quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Drummond e a máquina de costura

Jorge Finatto


Carlos Drummond de Andrade¹

Uma antologia de poesia brasileira e uma máquina de costura. Que relação têm essas coisas? Nenhuma aparentemente. Mas foi através desse inusitado encontro que li, pela primeira vez na vida, um poema de Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987).

Neste 31 de outubro faz 111 anos que nasceu o grande poeta brasileiro.

Gosto de lembrar e contar essa história. Numa casa de gente pobre como era a nossa, livro raramente entrava, era artigo de luxo. Eu tinha 15 anos e minha mãe comprou a máquina de costurar pra cuidar das roupas da família.

Por feliz iniciativa do fabricante (ou da loja que vendia o produto, nunca soube), junto com a máquina vinham duas antologias: a de poesia brasileira e uma outra de poetas portugueses. Os dois volumes eram pequenos e grossos (trago-os até hoje na estante, são os livros que estão comigo há mais tempo).

A força viva da palavra apresentou-se diante de meus olhos quando li Cantiga de viúvo do bardo de Itabira. Algo estremeceu dentro de mim, uma porta se abriu e nunca mais fechou.

Como podia alguém escrever aquelas coisas, daquele jeito?

Havia tanto sentimento e beleza naqueles versos que me emocionei com a viuvez do poeta. Drummond tinha só 28 anos quando publicou Alguma Poesia, em 1930, seu primeiro livro, no qual está incluído o poema. Ele não era viúvo, pelo contrário, estava na flor da juventude e trilhava o caminho do conhecimento amoroso. A comovente história do poema tinha brotado da imaginação e da sensibilidade do escritor.

O texto drummondiano transmutou invenção em realidade na alma do adolescente leitor que eu era. Me tocou fundo a solidão do homem perplexo e sofrido ante a perda do seu amor.

Concluí que, se era possível dizer tais coisas com palavras tão simples, então valia a pena escrever. Despertar emoção e capacidade de sentir dor e alegria faz parte da missão dos poetas.

Fiquei para sempre com aquela impressão de força e limpeza da expressão escrita do poeta mineiro, confirmada depois de travar conhecimento com sua obra.

Drummond é uma lição perene de poesia.

Cantiga de viúvo²

A noite caiu na minh'alma,
fiquei triste sem querer.
Uma sombra veio vindo,
veio vindo, me abraçou.

Era a sombra de meu bem
que morreu há tanto tempo.

Me abraçou com tanto amor
me apertou com tanto fogo
me beijou, me consolou.

Depois riu devagarinho,
me disse adeus com a cabeça
e saiu. Fechou a porta.
Ouvi seus passos na escada.
Depois mais nada...
                                 acabou.

________________

¹Foto colhida na internet. O crédito será dado tão logo conhecido o autor.
²Poema do livro Alguma poesia, da antologia Reunião, 10 livros de poesia de CDA. Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1977.

Também sobre Drummond: A memória do Coração:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/04/memoria-do-coracao.html

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Porta aberta

Jorge Adelar Finatto


imagem de livro. fonte: jornal Público, Portugal.
 
 
Leio que o mundo dos blogues está à beira do precipício. Um escritor que costumo ler escreveu que estava pensando em abandonar o seu blog por falta de leitores, achava melhor fazer outra coisa.

Faz tempo que ele não publica um texto novo e eu, como seu leitor, sinto falta. Há uma espécie de velório antecipado deste meio de comunicação, democrático por excelência. Eu detesto velórios.

Prefiro as salas de espera das maternidades.
 
Muitas pessoas que têm blog (a maioria, acredito) não dispõem de outra opção, isto é, não têm onde publicar seus textos nos meios impressos tradicionais. Os blogueiros, com não muitas exceções, estão fora da era de Gutenberg, de onde foram expulsos pela falta de interessados em seus escritos. Faço parte deste time. 
 
Acontece que tem gente escrevendo e fazendo boas coisas nesse "velho e moribundo" mundo dos blogues. Não estamos falando, portanto, de falta de páginas interessantes.
 
