quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Fanicos e farfalhas

Jorge Adelar Finatto
 
photo de joaninha: Wikipédia. Autor: Jon Sullivan (PD-PDphoto.org]

Quem viu alguma vez uma joaninha caminhando na página de um livro ou sobre uma folha verde sabe do que estou falando.

É o acontecimento mais importante do universo. 

Nenhuma literatura, nenhum cinema, nenhuma filosofia do mundo valem os passos da joaninha. Só que pouca gente percebe o engenho e a arte por trás da construção e da vida da frágil joaninha. 

Existem muitos outros assuntos importantes para se tratar, está bem. Um escritor-fotógrafo a sério não devia ignorar isso. Tudo bem. O fato, contudo, é que me encanto com os farelos do mundo, com a coisa pouca ou nenhuma que somos. Com um raio de sol na parede ou caído dentro de um copo dágua sobre a mesa. 

As coisas pequenas me atraem, me cativam, me elevam. As outras me enfadam, quando não revoltam. Encontro beleza e claridade nos fanicos da existência.

Tudo que é breve e pequeno se parece com ser humano e com estar vivo e ser transitório, e isso me interessa sobretudo.

Os verdadeiros e últimos sentidos habitam muito além das aparências, é assim que eu vejo. E o que eu mais enxergo, quando penso profundamente na vida, é a pequenina joaninha.
 

O mundo silencioso das migalhas me é, por isso, muito caro e diz muito mais sobre o que nós somos - ou o que sou eu, ao menos - do que um tratado ontológico. Quando perdemos a capacidade de expressar o que sentimos, é como se perdêssemos a vida.

Deus nos livre e guarde. 

Na arte, ao menos, podemos voar, sonhar, levitar acima dos mausoléus e crematórios existenciais. Mas sei também que ninguém pode viver entre nuvens.
Deve haver um caminho de passagem entre as farfalhas da vida e a copa das estrelas; entre a imensidão da Via Láctea e os passos humildes e comoventes da joaninha.
____________________

Texto revisto, publicado antes em 25/11/2012.

domingo, 9 de agosto de 2015

A sombra da esfinge

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto
 

Como ele nunca teve pai para amar, sempre lhe pareceu que a coisa mais em falta no mundo não é dinheiro, nem ouro, nem diamante, nem qualquer outra coisa, mas um abraço de pai.

Quando menino, era difícil explicar aquela ausência para os outros de sua idade. Na rua e na escola, as pessoas faziam perguntas, cara de admiração. Não ter pai era mesmo que não ter um braço ou uma perna.

A sombra da esfinge o perseguiu pela vida. No dia dos pais, aniversários, natais, páscoas, reuniões da escola, fins de semana, noites e dias sem fim. A falta projetou-se nos seus sonhos e pesadelos.

Um dia descobriu, admirado, que muitas outras casas não tinham também a figura ausente. Só que muita gente escondia isso. Estranho: escondiam um ser que na realidade não existia. Ocultavam o mito. Alguns possuíam apenas uma deprimente figura paterna, que mais atrapalha que ajuda.

Os sem pai já não eram exceção. Talvez fossem até maioria.

Ficou nele a idéia de que as mulheres, e não os homens, fazem o mundo funcionar. São pais e mães de seus filhos.

Na verdade não chegava a ser um consolo, mas a consciência de uma espécie de mutilação social. Sim, falta o pai afetivo em grande parte das famílias brasileiras. Às vezes, ele existe, mas é como se não existisse.

Por essas e por outras, uma parte da humanidade é toda seqüelada, ele pensava enquanto caminhava com o filho pela mão, na praça do bairro, na tarde de domingo.
 
Pra ele, agora, todo dia é dia dos pais.
 
___________
 
Texto revisto, publicado em 16 de maio, 2013. 

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Aquário

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto


No teu rosto
habitam peixes
de todas as cores

às vezes um sonho cruza
as tuas pestanas

mas é só um reflexo
foges rápido pro outro lado

__________

Poema do livro Viveiro. Jorge A. Finatto. Edições Sanguinovo, São Paulo, 1981.

domingo, 2 de agosto de 2015

Viver no Bom Fim

Jorge Adelar Finatto

Amantes sobre a cidade (Vitebsk), 1918. Marc Chagall.
 
