quarta-feira, 2 de setembro de 2015

No tempo das pandorgas

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto

 
Na rua São João, a pandorga simbolizava nossa sede de infinito. Carregava nossa imaginação, nossos sonhos, nosso gosto pela liberdade, o desejo de ir além. 

No tempo das pandorgas, andávamos lá no alto, o coração pulsando ao vento. O resto não importava.

Uma das chateações da minha meninice era não conseguir construir e soltar pandorgas. Os meninos do bairro eram bons engenheiros e pilotos dessas coisas que voam. A época ideal de soltar pandorgas devia ser o início da primavera, mas não estou certo.
 
Eu pilotava as pandorgas dos amigos, quando emprestavam. Passei pelo vexame de derrubar várias delas. Mas o primo Rogério me consolava: - Quem nunca emborcou uma pandorga?
 
Em compensação, soltei muitos guarda-chuvas em dias de ventania nos Campos de Cima do Esquecimento. Nunca soube onde foram parar. Sempre fui amigo dos pássaros, esses seres que, como os chapéus de chuva e as pandorgas, também voam. Nem pensar em gaiolas. Observando-os, tornei-me cativo de seu canto, suas cores, seus voos. 
 
Caminhei hoje pelo córrego, pisando seixos, à procura de peixinhos coloridos pra fotografar e restos de estrelas cadentes. Uma mochila nas costas, a estrada de terra, os perfumes da primavera que se acerca em setembro. Quem resistir pode?
 

domingo, 30 de agosto de 2015

Visão

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto, 29/8/2015

Eu olho as velas brancas
dos barcos que cruzam
as águas escuras do rio

Sentado no banco do parque
eu observo o indescritível
declínio da tarde
sobre o Guaíba

Aqui embaixo do eucalipto
o sangue escorrendo nas veias
os pés firmes na terra
eu acompanho o lento movimento
das águas e do planeta

Estou condenado ao continente
ao monótono traçado das ruas
à intromissão do tédio e do medo

Mas o rio é um caminho
onde a emoção navega
 
_________
 
Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Noites do hospital

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 
 
O câncer colocou-o pra  flutuar numa nuvem de morfina.

O corredor pareceu-lhe imenso até a sala de cirurgia. Gente vestida de branco, teto alto, máscaras, álgida luz sobre seu corpo.  Uma vaga claridade entrava pela janela fechada. Um sono longo e induzido. O corte, o sangue, aparelhos. A urgente luta pela sobrevivência.

Tinha passado muitos anos ilhado em gabinetes, mergulhado em processos, decifrando histórias e conflitos, decidindo destinos. Enquanto habitava a ilha, o Guaíba fluía sonoro do outro lado da vidraça.

O rio e seus navios. O rio e seus peixes. O rio e os admiradores do pôr do sol, sentados à margem. O rio e a promessa de viagens nunca feitas.

Os sonhos há muito tinham batido em retirada diante das durezas do mundo real. Quando foi a última vez que teve tempo para si, para a família e amigos? Não lembrava mais.

Pensava nessas coisas nas noites do hospital, deitado na cama, quando a dor dava um folga. Voava na nuvem gris, entre brancos aventais e a parafernália eletrônica pelo corpo.

Depois ficou tudo para depois.

Caminhou muitos dias e noites numa estrada de espessa névoa. Começou a olhar o mundo com outros olhos. Nada valia mais do que estar vivo, vivo simplesmente.

O risco de desaparecer fez com que se voltasse, sem mais demora, para o que havia de mais precioso na Via Láctea: o pequeno planeta dos seus afetos. 
 
Somos um sopro de Deus - pensou - habitantes de um tempo que se esfuma e não nos pertence. Sentia-se por um fio como um astronauta fora da nave-mãe.
 
Lembrou-se dos tempos da infância, das bolinhas de gude, do pião, das pandorgas no infinito azul, dos banhos no córrego, dos encontros de família. Apesar dos problemas, diferenças e brigas, a família ainda era o melhor lugar do universo.
 
Pensou nas coisas que podia ter feito, nos projetos que deixara pra trás, nas noites que podia ter passado, em claro, a olhar o céu estrelado. Agora era como se os anjos estivessem ali, ao redor da cama, invisíveis.

Precisava de uma chance pra refazer laços perdidos, dar abraços, partilhar a vida, agradecer, pedir desculpas.

