sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Meu encontro com Walt Whitman

Jorge Adelar Finatto 

photo: Walt Whitman, em 1887 . Autor: George C. Cox.
Fonte: Wikipédia.


O trabalho mudou minha vida de lugar  muitas vezes. Faz muitos anos morei numa cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul. O lugar se resumia a uma igreja católica e outra protestante, duas escolas, um hospital, algumas ruas e casas e pouca coisa mais. Em volta, a mata. Em certas tardes, eu saía a andar por estradas de chão, solitárias e com aroma silvestre.

Caminhar assim é como andar dentro de si mesmo.

Num dia de sol e frio, eu percorria um desses caminhos. Um córrego prateado corria na margem. Numa curva em frente, entre os altos plátanos que se erguiam nos dois lados da estrada, apareceu um homem. Quando nos cruzamos, ele me cumprimentou, em silêncio, fazendo um gentil aceno de cabeça, que eu retribuí.

Ele tinha uma barba branca abundante, uns olhos pequenos muito azuis, o cabelo na altura dos ombros. Usava um chapéu escuro com largas abas, a face um tanto rosada. Vestia um velho casaco, a camisa abotoada até o pescoço. Trazia um livro na mão esquerda.

Eu tive certeza de que se tratava do poeta norte-americano Walt Whitman (1819 – 1892).

Fiquei orgulhoso e feliz de estar ali, pisando o mesmo chão que o grande Walt.

Seria o espectro do poeta que eu vira? Seria alguém muito parecido?

Encontrei-o em outras duas ocasiões. Como da primeira vez, éramos só nós, a estrada verde, a brisa e o rumor do córrego. Fiquei observando o poeta. Ele entrava num desvio lateral da estrada, subia uns cinquenta metros em direção a uma pequena casa de madeira.

A casa era muito branca e delicada. Sozinha, lá no alto, mostrava cortinas azuis nas janelas abertas, e flores, muitas flores da estação no breve jardim em volta.

Walt entrava pela porta dos fundos e desaparecia.

Uma chaminé de alumínio saía pelo telhado.

Pensei em conversar com o poeta na última vez em que o encontrei. Talvez ele até dissesse alguns versos de Folhas da Relva, sua obra-prima. Mas não. Achei melhor não incomodar. Afinal, os poetas trabalham enquanto caminham em silêncio por estradas de chão.

Um dia chegou a hora de ir embora da cidade pequena.

A vida seguiu, muitos caminhos eu percorri depois. Mas nunca esqueci que, em certas tardes, numa cidadezinha do interior, eu caminhei na mesma estrada por onde andava Walt Whitman.

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Transbordante de Vida
                                                      Walt Whitman

Agora, transbordante de vida, sólido, visível,
No ano quarenta de minha existência, no ano oitenta e três dos Estados,
A alguém que viverá dentro de um século, ou em qualquer número de séculos,
A vós, que ainda não haveis nascido, dedico estes cantos, esforço-me por
alcançar-vos.
Quando lerdes, eu que sou agora visível, hei-de ter-me tornado invisível; então sereis vós, denso e visível, quem lerá os meus poemas, quem se esforçará por compreendê-los,
A imaginar quão felizes seríeis se me fora dado estar ao vosso lado e converter-me em vosso camarada;
Que seja, pois, como se eu estivesse. (Não duvideis demasiadamente que não esteja então ao vosso lado).

Poema extraído de O Livro de Ouro da Poesia dos Estados Unidos, coletânea de poemas organizada por Oswaldino Marques, edição bilíngue, Ediouro, tradução de Manuel Ferreira Santos.
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Texto revisto, publicado no blog em 17, abril, 2010.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Ventos da primavera

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 
 
A primavera traz, nas malas recém-abertas da longa viagem, roupas leves e coloridas. Nos últimos dias tem chovido e faz frio. Os inícios da primavera eu conheço bem. Por isso não me espantam os ventos andarilhos de outubro quase novembro. Quando se aproxima o Dia dos Mortos, 02 de novembro, é sempre assim.

Finados sem vento não é Finados.
 
Acordei no fim da madrugada e estou no escritório. Escuto música, leio alguma coisa antes que amanheça. Ainda é noite nas montanhas, o verde das árvores ainda dorme no escuro. Nenhum pássaro, nenhum canto. É hora de pálpebras fechadas. Mas a luz não tarda e todos os olhos se abrirão novamente para a vida e seu difícil ofício, a vida e seus mistérios.
 