Só é meu
O país que trago dentro da alma.
Entro nele sem passaporte
Como em minha casa.
Ele vê a minha tristeza
E a minha solidão.
Me acalanta.
                           Marc Chagall*

Um dia eu vou viver no Bom Fim. Deixarei tudo pra trás e vou viver a vida real dos filmes, músicas, livros, pinturas, histórias e memórias do velho judeu bairro porto-alegrense.

O fim do mundo está batendo na porta todos os dias, proclamam os jornais. Está mais do que na hora de voar feliz outra vez sobre aqueles telhados, como fazia na adolescência, à semelhança dos amantes e violinistas dos quadros de Chagall.

No sábado passado, quando o céu veio abaixo, percebi que era o certo a fazer. O fim do mundo era uma questão de horas. Tomei o banho de chuva enquanto visitava sebos atrás de um livro.

Choveu tanto que lá pelas tantas comecei a retirar peixinhos que nadavam nos bolsos do meu casaco. Soltei-os na correnteza junto à calçada entre os barcos de papel que navegavam velozmente.

Vi pessoas andando e conversando sob os guarda-chuvas. Vi aqueles pequenos edifícios através das lentes ensopadas, uns grudados nos outros, parecendo jogos de armar de tijolinhos de madeira.

Em meio ao dilúvio que caía, tomei a decisão de ir viver nos cafés, livrarias, teatros, bares, fruteiras, esquinas e cinemas do Bom Fim (se é que ainda existem cinemas de rua no bairro, como os extintos Baltimore e o Bristol).

Levarei os dias a olhar as altas palmeiras da Oswaldo Aranha. Nas noites de inverno, quando a solidão bate mais fundo, sairei a caminhar com os camaradas pelas ruas do bairro.

Como no tempo da Esquina Maldita, da qual fui frequentador eventual, entre 1976 e 1980. Nenhum outro lugar da cidade tinha aquele clima de resistência à ditadura e à desesperança.

Assim era a Esquina: meio Sartre, meio Castor, meio Fernando Ribeiro, meio Scola, meio Caio Fernando Abreu, meio Cantos de Maldoror. Bar Alaska, Isaac, Revolução Cubana, rodas de violão, conversas, namoros. Meio fim de noite, meio começo de alguma coisa. 

Nos telhados das poucas casas que restam, talvez se possam ouvir ainda os violinistas. Casais talvez flutuem da mãos dadas pelo espaço. Personagens saídos das pinturas de Chagall habitavam os ares do Bom Fim.
 
Uma carroça carregada de flores costumava estacionar, nas noites de julho, na esquina das ruas Fernandes Vieira e Vasco da Gama. O florista - um velho judeu remanescente dos judeus que fundaram o bairro - alimentava o cavalo tirando capim de um saco. Depois saía a distribuir cestos de flores na porta das casas e no portão dos edifícios.

Antes de amanhecer, ele subia na carroça e sumia na névoa. Só se ouvia o tóc-tóc das patas do cavalo sobre as pedras em direção ao Parque da Redenção. Por causa dele uma suave fragrância se espalhava pelas ruas.

Um dia vou viver no Bom Fim. É lá que habitam, nos cinemas, bibliotecas, sótãos e calçadas, amigos espirituais como Carlitos, Ingmar Bergman, Kafka, Chagall, Samuel Rawet, Scholem Aleikhem, Fellini e muitos outros, que nos ajudam a não desistir diante do temporal.
____________

Um poema de Chagall (fragmento). Tradução de Manuel Bandeira. Antologia poética, 7ª ed., Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1974.
 

quarta-feira, 29 de julho de 2015

A fala de Arlequim

Jorge Adelar Finatto
 
Veneza, Itália. photo: jfinatto

Querer eu quero, e o querer é tudo. Cumpro os regulamentos do invisível.

De silêncio em silêncio, as difíceis passagens. Eu sinto no calado.

Os comedimentos. A pessoa sonhada tem certos jeitos. De não se deixar ver, nem tocar, nem sentir, nem sonhar. Os caprichos do ser amado.

As magnólias me doem no inverno de tão belas. Eu lírico. Os tormentos do amador. A musa é do tipo nem aí. Não sabe de mim.

Arlequim ao relento eu sou. Os rigores da lira me dilaceram. Vivo no austero das horas. Sinto no meu segredo.

Ela não me vê. Eu a vejo. Amador.
 