Precisava sobreviver e chegar ao outro lado daquele rio sem margens.
 
Uma nova chance foi tudo que pediu a Deus. Naquela noite não dormiu até ver o sol clareando a janela do quarto de hospital. Era o primeiro dia da nova vida. Não ia desperdiçar um segundo sequer.
 

sábado, 22 de agosto de 2015

O amor é um invento

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 

Os motivos de ser feliz são simples. Um vaso de flor sobre a mesa, o sorriso de alguém, o quarto em sossego nos fundos da casa.

O som das gotas da chuva sobre um balde no quintal. Os passarinhos livres, cantando  seus fados.

Un recuerdo del corazón...
 
Um dia ele foi feliz sentado num banco de praça, a Praça dos Açorianos, em Porto Alegre, a poucos metros do Guaíba. Ela estava ali junto com ele. Em torno do banco, os galhos de um salgueiro-chorão vinham até o chão, formando uma redoma de fios verdes sobre o casal.
 
As águas do lago passam lentamente sob os arcos da vetusta Ponte de Pedra. Era inverno, tarde de sábado, ele emprestou seu casaco a ela.

Uma nesga azul aparecia entre as nuvens.

Por que, na ampulheta de ser feliz, o tempo escorre feito cachoeira?

Estar sentado com ela, no silêncio verde da redoma de um salgueiro, na Praça dos Açorianos, fazia dele um homem feliz. Perigosamente feliz.
 
A memória daquelas tardes ficou impregnada na sua alma. Não como uma ferida: como celebração. Essa é uma das razões que o fazem pensar, nessas longas noites sem sono, que não passou pela existência em vão.

No fundo do espelho das águas do lago, a imagem do jovem casal ficou para sempre guardada. 
 

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

O senhor do tempo e seu labirinto

Jorge Adelar Finatto
 
o crédito da foto será dado quando conhecido o seu autor


De antigo senhor das horas, o meu velho relógio tornou-se vítima do tempo e hoje sofre com longos intervalos de ausência.

É um relógio que me acompanha desde o século passado. É um objeto austero e simples. Não existem outros como ele à venda. É um dos últimos exemplares vivos de sua geração, se não for o último.
 
Registrou com precisão a passagem do tempo durante muitos e muitos anos. Esse mesmo tempo agora volta-se contra ele.
 
O calendário numérico funciona às vezes, e o escrito perdeu-se na bruma das horas. Esquece em que dia da semana estamos, não sabe bem se é segunda, sábado ou domingo, não distingue passado e presente e o futuro simplesmente não existe.

A passagem das horas confunde-lhe o mecanismo e, por vezes, ele pára sem saber o que fazer, como alguém que perdeu a memória, de repente, na esquina de uma cidade estrangeira.
 
Em suma, o relógio que sempre me guiou, na mata sombria dos dias, precisa agora ser guiado. Já não é mais quem era. Mas eu também não sou mais quem fui e nem por isso vou me atirar no lixo.
 
Não tenho coragem de separar-me dele. Jamais o faria e me recuso a falar sequer no assunto. Contudo, sem que ele soubesse, tive outros relógios, mais funcionais e modernos. Nenhum, porém, conseguiu substituí-lo no meu afeto. 
 
Toda vez que abria a gaveta, encontrava-o calado, sem nada reclamar, olhando as paredes internas do cubículo de madeira. Ao perceber minha presença, olhava-me nos olhos como quem se coloca à disposição para o trabalho e a luta. Um companheiro valente e digno.

Resgatei-o do labirinto em que foi viver.
 
Se ele é hoje apenas a lembrança do relógio que foi um dia, por outro lado não posso negar-lhe reconhecimento pelos serviços prestados. Além disso, atravessamos momentos difíceis juntos, vivemos muitas situações complicadas e dolorosas nessa vida, coisas que atormentam o pensamento e queimam o coração. E, às vezes, fomos felizes também.
  
Carregar o tempo nas entranhas, sem medo, como ele sempre fez, segundo a segundo, ano após ano, de forma incansável, num giro interminável e monótono, é ofício dos piores.
 
Mandei-o à oficina algumas vezes, mas não resolveu o problema. Decidi poupá-lo das internações inúteis no hospital dos relógios, pois observei que esse tipo de ambiente o magoa, pelo ar de tristeza com que retorna a casa.
 