Por mais que se queira ficar imóvel (tem dias que tudo que se quer é ficar calado num canto, mastigando silêncio, ruminando assombros, observando o invisível ), os ventos de primavera nos empurram, exigem movimentos, atitudes, escolhas, passos.
 
Se somos uma obra em progresso, toda vontade de inércia é uma ilusão. É isso que tenho de me lembrar a cada manhã.

Nunca é fácil sair do aconchego do ninho, mesmo depois de ganhar penas e envergar asas. Os primeiros e os últimos vôos do dia são um salto sobre abismo. Penso, às vezes, que viver é contornar precipícios.

O que resta é repousar algumas horas por noite, acordar, lavar o rosto, vestir a roupa e ir pra estrada. Partir na dança dos abismos.

As horas de contemplação são raras e compradas a peso de diamantes.

Por isso, bem-vindos aqueles que vêm a esta página em algum momento do seu dia. Espero que não saiam de mãos vazias.

O melhor a fazer a esta hora inaugural, quando a claridade emerge do leste e aponta entre os galhos e as folhas, é sair com esses ventos que cheiram à flor, sair com eles pelo amanhecer afora.

Deus é grande e viver é sempre bom.
 
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A grafia que utilizo, como se percebe, é a antiga, que ainda está em vigor, juntamente com a do acordo (?) ortográfico, que, ao que parece, fez água. Sobre o assunto:
O acordo ortográfico fazendo água:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/03/o-acordo-ortografico-fazendo-agua.html
  

domingo, 20 de outubro de 2013

Biografias versus biografados

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 

Trava-se acirrada discussão no Brasil sobre a publicação de biografias.

De um lado estão os que pretendem retirar do ordenamento jurídico os artigos 20 e 21 do Código Civil (Lei nº 10.406, de 2002), que, na prática, condicionam a publicação de biografias à autorização dos biografados, se vivos, ou de seus herdeiros, se mortos.

O autor e a editora até podem publicar sem autorização, mas ficam sujeitos a processo judicial de proibição, indenização e recolhimento da obra, caso as pessoas mencionadas não concordem com a edição.

Em sentido contrário, sustenta-se a plena aplicação dos dois dispositivos legais, à luz do art. 5º, X, da Constituição Federal, que tutela a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Entendem estes que a exigência de autorização deve permanecer. Postulam, alguns, a participação dos biografados nos lucros de suas biografias.
 
Entre os argumentos que li em favor da revogação da autorização, está o de que a exigência é verdadeira censura e afronta o direito constitucional da liberdade de expressão (art. 5º, IX, da Constituição Federal). Afirma-se que as normas em vigor não permitem a livre circulação da informação e constituem atraso em relação a países onde a autorização não é exigida, como nos Estados Unidos. Acrescenta-se que a limitação legal produz biografias chapa-branca, sujeitas à interferência de biografados e familiares.
 
Para engrossar o caldo, tramita no Congresso Nacional projeto para acabar com a autorização. E uma ação direta de inconstitucionalidade foi ajuizada no Supremo Tribunal Federal contra os artigos 20 e 21 do CC. Esta é, resumidamente, a controvérsia.

Entendo, inicialmente, que a liberdade de expressão não pertence somente às editoras e aos biógrafos, é um direito fundamental de todos os cidadãos, que não pode ser objeto de censura. Por outro lado, não pode ser vista como censura decisão judicial que, democraticamente, harmoniza princípios constitucionais de igual importância.

Há liberdade de expressão (e não censura) na manifestação dos que defendem a vida privada, a intimidade e a imagem, ainda que de figuras públicas.

Cada direito deve ser ponderado no âmbito do sistema jurídico como um todo, não isoladamente.
 
O que está posto em discussão, de forma equivocada a meu sentir, é que pessoas públicas não têm direito à intimidade e à vida privada, direitos protegidos constitucionalmente tanto quanto a liberdade de expressão. Como se, por exercerem ofício público (músicos, atletas, artistas, políticos, etc.), já não pudessem dispor da vida pessoal.

Não se deve confundir personalidade pública com direito de apropriação da vida alheia.

Pretender que, por ser persona pública, o indivíduo deva suportar que terceiro escreva sobre sua vida e comercialize a seu bel-prazer essa história configura, no mínimo, inaceitável invasão da vida do outro. Retirar do personagem a possibilidade de decidir contra isso é, na minha visão, uma violência.

