domingo, 1 de junho de 2014

Estamos aí

Jorge Adelar Finatto
 
Os Cariocas. foto de Renata Massetti. a partir da esq: Neil,Severino,Elói,Fábio
 
 
Tem coisas que não se perdem. Não desaparecem no tempo. Vivem dentro de nós. Nos fazem bem e por isso queremos que fiquem sempre por perto. Viram sentimento.
 
O simples fato de existirem torna a vida melhor. Faz mais leve o nosso sofrer. Empurra a tristeza e a fuligem das horas pra depois.
 
Essas impressões me vêm após ouvir o cd Estamos aí, do conjunto Os Cariocas. Comprei na semana passada numa livraria em Porto Alegre. Coloquei pra tocar aqui em Passo dos Ausentes, nas tardes do escritório. Uma revelação.
 
Em sua décima formação, Os Cariocas são uma jóia da nossa música. O grupo vocal e instrumental gravou pela primeira vez em 1948. Severino Filho (1ª voz, piano e teclado) é o único que esteve em todas as formações. Os outros são: Elói Vicente ( 4ª voz, solos, violão e guitarra elétrica), Neil Teixeira (3ª voz, baixo elétrico e baixo acústico) e Fábio Luna (2ª voz, bateria, percussão e flautas). 
 
A maravilha deste trabalho, lançamento da Biscoito Fino, nos vem através de divinas harmonizações, em arranjos que beiram a perfeição (considerando que ela, a sempre buscada perfeição, não existe em nenhuma forma de arte).
 
Delicado, sofisticado, o disco é um sopro de renovação no ambiente musical do Brasil. Renovação? Sim, renova ao trazer uma releitura de notável qualidade de canções clássicas. São elas: Madame quer sambar (Joyce Moreno, Roberto Menescal e Carlos Lyra), Eu e a brisa (Johnny Alf), Januária (Chico Buarque), Que maravilha (Jorge Ben e Toquinho), Marina (Dorival Caymmi), Vera Cruz (Milton Nascimento e Márcio Borges), A noiva da cidade (Francis Hime e Chico Buarque), A felicidade (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), O amor em movimento (Chiquito Braga e Ronaldo Bastos), Estamos aí (Maurício Einhorn, Durval Ferreira e Regina Werneck).
 
O disco conta com a participação de convidados especiais como Chico Buarque, Chiquito Braga, Felix Junior, Francis Hime, Hernane Castro, João Carlos Coutinho e Leny Andrade. 
 
Impressiona, desde logo, a felicidade que a gente sente ao ouvir Os Cariocas. Algo como andar de bicicleta pelas faixas do arco-íris. Percebemos que é isso que eles também sentem ao tocar e cantar. São de tirar o fôlego os arranjos.

Eles conseguem, por exemplo, fazer uma interpretação requintada e diferente de Que maravilha. Pra não falar de Januária, com Chico cantando com um fio de voz quase a capela. E o que dizer do sentimento em Vera Cruz? Todos os arranjos do disco são brilhantes e inesquecíveis.
 
No meio de uma realidade tão triste, pesada, violenta e trágica como a brasileira, onde linchamentos diários convivem com alta corrupção, Os Cariocas vêm nos lembrar que um outro Brasil existe, um país de alma encantadora (embora encabulado e em absoluta minoria neste momento).
 
O Brasil das pessoas trabalhadoras, sensíveis, criativas e honestas, que dão o seu melhor naquilo que fazem. Pessoas simples (a grandeza está na simplicidade), capazes de nos emocionar e nos tirar do fundo do buraco negro em que estamos vivendo.

Só por isso (ou por tudo isso) este disco merece figurar entre os mais importantes editados no Brasil nos últimos anos.
 
Os Cariocas nos devolvem um pouco do muito que perdemos em poesia, beleza, sossego e esperança num tempo melhor e mais feliz (pra todos) aqui na Terra de Vera Cruz.

Eu não acreditava que isso ainda fosse possível. Mas, com sua arte, Os Cariocas mostram que sim, ainda dá pra sonhar com o paraíso.
 

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Camafeu sentimental

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto. reflexos

Uma fotografia há muito tempo na gaveta é um achado. Ele já esteve nesse lugar. Nem sabe mais quando.
 