Eu vim para a blogosfera impelido pela oportunidade que a internet proporciona, fazendo do indivíduo seu próprio editor, independente de intermediários. Nenhum outro meio é tão instantâneo e livre. Me acostumei ao novo modo de publicar, que além de tudo dispensa a derrubada de árvores para fazer papel e é extremamente acessível a todos em qualquer lugar do planeta.
 
Isso não significa que abandonei os livros de papel. Pelo contrário, cada vez amo mais os meus livros. Sou um fantasma do mundo de Gutenberg.  Enquanto publico no blog, meu espírito vagueia por sebos e livrarias como alma penada.

Gosto de sentir a textura do papel entre os dedos, o cheiro inefável das folhas. Aprecio levar o livro aonde vou, sinto falta de tocar no objeto.
 
A minha biblioteca caseira está cheia e quase não tem mais espaço para novas aquisições. Os da família se entreolham toda vez que chego em casa com um novo volume. Devem se consolar, talvez, pensando: ao menos ele não tem outros vícios (que se saiba).
 
Os livros e a leitura são uma doce e vital cachaça. Como disse Drummond, no poema Explicação, todo mundo tem sua cachaça. Não sou avesso a novidades e estou pensando a sério em comprar um leitor eletrônico de livros.
 
Não sei se a era dos blogues está no fim. Mas uma coisa eu sei: leitores não vão deixar de existir. Onde houver bom conteúdo haverá leitores por perto.

Mesmo um blog primitivo como este, só de textos e fotografias, encontra alguns interessados. Então, enquanto existir alguém aí do outro lado, estarei por aqui com a porta aberta. 
 

domingo, 27 de outubro de 2013

Celebro a vida que virá

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto. outubro 2013
 
Un petit espoir très féroce:
c’est moi!*
                                             Robert Lalonde

Ainda não nasci
sequer faço parte da paisagem
escuto uns gritos do outro lado: não estou

a sombra é apenas o começo
do previsível caminho
que vai dar na aurora

ainda não nasci
no entanto, é para breve

celebro a vida que virá
rompendo a escuridão
explodindo em alegria
como a primavera depois do inverno

sei onde isso terminará:
flor no extremo do ramo
beleza enchendo o vazio

faço do silêncio
um grande bosque
onde borboletas passeiam
pássaros inventam a claridade
com seu canto

imagina uma faísca que, súbito, paira no ar
uma palavra procurando um oco de boca
uma pequena luz que cresce: sou eu

_________

Poema do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
*Uma pequena esperança muito feroz: sou eu. Da obra Une belle journée d'avance. Éditions du Seuil, Paris. 1986.
 

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Meu encontro com Walt Whitman

Jorge Adelar Finatto 

photo: Walt Whitman, em 1887 . Autor: George C. Cox.
Fonte: Wikipédia.


O trabalho mudou minha vida de lugar  muitas vezes. Faz muitos anos morei numa cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul. O lugar se resumia a uma igreja católica e outra protestante, duas escolas, um hospital, algumas ruas e casas e pouca coisa mais. Em volta, a mata. Em certas tardes, eu saía a andar por estradas de chão, solitárias e com aroma silvestre.

Caminhar assim é como andar dentro de si mesmo.

Num dia de sol e frio, eu percorria um desses caminhos. Um córrego prateado corria na margem. Numa curva em frente, entre os altos plátanos que se erguiam nos dois lados da estrada, apareceu um homem. Quando nos cruzamos, ele me cumprimentou, em silêncio, fazendo um gentil aceno de cabeça, que eu retribuí.

Ele tinha uma barba branca abundante, uns olhos pequenos muito azuis, o cabelo na altura dos ombros. Usava um chapéu escuro com largas abas, a face um tanto rosada. Vestia um velho casaco, a camisa abotoada até o pescoço. Trazia um livro na mão esquerda.

Eu tive certeza de que se tratava do poeta norte-americano Walt Whitman (1819 – 1892).

Fiquei orgulhoso e feliz de estar ali, pisando o mesmo chão que o grande Walt.

Seria o espectro do poeta que eu vira? Seria alguém muito parecido?