A história de uma pessoa é seu maior patrimônio, a sua maior riqueza, e é o que deixa de mais importante como herança. Não parece justo nem razoável que alguém se aproprie desse patrimônio personalíssimo para divulgá-lo e comercializá-lo quando e como bem entender, enquanto ao biografado resta assistir a tudo calado, como se não fosse com ele.

Alguns argumentam que há interesse público na publicação de determinadas biografias. Na maioria dos casos, contudo, notadamente de biografados vivos e famosos, não é o interesse público que move o biógrafo, mas o interesse econômico. De resto, trata-se de erro grosseiro confundir interesse público (inexistente) com vontade de satisfazer a curiosidade pública, coisa bem diversa, movida esta pelo desejo pueril tão em moda de rastrear a privacidade e a intimidade alheias. 
  
Não há violação da liberdade de expressão nos artigos do Código Civil, mas sim a preservação do direito legítimo de todo indivíduo de dispor de sua história de vida, no qual está incluído aceitar ou não ser biografado. Está na esfera jurídica da pessoa decidir. Como negar isso a alguém? 
 
O que é público é o trabalho, a obra, a atividade profissional. Mas isto, de modo algum, significa que a pessoa não tenha mais direito a uma vida pessoal e de ser dono dela.
 
A liberdade de expressão, pedra fundamental no edifício do estado democrático de direito, não é, todavia, absoluta e encontra limites em outros direitos constitucionais.

O fato de personalidades como Michael Jackson terem por volta de 200 biografias não-autorizadas, por si só, não leva a concluir que o modelo americano possa ser transposto, sem ressalva, à realidade brasileira, tão diversa em múltiplos aspectos.

A vingar a tese da inconstitucionalidade ou da revogação dos artigos em questão, na prática se estará colocando a biografia de pessoas vivas em domínio público. Nunca será demais lembrar que a lei que protege os direitos autorais (Lei nº 9.610/1998) ampara os direitos do autor por 70 anos após sua morte... Como aceitar que a vida do criador, sua principal obra, caia de imediato em domínio público?

Penso que a lei pode ser aperfeiçoada. O artigo 20 pode ser melhorado, mas seria um grave erro simplesmente retirá-lo do mundo jurídico.
 
Por exemplo, acredito que seria um avanço fixar-se um prazo para o exercício do direito por parte dos herdeiros. Também seria, neste momento, oportuno, tanto no STF como no Congresso Nacional, realizar audiências públicas sobre o assunto,  a fim de enriquecer as decisões que serão tomadas nos dois poderes.

Caso o STF decida pela liberação geral das biografias, temo que será muito difícil preservar a vida dos direitos fundamentais em questão.

Por fim, observo que não é a primeira vez e nem será a última que normas constitucionais entram em aparente conflito. É a análise percuciente do caso concreto que determinará qual direito deve ser aplicado para a realização do justo. Há inúmeras situações em que a liberdade de expressão prevalece sobre normas de mesma hierarquia. E há casos em que não prevalece, sendo que a própria Constituição Federal, no artigo 220, parágrafo 1º, acena com limites.

Viver em democracia significa, essencialmente, conhecer estes limites e saber que não existem direitos absolutos.

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1. O presente artigo foi reproduzido no blog Interesse Público, do jornalista Frederico Vasconcelos, da Folha de São Paulo. Trata-se de um espaço democrático e qualificado da imprensa brasileira:

http://blogdofred.blogfolha.uol.com.br/2013/10/21/biografias-e-apropriacao-da-vida-alheia/ 

2.  A escritora Glória Perez divulgou o texto no seu twitter. Um abraço pra ela!
https://twitter.com/gloriafperez/status/397029073295126528

3. Atualizei parte do artigo em 29 de novembro de 2013.
 

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Púbi Mann contra o Terceiro Reich

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Lago da Ausência


O fato por todos conhecido em Passo dos Ausentes  é que Púbi Mann retornou à cidade depois de 14 anos, sem memória e envolto numa espessa névoa de silêncio, numa remota e fria tarde de junho de 1952. Não tinha uma história pra contar, não reconhecia mais o lugar, as pessoas nem a si próprio.

Eram quatro horas quando o Jeep verde do Exército rompeu a neblina na entrada da cidade. Parou na Praça da Ausência. Trazia quatro militares e aquele homem com barba ruiva, vestindo um grosso capote azul-marinho e botas de cano longo. No lado direito da cabeça, tinha uma profunda cicatriz onde o cabelo não crescia.