Uma velha casa de madeira entre pinheiros e plátanos. Um córrego esperto cantando ali perto. Pode ouvi-lo agora claramente. Na janelas laterais, floreiras com gerânios de variadas cores. O som côncavo do sino de bambu na varanda.
 
Lá dentro, em volta de uma grande mesa, pessoas se reúnem para o café da tarde. Um alarido de véspera de primavera. Deve ser início de setembro. O menino olha aqueles rostos iluminados.
 
O cheiro de pão feito em casa, no fogão de ferro, se espalha pela casa.

Em volta daquela mesa, retratos na parede. Dentro dos retratos o tempo parou. Em volta da casa, o mundo gira em lentas rotações.

O aroma de jasmim invade o ambiente. No quintal, caminha-se entre laranjeiras, caquizeiros, ameixeiras, romãs, pitangueiras, mamoeiros, parreiras, abacateiros.
 
O cinamomo florido abre os galhos perto do poço, o banco pintado de branco embaixo.

Há muito tempo ele não visitava a casa ancestral.

As buganvílias exalam azul e branco no jardim.

O gato dorme entre novelos de lã na cadeira de balanço.

Um dia recortado no tempo. Pessoas vivendo sem medo da separação. Cálida alegria.

A fotografia, camafeu sentimental.

Deve ter sido assim, num lugar assim, num tempo assim, ele foi feliz um dia, sem saber o que era felicidade.
 
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Texto revisto, publicado antes em 7, setembro, 2011.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

A máquina de desmorrer

Jorge Adelar Finatto 
 
photo: j.finatto


Diziam os antigos que cada pessoa tem o seu anjo da guarda. Anjo bondoso e santo que vela o sono, releva os erros, protege dos perigos, aconselha, sabe perdoar. Anjo zeloso e protetor que anima o coração desolado, guarda e ajuda a viver.

Não sei se os anjos ainda estão por aqui, tal o estado que os homens deixaram o mundo. Se pudesse fazer um pedido, pedia ao meu anjo da guarda que inventasse depressa a máquina de desmorrer.

Sim, para acabar com o problema do desnascimento que todos os homens e mulheres carregam dentro de si e dele não conseguem se livrar. Porque desnascer, ou deixar de andar sob o sol, é coisa das mais tristes, sem nenhum sentido, um desperdício enorme de tempo, esforço, sonhos e sentimento.

Uma vez expulso o desnascer de nossas vidas, com a eternidade toda pela frente, quanta coisa bonita haveríamos de fazer e conhecer! Teríamos os dias necessários para consertar o que ficou torto, o que não deu certo.

Vou fazer muitos barcos de papel para soltar no Arroio Tega, nas manhãs da eternidade. Passearei com meu guarda-chuva nas ruas molhadas e vazias de Passo dos Ausentes. Subirei na perna de pau na Noite de São João, olharei a Lua da janela do meu quarto de menino, pescarei estrelas com o chapéu.

Descobrirei o nome de todas as flores e árvores. Pedirei, também, ao meu anjo protetor que traga de volta, sem mais demora, os seres amados que já partiram. Sim, estou cansado de viver longe deles, sinto muitas saudades.

Quero todos os ausentes por perto outra vez. Principalmente nessas solitárias noites tão frias, tão povoadas de neblina e memória. O banzo que isto dá na gente.

Os invisíveis habitam o coração do outono.
 

segunda-feira, 26 de maio de 2014

No café do tempo com Ruy Belo

Jorge Adelar Finatto
 

Ruy Belo
Estou aqui no café, esta velha casa serrana de madeira, com suas mesas cobertas com toalhas coloridas de tecido xadrez. Hoje é quarta-feira, 18h, 10 de outubro de 2012.

O texto vai datado, um tempo de clepsidra, para que os arqueólogos literários, daqui a 50, 100 anos, possam se situar, se por acaso chegarem com seus instrumentos de escavação nesta página carcomida pelo tempo. Peço desculpas, antecipadamente, porque não estarei aqui para recebê-los.

Estou com os sapatos molhados de andar na chuva. Molhados de sonho, de distância. Olho agora através da janela do café, o frio molhado, espelhado, que faz na rua. Um pouco de neblina, vento.
 
Que raio de primavera, diz alguém. Eu não digo nada, só quero curtir o clima, acho isso uma beleza, dia pluvioso, gris. Porque além do frio, as flores dos arbustos fluem em azul e branco, mais o perfume, pena não se possa, ainda, reproduzir aroma na página luminosa.