Encontrei-o em outras duas ocasiões. Como da primeira vez, éramos só nós, a estrada verde, a brisa e o rumor do córrego. Fiquei observando o poeta. Ele entrava num desvio lateral da estrada, subia uns cinquenta metros em direção a uma pequena casa de madeira.

A casa era muito branca e delicada. Sozinha, lá no alto, mostrava cortinas azuis nas janelas abertas, e flores, muitas flores da estação no breve jardim em volta.

Walt entrava pela porta dos fundos e desaparecia.

Uma chaminé de alumínio saía pelo telhado.

Pensei em conversar com o poeta na última vez em que o encontrei. Talvez ele até dissesse alguns versos de Folhas da Relva, sua obra-prima. Mas não. Achei melhor não incomodar. Afinal, os poetas trabalham enquanto caminham em silêncio por estradas de chão.

Um dia chegou a hora de ir embora da cidade pequena.

A vida seguiu, muitos caminhos eu percorri depois. Mas nunca esqueci que, em certas tardes, numa cidadezinha do interior, eu caminhei na mesma estrada por onde andava Walt Whitman.

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Transbordante de Vida
                                                      Walt Whitman

Agora, transbordante de vida, sólido, visível,
No ano quarenta de minha existência, no ano oitenta e três dos Estados,
A alguém que viverá dentro de um século, ou em qualquer número de séculos,
A vós, que ainda não haveis nascido, dedico estes cantos, esforço-me por
alcançar-vos.
Quando lerdes, eu que sou agora visível, hei-de ter-me tornado invisível; então sereis vós, denso e visível, quem lerá os meus poemas, quem se esforçará por compreendê-los,
A imaginar quão felizes seríeis se me fora dado estar ao vosso lado e converter-me em vosso camarada;
Que seja, pois, como se eu estivesse. (Não duvideis demasiadamente que não esteja então ao vosso lado).

Poema extraído de O Livro de Ouro da Poesia dos Estados Unidos, coletânea de poemas organizada por Oswaldino Marques, edição bilíngue, Ediouro, tradução de Manuel Ferreira Santos.
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Texto revisto, publicado no blog em 17, abril, 2010.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Ventos da primavera

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 
 
A primavera traz, nas malas recém-abertas da longa viagem, roupas leves e coloridas. Nos últimos dias tem chovido e faz frio. Os inícios da primavera eu conheço bem. Por isso não me espantam os ventos andarilhos de outubro quase novembro. Quando se aproxima o Dia dos Mortos, 02 de novembro, é sempre assim.

Finados sem vento não é Finados.
 
Acordei no fim da madrugada e estou no escritório. Escuto música, leio alguma coisa antes que amanheça. Ainda é noite nas montanhas, o verde das árvores ainda dorme no escuro. Nenhum pássaro, nenhum canto. É hora de pálpebras fechadas. Mas a luz não tarda e todos os olhos se abrirão novamente para a vida e seu difícil ofício, a vida e seus mistérios.
 
Por mais que se queira ficar imóvel (tem dias que tudo que se quer é ficar calado num canto, mastigando silêncio, ruminando assombros, observando o invisível ), os ventos de primavera nos empurram, exigem movimentos, atitudes, escolhas, passos.
 
Se somos uma obra em progresso, toda vontade de inércia é uma ilusão. É isso que tenho de me lembrar a cada manhã.

Nunca é fácil sair do aconchego do ninho, mesmo depois de ganhar penas e envergar asas. Os primeiros e os últimos vôos do dia são um salto sobre abismo. Penso, às vezes, que viver é contornar precipícios.

O que resta é repousar algumas horas por noite, acordar, lavar o rosto, vestir a roupa e ir pra estrada. Partir na dança dos abismos.

As horas de contemplação são raras e compradas a peso de diamantes.

Por isso, bem-vindos aqueles que vêm a esta página em algum momento do seu dia. Espero que não saiam de mãos vazias.

O melhor a fazer a esta hora inaugural, quando a claridade emerge do leste e aponta entre os galhos e as folhas, é sair com esses ventos que cheiram à flor, sair com eles pelo amanhecer afora.

