa-se ao lado da casa 1670, na qual Borges viveu com sua família de 1938 a 1943. Nela escreveu Las ruinas circulares.

photo:j.finatto
 
A funcionária esclarece que o acervo muda de tempos em tempos. Conheceu Borges em palestras, não teve contato pessoal com ele. As peças às vezes viajam para exposições em outros países.

Pergunto-lhe se há livros do escritor e sobre ele para vender. Ela providencia alguns exemplares. A Fundação não faz comércio das obras como uma livraria comum, embora ofereça alguns títulos, dentro da finalidade de preservar o legado e a história de Borges. Há livros para casos de urgência, como o meu, que - devoto inconveniente na biblioteca do mosteiro - pretendo folheá-los, cheirá-los, acariciá-los, ler trechos, adquiri-los ali mesmo.


photo: fachada da casa onde viveram Borges e sua família (j.finatto)

Jorge Luis Borges nasceu em 24 de agosto de 1899, na casa 840 da calle Tucumán, na capital da Argentina, filho de Jorge Guillermo Borges, advogado e professor de psicologia, e de Leonor Acevedo. Morreu em 14 de junho de 1986 em Genebra, Suíça, onde está enterrado no cemitério de Plainpalais. No ano da morte, em 26 de abril, casou-se com María Kodama, cerca de trinta e cinco anos mais jovem que ele. Há muito tempo María o acompanhava, tendo auxiliado Borges na escrita, na leitura, na organização de seus trabalhos, em viagens.

Em 1956, por determinação médica, o escritor não pôde mais ler nem escrever. A nuvem da cegueira invadia sua existência. Uma ironia para quem passou a vida no meio dos livros e teve nas bibliotecas seu ambiente natural. O pai do escritor, Jorge Guillermo, ficou cego ainda mais jovem do que o filho, interrompendo uma sonhada carreira de escritor.

photo: j.finatto

Jorge Luis, porém, não desistiu da leitura nem da produção literária. Registrava na memória os poemas e textos. Depois os ditava para alguém chegado a ele. Da mesma forma passou a ouvir a leitura dos livros.

A espessa névoa não o impediu de construir uma obra única. Tornou-se um dos maiores escritores do século 20.

Um escritor raro, culto, dotado de humanismo e notáveis recursos técnicos.

Um homem, como todos, contraditório, com dificuldades de lidar com o mundo real.

As contradições levaram-no a não receber o Prêmio Nobel de Literatura. A mais importante distinção dada anualmente a um escritor é concedida levando em conta critérios não apenas de mérito literário como, e talvez principalmente, políticos. Borges foi recusado, na década de 1970, por sua simpatia, no momento inicial, pela ditadura argentina e pelo governo não menos ditatorial de Pinochet, no Chile.

Mais tarde revisou suas posições, reivindicou a volta ao estado democrático de direito, insurgiu-se diante da questão dos desaparecidos na ditadura, posicionou-se contra a Guerra das Malvinas.²

O tempo passou, o escritor foi capaz de rever conceitos, mas jamais receberia o Nobel. Esse foi um grave equívoco cometido pelo comitê que outorga a premiação. Tanto ou mais do que outros, Borges merecia o galardão.

Ele não apenas construiu uma importante obra literária como teceu para si uma biografia de escritor, mosaico de fatos cuidadosamente recolhidos do cotidiano e da imaginação. A invenção, mais do que a realidade, ocupa o centro do seu universo.

Ele sentia-se inglês, embora com nome de origem portuguesa. A avó paterna nasceu na Inglaterra. Por isso, aprendeu a ler primeiro em inglês e só depois em espanhol. A condição de argentino e latino-americano lhe doía, às vezes, pelo atraso cultural.

Borges teve o tempo necessário para fazer uma obra, tornando-se um escritor universal. Era alguém a quem as idéias de morte e suicídio visitavam com alguma freqüência.

Sempre buscou amparo e refúgio nos livros.

Identificado o câncer que lhe sobreveio já octogenário, negou-se ao tratamento convencional. Saiu da Argentina. Viveu os últimos tempos em Genebra, cidade de sua devoção, ao lado de María Kodama.

Passou por um constrangimento desnecessário ao postular, e não obter, por essa época, a nacionalidade suíça. Não tinha como preencher os requisitos, tais como 12 anos de residência continuada naquele país.

Morto, foi enterrado em Genebra... Não voltou para sua Buenos Aires.

Não há talvez muita esperança na obra de Borges. Mas há uma cálida compreensão do humano destino. Existem livros, bibliotecas, espelhos, claros e sombras num casarão povoado de memória e espectros.

Uma súbita manhã costuma emergir dos textos de Jorge Luis Borges.

Ele alcançou o maior reconhecimento que um escritor pode sonhar: sua obra continua lida e amada por sucessivas gerações.