Púbi não olhava nos olhos das pessoas. Esboçava um vago e incompreensível sorriso. O olhar passeava curioso pelos telhados ao redor da praça.  Dois oficiais levaram-no até o Teatro da Vida Breve, que também é biblioteca, pinacoteca, cinemateca, café e local de encontros.

Mocita de la Vega, administradora do teatro, explicou aos soldados que tentaria localizar o filósofo Don Sigofredo de Alcantis, a quem caberia atender a missão, na condição de presidente da Sociedade Histórica, Geográfica, Geológica, Astronômica, Filosófica, Literária, Antropofágica e Artística de Passo dos Ausentes.  

Mas Don Sigofredo não se encontrava na cidade, estava longe, no Contraforte dos Capuchinhos, visitando Claudionor, o Anacoreta. Mocita, então, buscou Juan Niebla, o músico cego, na estação de trem abandonada. E foi Niebla, na condição de vice-presidente da SHGAFLA, quem recebeu os militares no gabinete.

- Conforme mostram os documentos que ora entregamos - disse um dos oficiais, que, depois de olhar para Niebla, interrompeu a fala e virou-se para seu colega. Este, com um gesto impaciente, mandou que continuasse. - Como eu dizia, o senhor Púbi Mann, que agora apresentamos, foi mandado de volta ao Brasil pelo governo da Alemanha.

- De acordo com o Informe 79/EB/52, ele foi incorporado como soldado cozinheiro na marinha daquele país em 1939, um ano depois de chegar na Alemanha, vindo do Brasil.  Foi um lamentável equívoco, dizem as autoridades alemãs, já que o senhor Púbi estava de passagem, procurando parentes distantes na cidade de Lübeck.

- Ocorre que os Mann tinham fugido da Alemanha com a ascensão do nazismo. Púbi ficou sem ter para onde ir. Foi expulso da pensão quando o dinheiro acabou e passou a vagar pelas ruas e praças de Lübeck. Não conseguia se comunicar direito, pois falava num dialeto alemão de emigrantes do século XIX. Dormia na rua. Os dias eram difíceis. As autoridades locais resolveram recolhê-lo a um abrigo. Fizeram-lhe novos documentos, só que como cidadão alemão, e o entregaram ao exército. Poucos dias depois, foi encaminhado à marinha de guerra, sendo incorporado como soldado cozinheiro.

Juan Niebla interrompeu e disse:

- Pobre Púbi. Sinto pelo seu silêncio que está ausente deste mundo. Éramos amigos de infância. Com a morte dos pais, ele resolveu viajar em busca de possíveis familiares na Alemanha. De nada adiantaram nossos avisos sobre o perigo da guerra. Foi em busca de uma obscura ancestralidade. Está mais oco do que quando partiu.

- Só que Púbi se negou a servir na armada de Hitler -, retomou o oficial. No quartel, as coisas ficaram ruins pra ele. Mesmo assim, foi embarcado. Remisso, negava-se a fazer qualquer coisa, quis organizar um motim e foi preso no porão do navio. Durante um bombardeio, um pedaço de aço atingiu-lhe a cabeça, ferindo-o gravemente. Ele perdeu a memória.  De volta, foi encaminhado a um campo de concentração na Alemanha.

- Depois da guerra, foi para um hospital psiquiátrico, de onde teve alta recentemente para ser devolvido ao Brasil. O informe diz ainda que ele recebe uma pensão mensal e vitalícia do governo daquele país por serviços prestados contra o nazismo, com sacrifício da própria saúde. Não há outros detalhes.

Os soldados partiram, afundando-se com o Jeep verde na neblina. Coube a Juan Niebla, com o auxílio do braço de Mocita, levar o desmemoriado pela mão até a casa da irmã Celina Mann, única parente viva.

Foi deste modo que Púbi Mann regressou a Passo dos Ausentes. Alto, magro, curvado e esquecido de tudo. Passava os dias sentado em silêncio na cadeira de balanço do avarandado do sobrado familiar. Celina, todos os dias, pelas cinco da tarde, lia para ele trechos da Bíblia.

Isto foi assim até o dia em que, do nada, durante uma caminhada com a irmã ao redor do Lago da Ausência, aconteceu o milagre que ninguém mais esperava. Púbi emergiu das trevas e contou a verdadeira e incrível história daquela cicatriz e de sua rebelião contra o Terceiro Reich. Mas isto já é outra história e caberá ao próprio Púbi contá-la, quando assim resolver.