A musa é só o motivo. Eu sou o seu adamastor.

O que dorme no banco da praça. O que mora dentro do casaco e da manta. O do chapéu ridículo. O que fala algaravias no café. O que não suporta gritos. O que senta no cais a olhar as faluas e gaivotas.

Caminho à beira dos penhascos.
 
Ruínas são coisas que habitam no íntimo da pessoa. O que se fala e o outro não entende. Um diz aurora, a musa entende anoitecer. As palavras, tonterias.

Sentimento é o ora-veja da vida. Cultivo distância, alimento paciência. A musa e seu mistério e seu desdém.

O ser sonhado tem certos olhares. A musa vive num jardim secreto que eu mesmo inventei. A trança de linho desce pelo muro escarpado do castelo. Eu romântico.
 
A vida gira no esconso das horas cinzas.

Os trapos coloridos do meu coração ao vento.

Amador, amador. 
_______________
Texto revisto, publicado em 30 de outubro, 2010.

domingo, 26 de julho de 2015

A porta misteriosa

Jorge Adelar Finatto
 
fotos: jfinatto

 
Um leitor observa que as fotografias aqui publicadas não mostram pessoas. Diz sentir muita solidão nas minhas imagens. O textos, bem. Dia sim, dia não, se aproveita alguma coisa, segundo ele.
 
Olhando bem, raro leitor, verá que existem pessoas, sim, nas fotos. Mas o que eu posso fazer se elas se escondem atrás de árvores, deitam-se no algodão branco das nuvens, viram pássaros, flores, estátuas, peixes? Ou simplesmente desaparecem na neblina?
 
Algumas valem-se de sutil artimanha e afundam-se em repentinos penhascos, embrenham-se em densas ramagens. Outras, talvez mais tímidas, tornam-se invisíveis sob côncavas umbelas, capelos e guarda-chuvas.
 
De qualquer forma, as pessoas estão lá quando fotografo. Só que, depois, por alguma misteriosa porta, saem de cena sem avisar, passando incômoda sensação de ausência.

Os textos, bem. Não sei dizer quanto valem, se é que valem. Mas me apraz saber que, dia sim, dia não, o perspicaz e exigente leitor passa por aqui para julgá-los e, quem sabe até, de vez em quando, os absolve.
 
O importante é não perder o sentimento da coisa.
 

sexta-feira, 24 de julho de 2015

A vida invisível

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 

O texto sobre fantasmas causou estranhamento.

Leitores questionam o fato de o autor tratar como natural a existência de assombrações em Passo dos Ausentes.

Mais que isso, não entendem como eles transitam livremente, e à luz do dia, pelas ruas, praças, telhados e calçadas da nossa pequena cidade.
 
Eu também muitas vezes me pergunto a que se deve a presença dos voláteis entre nós. Eles não se fazem de invisíveis por aqui. E isso não causa perplexidade entre os vivos. São tênues os limites entre o real e o imaginário nestas bandas dos Campos de Cima do Esquecimento. 
 
O que se vê: os fantasmas em nada interferem no dia a dia da aldeia. Vivem com discrição sua espessa solidão, sem fazer alvoroço nem assustar  ninguém. Habitam recantos de ausência e silêncio.

Segundo Heitor dos Crepúsculos, o mais conhecido volátil desse território perdido, nossa aldeia é o único lugar do mundo onde fantasmas podem viver em paz, sem causar estrépito nem escândalo. A população não lhes faz caso.

A fantasmagoria pertence à história da cidade.

Não disseram que o passado está vivo no presente? Que os mortos cada vez mais governam os vivos? Não sei se isto é assim. Acredito que a responsabilidade pelo presente é sempre, a um só tempo, individual e coletiva. E é hoje, não ontem.

Não existem roteiros pré-escritos. Tampouco abismos e perdas intransponíveis. Havemos de escrever novas e belas histórias.
 
O pouco que sei - se é que sei - é que, para além dos fantasmas, há vida silenciosa pulsando entre nós em todos os lugares do mundo.

Gente que não é notada. Gente invisível e solitária, que vive de cabeça baixa, longe de tudo e de todos. É preciso estar atento aos fantasmas-vivos que nos cercam, dar-lhes abrigo e afeto antes que morram de frio.

Nem tudo que parece invisível está, de fato, fora da realidade.