terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Aurora do mundo

Jorge Finatto
 
 
Amor
É quando batem em você e dói muito.
(Viviana Castaño, 6 anos)

Criança
Para mim a criança é algo que não é cachorro. É um humano que todos temos que apreciar.
(Johana Villa, 8 anos)
 
Adulto
Pessoa que em toda coisa que fala, vem primeiro ela.
(Andrés Felipe Bedoya, 8 anos)

Universo
Casa das estrelas.
(Carlos Gómez, 12 anos)


O MUNDO DAS CRIANÇAS está povoado de sabedoria,  imaginação e poesia. Elas veem as coisas com outro olhar, sem dúvida mais humano e completo que o nosso. E nunca omitem seu sentimento quando se expressam.
 
O amanhecer do universo habita o coração infantil com suas cores e sentidos. Os pequenos são capazes de ver muito além dos preconceitos e aparências.

Olham a vida pela primeira vez, como fazem os poetas, os artistas e os puros de coração. Esta visão inaugural é capaz de notáveis revelações.
 
O olhar primitivo de meninos e meninas está longe da contaminação que advém dos condicionamentos. Ainda não se submeteram por inteiro às imposições do ambiente social. É nessa capacidade generosa de ver a vida, e aproximar-se do outro, que elas muitas vezes nos surpreendem.
 
Pois um excelente apanhado deste notável poder de percepção é o que encontramos no livro Casa das Estrelas, organizado pelo escritor colombiano e professor de alunos de séries iniciais Javier Naranjo.
 
Ele recolheu, ao longo de mais de dez anos, frases de seus alunos de espanhol, leitura e criação literária, com idade entre 3 e 13 anos. O trabalho ocorreu em escolas situadas na cidade de Rionegro, departamento (estado) de Antioquia, na Colômbia.

Javier Naranjo também é pesquisador da linguagem infantil e este livro é produto de seu encantamento em trabalhar as palavras, a leitura e a criatividade com as crianças, num clima de liberdade e prazer.
 
Os pequenos autores expressam sua visão das coisas a partir de palavras-tema que escolheram e compartilharam em sala de aula. O resultado é riquíssimo do ponto de vista da linguagem (a maneira livre de amarras sintáticas de se expressar) e do conteúdo. Por vezes, temos a impressão de estar navegando nas águas mágicas de outro colombiano ilustre, Gabriel García Márquez.
 
Para quem se sente exausto diante do palavrório gasto e enfadonho do dia a dia, a leitura das frases destes audazes construtores de sentido nos remete à aurora de um mundo onde a linguagem ainda não cedeu aos apelos da publicidade, da mentira, da pobreza de ideias e sentimentos.

Deus
É invisível e não sei mais porque não fui no céu.
(José Piedrahíta, 3 anos)

Eternidade
É esperar uma pessoa.
(Weimar Grisales, 9 anos)

Família
Lugar onde tem muita discussão e se amam.
(Alejandra Giraldo, 10 anos)

Igreja
Onde as pessoas vão perdoar Deus.
(Natalia Bueno, 7 anos)
 
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Casa das estrelas, o universo contado pelas crianças. Seleção, organização e apresentação de Javier Naranjo. Editora Foz, Rio de Janeiro, 2013. Tradução de Carla Branco. Ilustrações de Lara Sabatier.
 

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Je reste au lit

                                                          Jorge Finatto

photo: jfinatto

 
EU FICO NA CAMA. Sair do quarto pra quê? À força de invencível banzo, não traço nem a primeira das duas linhas que queria escrever. Imagino um banco, entre pinheiros, na praça da imaginação, à espera do amanhecer do texto. Nada.
 
Palavras são caramelos. Palavras são farelos de uma coisa maior. Mas hoje eu não quero falar disso. Estou com banzo. Quero ficar quieto.

Não que haja leitores esperando, nem há nem. Ler? Existem para todos coisas mais urgentes.

Essa mania de escrever e não ser lido é coisa de louco. Coisa que se presta a um estudo. Será feito por algum arqueólogo da internet - ou psicanalista do ciberespaço - daqui a séculos. Enquanto isso, eu fico na cama.

Palavras também cansam. Que fiquem todas dormindo no dicionário. Je reste au lit. O fato é que não vejo graça em sair do quarto.
 
Preciso de um tempo de silêncio. É bom ficar calado nesse mundo cheio de bocas parlantes.

Resta um imenso vazio diante das notícias da Terra de Vera Cruz. Não dá pra ficar mais de cinco minutos escutando o noticiário, sem ter vontade de vomitar. Prefiro não ler jornal, revista, nem ver tv. Melhor ficar na cama, lendo um livro ou ouvindo música. De vez em quando uma passada até a janela, mas sem demorar ali.

Pensar em fugir não adianta. Pra onde? Celulares, câmaras secretas, satélites, drones e outros invasores são capazes de localizar o evadido em poucos segundos. Além disso, não pretendo sair da cama. Amanhã é outro dia, certo. Por hoje, contudo, a realidade pode passar muito bem sem mim.

Como tarda a claridade quando a escuridão é tamanha!
 

domingo, 29 de janeiro de 2017

Hay días que me gusta vivir

Jorge Finatto

Lisboa, Tejo e gaivota. photo: jfinatto
 

NEM UMA GOTA de melancolia, nem mágoa, nem tristeza. Não quero peso nas palavras. Por que havia de escrevê-las ao avesso num dia ensolarado com todas as ventanas abertas? O dia é longo e a vida, grande. Grande a vida na miséria de cada instante. Imensa vida, vista do grão de tempo que habito.