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Texto revisto, publicado em 11 de junho, 2012.
 

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

A Liga da Orquídea

 Jorge Adelar Finatto

Fachada da Sociedade Histórica, Antropofágica e Literária de Passo dos Ausentes
photo: j.finatto
 

Em Passo dos Ausentes, de onde escrevo essas longínquas linhas, não há registro oficial de morte motivada pelo frio. Apesar das peculiares condições atmosféricas, que impõem ventos polares, chuvas, neblinas e neves em boa parte do ano, por aqui de frio ninguém morre. 

Datam do tempo da fundação da cidade, em 1759, por índios guaranis e padres jesuítas fugidos da destruição de São Miguel das Missões, os primeiros agasalhos de lã tecidos nos Campos de Cima do Esquecimento. Grossos capotes, palas, ponchos, meias, calças, vestidos, ceroulões, casacos, blusas, luvas e mantas de lã crua fazem parte da indumentária da Terra dos Ausentes.  

Se de frio ninguém padece, o mesmo já não se pode dizer daqueles que sofrem nas geleiras da solidão. 

Há entre nós relatos que entraram para a literatura médica mundial, de vidas que foram salvas de morrer de solidão e de ausência de afeto. Os casos foram descritos com detalhes pelo único médico existente em Passo dos Ausentes, Dr. Fredolino Lancaster, que, aos 98 anos, ainda exerce a medicina, na falta de substituto. 

Em memorável palestra na Sociedade Histórica, Geográfica, Filosófica, Literária, Geológica, Astronômica, Teatral, Antropológica e Antropofágica de Passo dos Ausentes, Fredolino Lancaster abordou o tema Da solidão glacial dos viventes e dos moribundos. Eis alguns trechos da fala do nosso venerando esculápio: 

- A prova de que o abandono e a falta de afeto também adoecem e podem até mesmo levar à morte eu recolhi em pelo menos 30 casos hoje considerados clássicos. Apresentei este estudo em 1980, em Londres, durante encontro internacional de médicos especialistas na alma humana. Trago apenas um resumo.

- Antes de prosseguir, um calicezinho de graspa, por favor. Assim, assim está bem. Obrigado, Mocita de La Vega.

- É importante atentar para os sintomas. Persistentes tremores de frio acompanham o indivíduo desde que acorda até adormecer. Ocorrem independente da temperatura que faz no ambiente. A temperatura do corpo fica mais baixa do que o normal. Palpitações, suor frio, olhos e boca secos, mãos instáveis, vontade de não sair da cama ou de casa, e uma acentuada atração pelo abismo são alguns dos sinais.

- Na situação descrita, os pacientes perderam laços afetivos importantes, passaram a revolutear em volta das perdas como mariposas ao redor da lâmpada. A solitude persistente, intocável com palavras, o vazio, o frio interior, compõem o quadro de uma doença impiedosa e cruel, que precisa ser identificada logo no início. Pode apresentar quadro agudo, mas costuma ser crônica, e é deveras traiçoeira.

- O tratamento para evitar o trágico desfecho - a morte física ou, pior ainda, a morte interior, também conhecida como morte em vida (indiferença profunda diante de tudo e de todos) - é a terapia do urgente abraço. 

- Povos antigos utilizavam o abraço tribal para prolongar a vida de seus moribundos, o que acontecia às vezes por muitos dias, meses e até anos. Adaptei o abraço tribal para nossa álgida realidade,  nessas alturas dos Campos de Cima do Esquecimento. Tenho casos de pacientes que sobrevivem há dez, vinte ou mais anos, mesmo com graves doenças, valendo-se do abraço amigo.

- Desde que passei a utilizar a terapia, nunca mais perdi um doente de solidão. É preciso cercar o enfermo com atenção e ternura. Um abraço prolongado, duas vezes por dia, é o tratamento indicado para os casos leves. Para casos mais graves, abraços de três em três horas, em casa, na rua ou no local de trabalho, são fundamentais.

- É necessário identificar os possíveis abraçadores, que podem ser parentes, cônjuges, amigos, vizinhos e até mesmo desconhecidos, desde que instruídos para o nobre mister. 