Deus é grande e viver é sempre bom.
 
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A grafia que utilizo, como se percebe, é a antiga, que ainda está em vigor, juntamente com a do acordo (?) ortográfico, que, ao que parece, fez água. Sobre o assunto:
O acordo ortográfico fazendo água:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/03/o-acordo-ortografico-fazendo-agua.html
  

domingo, 20 de outubro de 2013

Biografias versus biografados

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 

Trava-se acirrada discussão no Brasil sobre a publicação de biografias.

De um lado estão os que pretendem retirar do ordenamento jurídico os artigos 20 e 21 do Código Civil (Lei nº 10.406, de 2002), que, na prática, condicionam a publicação de biografias à autorização dos biografados, se vivos, ou de seus herdeiros, se mortos.

O autor e a editora até podem publicar sem autorização, mas ficam sujeitos a processo judicial de proibição, indenização e recolhimento da obra, caso as pessoas mencionadas não concordem com a edição.

Em sentido contrário, sustenta-se a plena aplicação dos dois dispositivos legais, à luz do art. 5º, X, da Constituição Federal, que tutela a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Entendem estes que a exigência de autorização deve permanecer. Postulam, alguns, a participação dos biografados nos lucros de suas biografias.
 
Entre os argumentos que li em favor da revogação da autorização, está o de que a exigência é verdadeira censura e afronta o direito constitucional da liberdade de expressão (art. 5º, IX, da Constituição Federal). Afirma-se que as normas em vigor não permitem a livre circulação da informação e constituem atraso em relação a países onde a autorização não é exigida, como nos Estados Unidos. Acrescenta-se que a limitação legal produz biografias chapa-branca, sujeitas à interferência de biografados e familiares.
 
Para engrossar o caldo, tramita no Congresso Nacional projeto para acabar com a autorização. E uma ação direta de inconstitucionalidade foi ajuizada no Supremo Tribunal Federal contra os artigos 20 e 21 do CC. Esta é, resumidamente, a controvérsia.

Entendo, inicialmente, que a liberdade de expressão não pertence somente às editoras e aos biógrafos, é um direito fundamental de todos os cidadãos, que não pode ser objeto de censura. Por outro lado, não pode ser vista como censura decisão judicial que, democraticamente, harmoniza princípios constitucionais de igual importância.

Há liberdade de expressão (e não censura) na manifestação dos que defendem a vida privada, a intimidade e a imagem, ainda que de figuras públicas.

Cada direito deve ser ponderado no âmbito do sistema jurídico como um todo, não isoladamente.
 
O que está posto em discussão, de forma equivocada a meu sentir, é que pessoas públicas não têm direito à intimidade e à vida privada, direitos protegidos constitucionalmente tanto quanto a liberdade de expressão. Como se, por exercerem ofício público (músicos, atletas, artistas, políticos, etc.), já não pudessem dispor da vida pessoal.

Não se deve confundir personalidade pública com direito de apropriação da vida alheia.

Pretender que, por ser persona pública, o indivíduo deva suportar que terceiro escreva sobre sua vida e comercialize a seu bel-prazer essa história configura, no mínimo, inaceitável invasão da vida do outro. Retirar do personagem a possibilidade de decidir contra isso é, na minha visão, uma violência.

A história de uma pessoa é seu maior patrimônio, a sua maior riqueza, e é o que deixa de mais importante como herança. Não parece justo nem razoável que alguém se aproprie desse patrimônio personalíssimo para divulgá-lo e comercializá-lo quando e como bem entender, enquanto ao biografado resta assistir a tudo calado, como se não fosse com ele.

Alguns argumentam que há interesse público na publicação de determinadas biografias. Na maioria dos casos, contudo, notadamente de biografados vivos e famosos, não é o interesse público que move o biógrafo, mas o interesse econômico. De resto, trata-se de erro grosseiro confundir interesse público (inexistente) com vontade de satisfazer a curiosidade pública, coisa bem diversa, movida esta pelo desejo pueril tão em moda de rastrear a privacidade e a intimidade alheias. 
  