As primaveras - assim chamam-se esses arbustos - florescem nos pátios, terrenos baldios, calçadas da pequena cidade.
 
O rastro de chuva, gotas prateadas, sobre o capote azul que penduro na cadeira ao lado, não quero arriscar um resfriado, uma gripe. Um espirro sobre o texto seria uma indelicadeza com o raro leitor.

Hoje me sinto trinta anos atrás (a idade, nessa altura, pouco importa, tantas vezes já morri e tantas outras ressuscitei), o que importa é que cheguei até esse dia de chuva luminosa, meio sem eira nem beira, talvez, mas profundamente agradecido por poder andar na chuva me molhando e por estar agora aqui no café, num dia assim de fria, úmida, cálida primavera.

Um dia assim enfaruscado, quando tudo parece perdido para alguns, mas aí acontece de poder sentar nesta mesa, numa velha casa serrana, numa quarta-feira de tarde.
 
Escrevo essas coisas na folha branca do guardanapo, o café fumega na xícara, tem cheiro e um certo gosto de anis-estrelado.

No bolso do capote (azul-marinho), encontro um papel dobrado, o que será?

Uma folha de calendário marcando o dia 7 de abril de 2003, uma segunda-feira. Nela está escrito um texto do poeta português Ruy Belo (1933 - 1978), o poema se chama O valor do Vento (do livro Todos os Poemas). Ouçamos o que diz o bardo:
 
Está hoje um dia de vento e eu gosto do vento
O vento tem entrado nos meus versos de todas as maneiras e
só entram nos meus versos as coisas de que gosto
O vento das árvores o vento dos cabelos
o vento do inverno o vento do verão
O vento é o melhor veículo que conheço
Só ele traz o perfume das flores só ele traz
a música que jaz à beira-mar em agosto
Mas só hoje soube o verdadeiro valor do vento
O vento actualmente vale oitenta escudos
Partiu-se o vidro grande da janela do meu quarto
 
É belo o poema, belo o poeta Ruy Belo na sua busca do inefável, da emoção além das palavras. Tão belo como este dia de inverno na primavera.
 
O calendário, lembrei, comprei numa livraria em Lisboa, dele tirei esta página e guardei no bolso do capote para que o poema esteja sempre por perto, para que a poesia não me abandone, para que possa conversar com o Belo poeta enquanto caminho por aí em dias de chuva e vento.

Trazer poemas no coração é uma maneira de tentar parar o tempo, ainda que por um ínfimo instante.
 
Agora escureceu, o tempo escorreu na clepsidra. A garoa miúda escorre no vidro do café serrano. Gotas de luz deslizam nos óculos.
 
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Foto: Ruy Belo. O crédito da imagem será dado tão logo conhecido. Fonte: http://norastoderuybelo.blogspot.com.br/
 Leia sobre Ruy Belo:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/03/ruy-belo.html
Texto revisto, publicado antes em 12/10/2012. 

domingo, 25 de maio de 2014

Os gatos e o medo de voar

Jorge Adelar Finatto

ilustração: Maria Machiavelli

Dizem que os gatos pressentem quando o dono vai morrer.

Desde que Nefelindo Acquaviva me convidou pra fazer com ele o vôo inaugural do dirigível O Invencido (que construiu no galpão do quintal de sua casa, como todas as estrovengas voadoras que criou) meu gato Pituca não saiu mais de perto de mim.
 
Nefelindo Acquaviva é considerado o pai da aviação em Passo dos Ausentes. Um doido com alma de Ícaro.

O que seria do mundo sem os doidos, ele costuma perguntar, apontando ambas as mãos para o peito. E ele mesmo responde: ainda andaríamos de quatro e moraríamos em grutas úmidas, malcheirosas e povoadas de morcegos.

Tudo que alguma vez voou nesses céus dos Campos de Cima do Esquecimento passou pelas mãos de Acquaviva, com exceção dos balões misteriosos sobre os quais já falei aqui. Da mesma forma, todas as geringonças que se espatifaram no chão também foram obra dele. Ele coleciona 22 quedas com seus objetos voadores, não incluídos aí os tombos na fase de decolagem, mais de trinta.
 
Sim, eu temo pela minha vida. Como temi das outras vezes em que concordei em acompanhá-lo em vôos abissais pelo Vale do Olhar. Mas sou amigo do nosso Santos Dumont e é difícil dizer não a um amigo.