Olho os telhados, o céu branco com nuvens azuis. Respiro à janela. Um gato esticado sobre o muro. A horta humilde no pátio lá em baixo. E flores crescendo sem cuidado na calçada ao alcance do olhar fatigado.
 
Que posso mais querer? Carrego recordações felizes. Por exemplo, teu rosto iluminado por um raio de sol, sorrindo quando tínhamos 20 anos. E sinto um doce perfume  que vem dos teus cabelos e do teu corpo. E nos vejo numa praça e depois subimos por uma avenida larga e comprida. Mãos dadas, conversas sem relógio. Havia uma eternidade pela frente e nós juntos nela.
 
Pressinto os anjos que caminham ao meu lado, ajudam a sobreviver a tanta coisa ruim. Os anjos, mensageiros de Deus, nunca nos abandonam. É por causa deles que estou hoje aqui, à janela, olhando sobre os telhados uma nesga de rio ao fundo entre os edifícios.

As ventanas abertas ao sol, ao movimento dos barcos, à solitária gaivota. Vida que é bela e grande pelo simples fato de estar vivo e  respirando à janela.
 

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Poética

Jorge Finatto

 Colonia del Sacramento, Uruguai. foto: jfinatto

 
NINGUÉM LÊ meus poemas
sequer a família
com meus versos se amola

os outros têm afazeres diversos
toda hora

recebo o poema
como um ser
que apareceu
na minha porta
nesse dia

eu escrevo para uma sala vazia

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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
 

domingo, 22 de janeiro de 2017

Uma trapaça da sorte*

Luís Roberto Barroso
Ministro do Supremo Tribunal Federal
 
 
Ministro do STF Teori Zavascki (1948-2017)
foto: Nélson Jr., STF
 
 
TEORI ZAVASCKI supervisionava a Lava Jato com virtude, razão prática e coragem moral. Continuar o trabalho de mudar o patamar ético do Brasil, com a mesma determinação e serenidade, será a forma mais digna de homenageá-lo. Ajude-nos aí de cima, amigo.
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*Leia a íntegra do texto no site da Folha de São Paulo:
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2017/01/1851895-uma-trapaca-da-sorte.shtml
 

As tragédias mil vezes anunciadas*


Sob o título “Estações do inferno“, o artigo a seguir é de autoria de Jorge Finatto, escritor, fotógrafo, magistrado aposentado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. O texto foi publicado na quarta-feira (18) em seu blog “O Fazedor de Auroras“.
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*Transcrevo a reprodução, para mim muito honrosa, do texto "Estações do inferno", no blog Interesse Público, do notável jornalista Frederico Vasconcelos, da Folha de São Paulo:
 

sábado, 21 de janeiro de 2017

A vida vale um caco

Jorge Finatto
 
photos: j.finatto

No ato trágico de morrer da xícara-mãe, os fragmentos renasceram individualmente, dando inicio a novas "vidas".
 
EXISTE BELEZA nos cacos de uma xícara quebrada.

Juntei os restos de louça espalhados no chão do escritório, acondicionei-os em folhas de jornal velho para descartar no lixo seco. Depois subi a escada Santos Dumont, retornando ao trabalho.

Enquanto labutava nesse ofício inútil que é escrever (e ninguém ler), percebi num canto do escritório uma reminiscência da xícara em forma de lasca colorida.

As cores e o formato daquele caco me chamaram atenção. Descobri que havia encanto naquilo. Fui em seguida até o lixo e resgatei os outros pedaços.

 

O objeto xícara havia se partido acidentalmente ao cair da escrivaninha (dentro havia folhas secas de erva cidreira). Deu origem a vários outros miniobjetos com formas, cores e volumes próprios.

No ato trágico de morrer da xícara-mãe, os fragmentos renasceram individualmente, dando inicio a novas "vidas". No ato de renascer, receberam a marca intransferível da solidão que caracteriza as coisas e os seres viventes.

Sei, por experiência de quem é astrônomo do farelo, observador de miudezas, que não existem outras lascas iguais a essas.

São entes novos no mundo. Estão aí com sua particular verdade, têm uma face própria, uma maneira de estar, uma sombra, ocupam certo espaço, a claridade os ilumina todas as manhãs, existem.

 

A asa da xícara-mãe ficou incólume, contudo não é mais uma asa. Aderente à superfície convexa, lembra antes uma bela orelha renascentista.

Orelha que escuta talvez uma voz ausente, que se perdeu no tempo, ou uma canção impossível.

Libertou-se, a asa, da antiga e rígida obrigação. Ninguém mais poderá tratá-la ou esperar dela que se comporte como se singela asa fosse. É uma nova entidade, um corpo mutante com uma estética própria. Perdeu a natureza acessória com que veio à existência.


De certo modo, os fragmentos estão mais vivos do que quando formavam um todo orgânico e fechado. Aproveitaram a chance, gozam agora de uma liberdade que antes não conheciam.

O que aconteceu com os cacos foi um reviver após a morte da mãe que os aprisionava. Estão soltos no mundo, rebentos recém paridos, cada um a seu jeito. Como todos os seres, correm riscos, o futuro é incerto e padecem de solidão. O preço de estar vivo.
 
Olho os restos sobre a escrivaninha. São parecidos com tudo que vive e sofre e existe apesar de tudo. Aprenderam na pele que cair um tombo, bater com a cara no chão, ficar reduzido a estilhaços, pode ser, às vezes, o caminho para um novo, jamais imaginado, venturoso recomeço.

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Texto revisto, publicado em 30 de abril, 2013.