Não há violação da liberdade de expressão nos artigos do Código Civil, mas sim a preservação do direito legítimo de todo indivíduo de dispor de sua história de vida, no qual está incluído aceitar ou não ser biografado. Está na esfera jurídica da pessoa decidir. Como negar isso a alguém? 
 
O que é público é o trabalho, a obra, a atividade profissional. Mas isto, de modo algum, significa que a pessoa não tenha mais direito a uma vida pessoal e de ser dono dela.
 
A liberdade de expressão, pedra fundamental no edifício do estado democrático de direito, não é, todavia, absoluta e encontra limites em outros direitos constitucionais.

O fato de personalidades como Michael Jackson terem por volta de 200 biografias não-autorizadas, por si só, não leva a concluir que o modelo americano possa ser transposto, sem ressalva, à realidade brasileira, tão diversa em múltiplos aspectos.

A vingar a tese da inconstitucionalidade ou da revogação dos artigos em questão, na prática se estará colocando a biografia de pessoas vivas em domínio público. Nunca será demais lembrar que a lei que protege os direitos autorais (Lei nº 9.610/1998) ampara os direitos do autor por 70 anos após sua morte... Como aceitar que a vida do criador, sua principal obra, caia de imediato em domínio público?

Penso que a lei pode ser aperfeiçoada. O artigo 20 pode ser melhorado, mas seria um grave erro simplesmente retirá-lo do mundo jurídico.
 
Por exemplo, acredito que seria um avanço fixar-se um prazo para o exercício do direito por parte dos herdeiros. Também seria, neste momento, oportuno, tanto no STF como no Congresso Nacional, realizar audiências públicas sobre o assunto,  a fim de enriquecer as decisões que serão tomadas nos dois poderes.

Caso o STF decida pela liberação geral das biografias, temo que será muito difícil preservar a vida dos direitos fundamentais em questão.

Por fim, observo que não é a primeira vez e nem será a última que normas constitucionais entram em aparente conflito. É a análise percuciente do caso concreto que determinará qual direito deve ser aplicado para a realização do justo. Há inúmeras situações em que a liberdade de expressão prevalece sobre normas de mesma hierarquia. E há casos em que não prevalece, sendo que a própria Constituição Federal, no artigo 220, parágrafo 1º, acena com limites.

Viver em democracia significa, essencialmente, conhecer estes limites e saber que não existem direitos absolutos.

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1. O presente artigo foi reproduzido no blog Interesse Público, do jornalista Frederico Vasconcelos, da Folha de São Paulo. Trata-se de um espaço democrático e qualificado da imprensa brasileira:

http://blogdofred.blogfolha.uol.com.br/2013/10/21/biografias-e-apropriacao-da-vida-alheia/ 

2.  A escritora Glória Perez divulgou o texto no seu twitter. Um abraço pra ela!
https://twitter.com/gloriafperez/status/397029073295126528

3. Atualizei parte do artigo em 29 de novembro de 2013.
 

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Púbi Mann contra o Terceiro Reich

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Lago da Ausência


O fato por todos conhecido em Passo dos Ausentes  é que Púbi Mann retornou à cidade depois de 14 anos, sem memória e envolto numa espessa névoa de silêncio, numa remota e fria tarde de junho de 1952. Não tinha uma história pra contar, não reconhecia mais o lugar, as pessoas nem a si próprio.

Eram quatro horas quando o Jeep verde do Exército rompeu a neblina na entrada da cidade. Parou na Praça da Ausência. Trazia quatro militares e aquele homem com barba ruiva, vestindo um grosso capote azul-marinho e botas de cano longo. No lado direito da cabeça, tinha uma profunda cicatriz onde o cabelo não crescia.

Púbi não olhava nos olhos das pessoas. Esboçava um vago e incompreensível sorriso. O olhar passeava curioso pelos telhados ao redor da praça.  Dois oficiais levaram-no até o Teatro da Vida Breve, que também é biblioteca, pinacoteca, cinemateca, café e local de encontros.