A vontade de voar é tão antiga quanto a presença do ser humano neste mundo de Deus.

Se o Criador não nos deu asas, deu-nos pra compensar a capacidade de sonhar e é o que fazemos na maior parte do tempo, do contrário a vida seria insuportável.

Da última vez em que saí pelos ares com Acquaviva, estávamos a bordo do Besouro Voador, espécie de motociclo com São Cristóvão ao lado, dentro do qual eu estava, e duas pequenas asas. O aparelho começou a soltar vários estouros em pleno vôo, a 100 metros de altitude, até que parou de funcionar.

Caímos em queda oblíqua em direção à igreja. Cerca de meio minuto depois, arrebentamos e atravessamos o vitral principal. Desabamos na frente do altar, diante do padre, em plena missa das seis da tarde.

O acidente causou um sério desentendimento entre a Igreja Católica e a Aviação em Passo dos Ausentes, que culminou com o rompimento de relações.

Há muito que Nefelindo e o padre Krauss trocam farpas por questões filosóficas e em razão de um outro acidente aéreo que quebrou a torre da igreja.  O padre acha que os ataques são propositais, parte de um plano de Acquaviva para acabar com a Igreja.

Por milagre, não morremos ali mesmo, no meio dos cacos coloridos do vitral. Impossível não lembrar as fortes palavras que o senhor pároco nos dirigiu na ocasião, impublicáveis neste espaço.

A questão é: como posso dizer não a Acquaviva sem magoá-lo, sem ferir de morte seu sonho de voar no mais pesado que o ar? Por outro lado, como dizer sim, sem morrer depois?

A única pessoa, além de mim, que sempre aceitou voar com ele é Juan Niebla, o músico cego do bandoneón, que toca na estação de trem abandonada. Mas Niebla está com 89 anos.
 
Em janeiro último, Acquaviva terminou de construir O Invencido, utilizando o motor de seu antiquíssimo fusca. Quando entrei no galpão naquela manhã de sábado, ele tomava chimarrão sentado cabisbaixo sobre um pelego, encostado na carroça que também faz as vezes de cama.Vestia o gasto macacão azul-marinho e as botas pretas de cano longo.

A negra cabeleira escorrida e o grosso bigode nem de longe denunciam o jovial homem de 70 anos.

Ao me ver, seu rosto se iluminou e ele abriu um sorriso. Veio lépido na minha direção, me pegou pelo braço e disse que tinha algo para mostrar lá no Ninho do Esqueleto. Com emoção, retirou o enorme lençol que cobria o dirigível.

- Faltam poucos dias pra ficar pronto, só mais uns detalhes. Olha a maravilha. Nunca ninguém construiu algo assim. Um dirigível compacto, pra duas pessoas, com seis pequenas janelas pra admirar tudo lá de cima. Tem um beliche, uma geladeirinha, um minifoguareiro, um armarinho, um mínúsculo banheiro e o painel com os instrumentos de navegação, entre os quais aquele telescópio pra ver as estrelas. Não só chegaremos a Porto Alegre desta vez como vamos até o mar. Prepare-se, partiremos em meados de maio. O dia glorioso se aproxima.

O Pituca não sai mais do meu lado. Onde quer que eu vá o gato vem atrás. Mia de um jeito estranho e insistente, quase não me deixa trabalhar no escritório.

Desconfio que ao invés de uma placa comemorativa, no dia da glória, vamos ganhar um epitáfio: Aqui jazem dois idiotas, gravado na lápide do túmulo que reunirá o que sobrou de nossos corpos, se é que alguma coisa vai restar depois do desastre anunciado.
 
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Texto revisto, publicado em 23 de abril, 2013.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

A aventura do flamingo cor-de-rosa

Jorge Adelar Finatto
 
Flamingo. Foto: Aaron Logan. Fonte: Wikipédia
 

O flamingo pousou na popa do veleiro quando passávamos pela Ilha do Barba Negra, na Lagoa dos Patos (que, àquela hora, brilhava sob o sol amarelo e intenso da tarde de fevereiro).
 
Pousou ao lado de Filipo, o papagaio marinheiro, que estava sentado e distraído na beira do barco, os olhinhos fechados, peito estufado respirando a brisa. Filipo deu um salto com o susto, o boné de marinheirinho caiu na água. O flamingo recolheu-o com o bico.