Silenciosamente desesperado, escreveu as histórias do nosso mundo pequeno, no qual se movem criaturas feitas de sangue e névoa.
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1. Trecho do texto O fazedor, do livro O Fazedor (El hacedor - 1960). Companhia das Letras, São Paulo, 2008. Tradução de Josely Vianna Baptista.
2.Informações extraídas do livro Jorge Luis Borges, El tejedor de sueños. Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara, 1a. ed., Buenos Aires, 2006.
Foto: J.L.Borges. Fonte: site da Fundación Internacional Jorge Luis Borges
http://www.fundacionborges.com/
Texto revisto, publicado em 22 de janeiro, 2010.

sábado, 16 de março de 2013

O acordo ortográfico fazendo água

Jorge Adelar Finatto

Dicionário Novo Aurélio, 1999. photo: j.finatto
 

O acordo ortográfico da língua portuguesa, firmado pelos países lusófonos em 1990, está no papel, está assinado, só tem um problema: os interessados não sabem o que fazer com ele...  A tentativa forçada de unificação da ortografia, depois de tanto tempo, ainda não é obrigatória.

A edição do Decreto 7.875, de 27/12/2012, postergou a obrigatoriedade das novas regras, no Brasil, para 1º de janeiro de 2016. Até lá, a norma ortográfica atual e a estabelecida no acordo coexistem legalmente.

O adiamento revela, no mínimo, desconfiança. E há razão para isso. Não tenho dúvida de que o acordo dificilmente se tornará obrigatório em Portugal. Por uma singela razão: não existe motivo relevante que justifique as alterações propostas.

Espero, no fundo, que o apego natural dos portugueses ao vernáculo rejeite mudanças sem sentido e que vêm apenas ao argumento de deixar tudo igual. Igual pra quê? Acaso o leitor do português deixará de entender o significado de algumas palavras só porque têm alguns cês a mais ou variação de acentuação? É claro que não.

Uma parte importante da intelectualidade portuguesa não quer saber do acordo, felizmente. As repercussões lá serão/seriam muito mais abrangentes do que no Brasil.

O acordo tem, a meu ver, vício de origem: pretende uniformizar, de cima para baixo, as normas ortográficas brasileira e portuguesa, desconsiderando a razão de ser das diferenças, como se isso fosse razoável. Não é.

Explicações culturais, sociológicas e históricas fazem com que a língua de Camões e Oswald de Andrade tenha particularidades no Brasil e em Portugal, sem que haja nisso desdouro. São diferenças que em nada comprometem o funcionamento e a clareza do idioma.

Podemos ler Fernando Pessoa, Saramago, Ruy Belo, Al Berto e Eugénio de Andrade no "original" português, sem qualquer dificuldade, do mesmo modo que os países da lusofonia lêem, sem problema, Drummond, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Mario Quintana e Heitor Saldanha no português do Brasil.

As peculiaridades ortográficas expressam riqueza, não empobrecimento. Empobrecer é reduzir a norma única, como quer o tal acordo.

No Brasil está muito bem o trema que indica que a pronúncia correta é lingüiça em vez de linguiça, freqüente em vez de frequente, e por aí vai. O acento agudo que nos faz dizer idéia e não idêia tem utilidade.

Qual o problema se, em Portugal, escrevem colectivo, direcção, acção, etc? Nenhum.

As diferenças respondem a realidades e modos de lidar com a língua que precisam ser respeitados.

Pretender unificar a grafia, neste caso, é como querer tornar igual o modo de ser das pessoas. 

O passo seguinte dos sedizentes donos do idioma será talvez homogeneizar as pronúncias e proibir a existência de palavras próprias de cada país. Afinal, quem disse que o absurdo tem limite?
 
No Brasil, houve a certeza de que o acordo fosse valer em definitivo, já que o Decreto nº 6.583, de 29/9/2008, fixou a data de 1º de janeiro de 2009 para a entrada em vigor da nova ortografia.

Mas tinha um porém: estabeleceu, também, um período de transição para sua implementação, tendo como data limite 31 de dezembro de 2012 (agora 31/12/2015). Nesse enquanto-isso, valeriam, como estão valendo, ambas as normas ortográficas.

Penso que na idéia de transição tão longa (depois de mais de 20 anos da assinatura) está subjacente uma desconfiança em relação à validade e plausibilidade do que foi feito.

Se fosse necessário, se fosse histórica e culturalmente justificável, já estaria em pleno vigor o acordo no mundo lusófono. Os fatos demonstram o contrário. 
 
Enfim, não chego ao ponto de dizer que deveríamos  pegar em armas por causa da extinção do trema e outras alterações, como defendem alguns companheiros de luta...

Mas que a coisa ficou muito estranha, não há a menor dúvida.

De tudo fica a lição de que o idioma não pertence a um grupo de iluminados.

A língua é do povo. Querer tornar igual o que, por natureza, é diferente (e não traz qualquer prejuízo) é uma insensatez e uma grande vaidade.

Aqui no blogue, como se vê, continuamos a escrever da forma como temos feito nas últimas décadas, sem remorso e com esperança de que o bom senso, afinal, prevaleça.