Mocita de la Vega, administradora do teatro, explicou aos soldados que tentaria localizar o filósofo Don Sigofredo de Alcantis, a quem caberia atender a missão, na condição de presidente da Sociedade Histórica, Geográfica, Geológica, Astronômica, Filosófica, Literária, Antropofágica e Artística de Passo dos Ausentes.  

Mas Don Sigofredo não se encontrava na cidade, estava longe, no Contraforte dos Capuchinhos, visitando Claudionor, o Anacoreta. Mocita, então, buscou Juan Niebla, o músico cego, na estação de trem abandonada. E foi Niebla, na condição de vice-presidente da SHGAFLA, quem recebeu os militares no gabinete.

- Conforme mostram os documentos que ora entregamos - disse um dos oficiais, que, depois de olhar para Niebla, interrompeu a fala e virou-se para seu colega. Este, com um gesto impaciente, mandou que continuasse. - Como eu dizia, o senhor Púbi Mann, que agora apresentamos, foi mandado de volta ao Brasil pelo governo da Alemanha.

- De acordo com o Informe 79/EB/52, ele foi incorporado como soldado cozinheiro na marinha daquele país em 1939, um ano depois de chegar na Alemanha, vindo do Brasil.  Foi um lamentável equívoco, dizem as autoridades alemãs, já que o senhor Púbi estava de passagem, procurando parentes distantes na cidade de Lübeck.

- Ocorre que os Mann tinham fugido da Alemanha com a ascensão do nazismo. Púbi ficou sem ter para onde ir. Foi expulso da pensão quando o dinheiro acabou e passou a vagar pelas ruas e praças de Lübeck. Não conseguia se comunicar direito, pois falava num dialeto alemão de emigrantes do século XIX. Dormia na rua. Os dias eram difíceis. As autoridades locais resolveram recolhê-lo a um abrigo. Fizeram-lhe novos documentos, só que como cidadão alemão, e o entregaram ao exército. Poucos dias depois, foi encaminhado à marinha de guerra, sendo incorporado como soldado cozinheiro.

Juan Niebla interrompeu e disse:

- Pobre Púbi. Sinto pelo seu silêncio que está ausente deste mundo. Éramos amigos de infância. Com a morte dos pais, ele resolveu viajar em busca de possíveis familiares na Alemanha. De nada adiantaram nossos avisos sobre o perigo da guerra. Foi em busca de uma obscura ancestralidade. Está mais oco do que quando partiu.

- Só que Púbi se negou a servir na armada de Hitler -, retomou o oficial. No quartel, as coisas ficaram ruins pra ele. Mesmo assim, foi embarcado. Remisso, negava-se a fazer qualquer coisa, quis organizar um motim e foi preso no porão do navio. Durante um bombardeio, um pedaço de aço atingiu-lhe a cabeça, ferindo-o gravemente. Ele perdeu a memória.  De volta, foi encaminhado a um campo de concentração na Alemanha.

- Depois da guerra, foi para um hospital psiquiátrico, de onde teve alta recentemente para ser devolvido ao Brasil. O informe diz ainda que ele recebe uma pensão mensal e vitalícia do governo daquele país por serviços prestados contra o nazismo, com sacrifício da própria saúde. Não há outros detalhes.

Os soldados partiram, afundando-se com o Jeep verde na neblina. Coube a Juan Niebla, com o auxílio do braço de Mocita, levar o desmemoriado pela mão até a casa da irmã Celina Mann, única parente viva.

Foi deste modo que Púbi Mann regressou a Passo dos Ausentes. Alto, magro, curvado e esquecido de tudo. Passava os dias sentado em silêncio na cadeira de balanço do avarandado do sobrado familiar. Celina, todos os dias, pelas cinco da tarde, lia para ele trechos da Bíblia.

Isto foi assim até o dia em que, do nada, durante uma caminhada com a irmã ao redor do Lago da Ausência, aconteceu o milagre que ninguém mais esperava. Púbi emergiu das trevas e contou a verdadeira e incrível história daquela cicatriz e de sua rebelião contra o Terceiro Reich. Mas isto já é outra história e caberá ao próprio Púbi contá-la, quando assim resolver.

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Texto revisto, publicado em 11 de junho, 2012.