Essas surpresas acontecem na vida de quem navega. Tínhamos saído para dar um giro com nosso veleiro Solitário, a fim de rever as belezas do Rio Guaíba e da Lagoa dos Patos, suas ilhas e pássaros. E também para ficar distante do ruído e do trânsito violento da cidade, da correria agressiva e sem sentido.

Filipo indagou do flamingo, na linguagem das aves, qual era seu nome e de onde vinha. Ele respondeu que se chamava Arquibaldo e que vinha de Amsterdam, sua cidade natal, na Holanda.

Vivia com a família num barco abandonado num dos canais daquela bela cidade. Estava em viagem de férias com os pais e irmãos quando o inesperado aconteceu.
 
Amsterdam. photo: j.finatto
 
Na altura do arquipélago dos Açores, uma tempestade dispersou a família de flamingos e arremessou Arquibaldo em outra direção, separando-o do grupo. Depois de vencer o medo e a ventania, voou muito e pegou carona num navio.
 
Acabou chegando ao sul do Brasil após vinte dias, quando o navio fundeou no porto de Rio Grande. Depois Arquibaldo saiu voando, seguindo o rumo da Lagoa dos Patos até nos encontrar. Estava exausto e atordoado com os últimos acontecimentos.

Os flamingos, em geral, têm a plumagem cor-de-rosa. Em Arquibaldo essa cor é ainda mais viva, um rosa antigo de doer nos olhos. Providenciamos uma boa alimentação e um bom descanso na cabine para nosso novo amigo.
 
Arquibaldo é um flamingo adolescente e observador, com bom humor e espírito de aventura. Sentiu-se tão bem que pretende ficar conosco até o final do verão, quando então regressará para junto de sua família na casa-barco de Amsterdam.
 
O peixinho Moisés, nosso companheiro de navegações, pulou do Guaíba para o interior do barco e ficou dentro do balde conversando com Arquibaldo.

Na Ilha das Pedras Brancas, rumamos em direção ao Parque da Harmonia e, daí, para o velho cais de Porto Alegre, sempre ouvindo a incrível história do mais novo membro da tripulação.

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Mais aventuras do veleiro Solitário em:

Navegador de barco de papel
http://ofazedordeauroras.blogspot.com/2011/08/navegador-de-barco-de-papel.html

A volta do barco de papel
http://ofazedordeauroras.blogspot.com/2010/10/volta-do-barco-de-papel.html

Texto revisto, publicado em 10.02.2012.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Notícia do Principado da Pontinha

Jorge Adelar Finatto
 
Dom Renato I, o Justo

Os meus irmãos portugueses sofrem com o PIB (Produto Interno Bruto). Eu ofereço-vos a FIB (Felicidade Interna Bruta).

Sua Alteza, Dom Renato I, o Justo, príncipe da Pontinha, dispõe-se a comprar Portugal por 1 euro e afirma que governará o país melhor do que os portugueses, além de assumir a totalidade da dívida existente.*
 
A Pontinha, como o próprio nome indica, é um pequeníssimo território (178 m²) situado num rochedo da baía do Funchal, capital da Região Autônoma da Madeira, pertencente a Portugal, na costa da África. A distância que a separa da terra é de 70 metros, que são percorridos a pé através de uma ponte construída por Dom José I, Rei de Portugal, no século XVIII.

No Principado Ilhéu da Pontinha (nome oficial) há uma única construção, o Forte São José, o diamante que ilumina a pérola do Atlântico,² onde vive o soberano. Ele diz que seus súditos estão espalhados pelo mundo, tal como os portugueses têm os seus emigrantes, e que a Pontinha tem representação diplomática em diversos países, inclusive no Brasil.

Bandeira do Principado

O lema do Principado é formulado, como convém, em latim: Verbum volat, scriptum manet (As palavras faladas voam, as escritas permanecem).