- A Liga da Orquídea, que atualmente presido, sob a cálida inspiração de Alberta de Montecalvino, a Senhora da Biblioteca, faz um trabalho notável de visitas e apoio aos doentes de solidão com seu grupo de voluntários e voluntárias. 

- A solidão dos moribundos é, de longe, a pior solidão. Até um macróbio como eu tem medo da morte. E a pior morte é a morte solitária, sem carinho. 

- O abraço, portanto, é remédio sem igual para enfrentar a solitude e o medo de morrer. Prolonga a existência e revigora o coração. É tratamento sem igual para a saúde física e para o espírito. Não há novidade nisso, pois, no passado, em São Miguel das Missões, terra dos nossos ancestrais, já era utilizado. Obrigado.

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Alberta de Montecalvino:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/07/alberta-de-montecalvino.html
 

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Quintana e a Feira do Livro de Porto Alegre

Carlos Alberto de Souza
 
Mario Quintana. photo: Daniel de Andrade Simões*
 
 
Mario Quintana foi, por muitos anos, um frequentador assíduo da Feira do Livro.
 
Não faltavam razões para ele se esgueirar por entre as bancas que ano a ano foram se multiplicando e rompendo os limites da Praça da Alfândega.
 
Quintana era escritor, além de tradutor e crítico cuja opinião era abundantemente demandada por novos autores; portanto, a feira era um habitat natural para ele.
 
Quintana era poeta, e os poetas gostam de praças.
 
Quintana morava no Centro (habitou o Majestic, o Presidente, o Royal e o Porto Alegre Residence) e a proximidade desses hotéis com a feira também facilitava a ida reiterada do velho pedestre e fumante a cada edição do maior evento livreiro do Estado.
 
Quintana trabalhava no Centro, no Correio do Povo, contíguo à praça da feira, e os serviços que prestava à Editora/Revista do Globo deviam levá-lo ao quartel-general da empresa, na Rua da Praia, onde ficava a histórica livraria de mesmo nome.
 
Quintana era solteiro, não tinha família, pelo menos um núcleo familiar sólido - vale lembrar a dedicada presença da sobrinha Helena no fim da vida do tio querido. Ir à feira, onde teve a esperá-lo uma bela Bruna Lombardi, também era uma forma de fugir da solidão do quarto de hotel. Na praça e em outros lugares públicos, o poeta era admirado, festejado, abordado, acolhido, reconhecido. A rua sempre foi para ele uma espécie de antítese da Academia Brasileira de Letras.
 
Enfim, não faltavam razões para Quintana ir à feira. E, uma delas, convém não esquecer, a condição de leitor, de consumidor de livros, de remexedor de baús.
 
Jamais Mario Quintana foi à Feira do Livro, penso eu, “porque ele nos últimos anos era um velhinho folclórico...”, como disse, com rara infelicidade, o patrono da atual edição da feira, Luís Augusto Fischer, em entrevista a Zero Hora (caderno Cultura, pág. Central, 12/10/2013). Nessa, o dono da coluna Pesqueiro da própria ZH se enredou na linha do pensamento e das palavras e fez feio.
 
O bom professor tem a chance de se redimir homenageando Quintana no seu discurso de abertura da feira. Afinal, foi com a presença constante e pertinente de figuras como o poeta que a feira se fez e é o que é.
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Carlos Alberto de Souza é jornalista em Porto Alegre.
smcsouza@uol.com.br

domingo, 13 de outubro de 2013

Seco

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto




Secos pássaros dormem em ressequidos ninhos. Secas folhas de plátano se agitam contra o azul. Manhã silenciosa, bailarina morta na caixa de música, seca. Enferrujado relógio de parede, retratos na gaveta, tudo seco.

Secas as lágrimas na face do vento.

Coração seco, boca seca, mãos secas. Secas palavras. Secas pétalas de camélia vermelha dispersas no chão. Secos dedos dedilham secas cordas de violino. Seco, seco.

Secos abraços unem os amantes. Secas velas movem as faluas do Tejo.

Secos olhos olham o pôr-do-sol no Guaíba. Secos, secos.

Secos homens invadiram as ruas da cidade, cometeram tristes barbaridades.

O milharal, tão seco, pegou fogo.

Sentimento e pensamento, secos. O sexo, sem ternura, seco, seco. As páginas do livro de poemas por escrever, secas, secas.

Seco olhar observa no fundo do espelho.

A esperança, um rio seco dentro do coração, talvez volte a amanhecer.
 
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Texto revisto, publicado em 23, maio, 2011.