Não sou mais escravo do tempo. Eu faço o que quero do meu tempo. (Por favor, raro leitor, não se iluda: essa disponibilidade é tão sedutora quanto terrível.) 
 
Trago o velho relógio no pulso outra vez. Faço-lhe ajustes manuais com esmero e delicadeza. Quando é necessário, em razão de compromissos e viagens longas, levo um outro, no bolso ou na mala, sem que ele perceba. E assim tocamos a nossa vida.
  
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Texto revisto, publicado antes em 21 de abril, 2013.
 

domingo, 16 de agosto de 2015

Aprendendo com pássaros

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto

 
Passei a tarde observando os pássaros. Eles aparecem na varanda do escritório, onde vêm comer as frutas que lhes sirvo todos os dias. Têm um especial apetite por bananas maduras, embora um mamão lhes caia muito bem ao paladar.

Voam desde as árvores e pegam o naco de fruta com o bico. Alguns comem ali mesmo, mas a maioria prefere levar pra casa. Muitos têm família e filhotes pra sustentar. A luta de sempre.
 
Uns agradecem o alimento fazendo um belo concerto a céu aberto.
 
Assim levamos nossa amizade. Às vezes, quando me canso de ser gente, viro pássaro. Fecho os olhos na escrivaninha e me lanço, abrindo as invisíveis asas. Misturo-me então a eles, fazendo parte dessa bela família.

Aprendo com os pássaros a renovar a fé na vida. Viver vale o voo. Viver vale o canto. Passeio entre as árvores e flores, respiro o azul do céu, descanso sobre velhos muros de pedra. Não quero saber de notícias. Como faz bem à alma e à saúde ignorar as notícias do mundo, os passarinhos me ensinam.
 
Nunca vi um pássaro roubar, nem mentir, nem matar, nem humilhar, nem falar mal dos outros.
 
As pessoas são boas por natureza, mas, por via das dúvidas, é sempre bom lembrar que ninguém é decente e digno por acaso. Por decente e digno entendo, antes de qualquer coisa, cultivar limites e não avançar feito fera sobre o semelhante.

Precisamos aprender com os passarinhos.

Tem de haver esforço, respeito, paciência, superação todos os dias. Senão, bem, o resultado é isto que vemos no Brasil.

Com a imagem, procuro o olhar do primeiro homem na aurora primitiva. A visão de um pássaro recém saído do ninho.

Sentir o mundo como da primeira vez.
 

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Fanicos e farfalhas

Jorge Adelar Finatto
 
photo de joaninha: Wikipédia. Autor: Jon Sullivan (PD-PDphoto.org]

Quem viu alguma vez uma joaninha caminhando na página de um livro ou sobre uma folha verde sabe do que estou falando.

É o acontecimento mais importante do universo. 

Nenhuma literatura, nenhum cinema, nenhuma filosofia do mundo valem os passos da joaninha. Só que pouca gente percebe o engenho e a arte por trás da construção e da vida da frágil joaninha. 

Existem muitos outros assuntos importantes para se tratar, está bem. Um escritor-fotógrafo a sério não devia ignorar isso. Tudo bem. O fato, contudo, é que me encanto com os farelos do mundo, com a coisa pouca ou nenhuma que somos. Com um raio de sol na parede ou caído dentro de um copo dágua sobre a mesa. 

As coisas pequenas me atraem, me cativam, me elevam. As outras me enfadam, quando não revoltam. Encontro beleza e claridade nos fanicos da existência.

Tudo que é breve e pequeno se parece com ser humano e com estar vivo e ser transitório, e isso me interessa sobretudo.

Os verdadeiros e últimos sentidos habitam muito além das aparências, é assim que eu vejo. E o que eu mais enxergo, quando penso profundamente na vida, é a pequenina joaninha.
 

O mundo silencioso das migalhas me é, por isso, muito caro e diz muito mais sobre o que nós somos - ou o que sou eu, ao menos - do que um tratado ontológico. Quando perdemos a capacidade de expressar o que sentimos, é como se perdêssemos a vida.

Deus nos livre e guarde. 

Na arte, ao menos, podemos voar, sonhar, levitar acima dos mausoléus e crematórios existenciais. Mas sei também que ninguém pode viver entre nuvens.
Deve haver um caminho de passagem entre as farfalhas da vida e a copa das estrelas; entre a imensidão da Via Láctea e os passos humildes e comoventes da joaninha.
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Texto revisto, publicado antes em 25/11/2012.