Renato Barros, que é português e professor, informa que comprou o ilhéu no ano 2000. Após autoproclamou-se príncipe e declarou a independência que, por óbvio, não é reconhecida por Portugal. Desde então reivindica o reconhecimento político de seu Estado, o mais pequeno principado do mundo, inclusive junto à ONU. No momento desta entrevista concedida ao jornal i, de Portugal, estava à procura de uma nova primeira-dama. Ouçamos Dom Renato:

Tal qual Portugal se desfez de vários territórios (Macau, Timor, Goa, Moçambique, Guiné, etc), também a minha ilha - o Principado Ilhéu da Pontinha - foi alienada pelo vosso rei D. Carlos I em outubro de 1903. É uma realidade que as vossas autoridades pretendem camuflar e daí ser mais fácil mandarem-me chamar louco ou irresponsável. Quando o que estou a fazer é o legítimo exercício de um direito à autodeterminação.

O príncipe salienta que tem dupla cidadania - luso-fortense - e que não renega suas origens lusas, apenas não me conformo com quem governa (mal) os portugueses. Define-se como cristão, mas admite que cada pessoa tenha o seu deus e a sua religião na Pontinha. Faz saber que o presidente de Portugal, Cavaco Silva, deve-lhe dinheiro e critica os bancos e a política.

photo da Pontinha. fonte: sítio oficial

Lembra, também, que seu Estado minimalista não possui dívidas. Falando a respeito da crise, esclarece que somente leves ricochetes chegaram até o Principado. Objeta que no continente existem crise de valores, ignorância, inveja, mesquinhez e falta de sentido de humor.

No que se refere à economia da Pontinha, ele explica:

Enquanto andam a assassinar a economia portuguesa, eu dei instruções claras ao meu governo para fomentar e diversificar áreas de negócio que dêem aos portugueses (que pretendam a dupla nacionalidade luso-fortense e a outros cidadãos do mundo) emprego, bem-estar econômico e desenvolvimento cultural. Tenho, por exemplo, um Real Centro Internacional de Negócios e as minhas 200 reais milhas marítimas para explorar.

Sobre o Estado social, argumenta que não o considera um conceito insustentável:

O que é insustentável são as mordomias de quem 'gere' (dilapida) o Estado social. A riqueza está mal distribuída em todos os países. E se em vez de recapitalizarem os bancos começarem a recapitalizar as famílias e as pequenas e médias empresas, então o vosso problema estará automaticamente resolvido. Mas vocês, portugueses, infelizmente, são uns cobardes, têm medo de quem está no poder. Não os vêem como meros empregados, que recebem um vencimento à conta dos vossos impostos.

No que concerne à ideologia, esquerda ou direita, observa Dom Renato I:

Defino-me como Justo, que, ao contrário de quem vos governa, põe os interesses coletivos acima dos individuais. Desde que a Revolução Russa de 1917 foi financiada pelo banco americano J.P. Morgan que só não percebe quem é burro: a ideologia é uma treta, apenas serve para dividir e não para fazer as pessoas pensarem em boas ou más gestões dos dinheiros públicos (dos contribuintes). E para os obrigarem a prestar contas e a repor os desvios.

A propósito das vantagens aos portugueses que queiram mudar-se para o Principado da Pontinha, informa Sua Alteza:

Os meus irmãos portugueses sofrem com o PIB (Produto Interno Bruto). Eu ofereço-vos a FIB (Felicidade Interna Bruta). Quando os portugueses perceberem que andaram a ser enganados e derem valor ao ser em vez de ao ter, então, mesmo para vós, tudo começará a fazer sentido. Vendam-me Portugal, pois eu governarei melhor os portugueses. Não é o dinheiro nem o poder que me movem, ao contrário do que acontece convosco.

Bem, digo eu, diante das idéias sociais e políticas de Dom Renato I, o Justo, se eu resolver um dia desses emigrar do Brasil (como muita gente está querendo fazer), a fim de buscar um lugar menos violento, mais harmonioso e feliz, vou pensar no Principado da Pontinha (onde, aliás, não se precisa de passaporte para entrar). 

Afinal, Dom Renato revela acurado bom humor, indispensável para se viver, qualidade de resto tão em falta, neste momento, na Terra de Vera Cruz. Além disso, na sua ilha existe espírito público e a criatividade e a alegria são, pelos vistos, muito estimadas.

Um lugar, enfim, para não se olvidar no caso de emigração ou durante a próxima viagem.

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*As declarações de Dom Renato I, cujo resumo aqui reproduzo, foram retiradas de entrevista que o príncipe concedeu ao jornal i, de Portugal, feita pela jornalista Rosa Ramos e publicada em 15 de agosto de 2013. Para ler a matéria completa, acesse o link: