segunda-feira, 30 de março de 2020

Desviando do vírus

Jorge Finatto
 


O desejo de visitar Arles e Saint-Remy, na Provence, nasceu em 2014. Em setembro daquele ano o Museu VAN GOGH, de Amsterdam, publicou em seu facebook o meu poema "Composição", do livro O Fazedor de Auroras, editado pelo Instituto Estadual do Livro em 1990. Fiquei muito feliz e admirado. E tinha motivo: colocaram como "ilustração" do texto a pintura "Jardin de Saint-Paul de Mausole", de Van Gogh.
 
O poema é uma homenagem a Van Gogh e uma declaração de amor à pintura. Pois bem, no início desse mês, descansando uns dias em Lisboa, depois de percorrer a Suíça, Alemanha e Áustria, tinha viagem programada a Marselha. Do aeroporto iríamos - Izabel e eu - de trem a Arles, onde o pintor realizou a culminância de sua obra. Aí incluídas as pinturas feitas no Monastério-sanatório de Saint-Paul de Mausole, em Saint-Remy, onde viveu e se tratou entre maio de 1889 e maio de 1890.
 
Ocorre que o famoso coronavírus Covid-19 tinha chegado lá antes de nós. Um dos aeroportos mais movimentados da França, resolvemos não correr o risco de ser contaminados. Desviamos a rota e acabamos nos Açores (outro sonho antigo).
 
Desistimos? Claro que não! Iremos atrás de Van Gogh depois que a tempestade passar. E vamos sentar nesse jardim onde, um dia, ele esteve com seu cavalete e criou este quadro com a paleta encantada.
 

sábado, 21 de março de 2020

Tempo de quaresmeiras em flor

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto
 

Só agora me dou conta de que as QUARESMEIRAS explodiram em lilases, rosas e brancos, anunciando a chegada do outono e o advento da Páscoa. A nova estação chega cheia de significados
(fala de Ressurreição e de urgentes renascimentos).
 
As flores das quaresmeiras têm tudo a ver com sentimento claro, respirar limpo, passar distante da morte.
É o que eu sinto e penso nesse instante vendo-as vibrar na claridade, apesar da densa sombra que se abate sobre o Brasil e o mundo
(o bicho invisível e coroado nos remete aos confins do isolamento).
 
Estamos perplexos, temerosos, impotentes, diante da realidade que nos assola. As ruas estão vazias.
Um estranho silêncio percorre a cidade.
 
O bicho é pequeno, intocável, inodoro, inaudível, mas é suficiente para danar a minha/nossa vida. Capaz de sugar nossa alegria, nosso trabalho, nossa paz, nosso sangue, nossos sonhos.
 
Mas olhando as quaresmeiras em flor, nesta hora e neste lugar (pequeno lugar perdido no planeta: minha casa),
ao menos nesse efêmero instante,
a morte e o desespero não têm nem terão guarida.
 
As flores das quaresmeiras são o oposto da escuridão
(e do abandono)
a delicadeza dos ramos e das pétalas remete a um mundo outro.
Um mundo de recolhimento e silenciosas caminhadas por estradas interiores.
De solidária espera.
 
Um tempo de quaresma (quarentena, quadragésima).
De esperança num novo renascimento para todos.
 
Tempo de resistência
(como sempre)
de atravessar a ponte
(sobre o rio das mortes)
e chegar vivo do outro lado.
 

terça-feira, 17 de março de 2020

A peste

Jorge Finatto

Se há uma lição que se pode tirar da pandemia do novo coronavírus é a de que estamos muito atrasados em matéria de empatia. Os países, como os indivíduos, vivem longe da solidariedade, só pensam em si. É a lei do cão. Vive-se como se não houvesse outros habitantes no edifício, no bairro, na cidade, no planeta.
 
Então não surpreende a maneira simplista como se fecham fronteiras ao invés de buscar soluções conjuntas. O modo pouco civilizado com que muita gente tem ido aos supermercados com sede de armazenar víveres, gerando falta de produtos. A ânsia de salvar a própria sobrevivência num momento em que a exigência é olhar para o lado, enxergar o semelhante, dar e receber ajuda.
 
A peste fere de morte a noção de civilização, esta frágil construção.
 
O noticiário maciço tratando da doença 24 horas por dia serve para informar, mas serve também para espalhar o medo. Há alarme no jeito como se trata do assunto, além do alarme imanente. E todos dizem que se deve evitar o pânico. Está bem... 
 
É difícil ficar calmo quando a ordem é: "não saia de casa, não aperte a mão, não beije, não abrace, guarde distância mínima de um metro e meio de outra pessoa, evite encontros mesmo entre familiares etc.". Há uma imposição de confinamento e solidão que se diz indispensável para quebrar a cadeia de transmissão da doença.
 
A peste mexe fundo com a emoção das criaturas e com a alegria de viver. Afasta-nos e prova que, por mais evoluídos que nos consideremos, um simples vírus bota tudo abaixo. Somos vulneráveis. Muito mais do que supõem nosso egoísmo e nossa vaidade.
 
Talvez, no fim de tudo, reaprendamos a valorizar a convivência, a importância do outro, do toque, do encontro. O inefável prazer de poder sair na rua outra vez. 

segunda-feira, 16 de março de 2020

Alhures, algures

Jorge Finatto

Fussen, Alemanha. photo: jfinatto
 
Uma das boas coisas de VIAJAR é estar entre. Entre dois continentes, entre duas cidades, entre dois quartos, entre dois mundos. Não estar em parte alguma: estar em trânsito (a única permanência).
 
Estar em vários lugares, só de passagem, olá, como vai?, até um dia, até logo, até a próxima estação. Andarilho, caminhante, vagabundo, beija-flor. Ver e ser visto ao acaso, ao relance, ao relento.

Nuvem ligeira sobre o mar.
 
80 por cento sentimento. 20 por cento matéria. Amálgama de sonho. Peregrino, passageiro, gentil viajante. Não plantar raiz, não afundar num cotidiano qualquer. Passar, passar.

Belvedere, miramar. 
 

segunda-feira, 9 de março de 2020

A lição de Codogno

Jorge Finatto

A cidadezinha de Codogno, na região da Lombardia, entrou para a história como a que registrou o paciente número 1 de coronavírus na Itália, país que ostenta a maior incidência de casos da doença na Europa neste momento. Codogno está situada na denominada zona vermelha, sujeita a severas restrições. Ninguém pode entrar ou sair sem autorização; todos os serviços estão interrompidos, exceto os essenciais; o transporte público está suspenso. Mas a vida continua, e a população descobriu coisas boas em meio às dificuldades.

Entrementes, o tratamento dado pela imprensa ao surto tem sido hiperbólico, aterrorizante, com longas e constantes inserções em todos os noticiários. Aqui em Portugal divulgam-se os novos casos hora após hora, dia após dia, um a um, com muitos detalhes como se o vírus estivesse tomando conta. No entanto, não é isso que se vê. Na última contagem os casos eram 35 e nenhuma morte. Alguns meios de comunicação tratam do assunto como se uma catástrofe sanitária de enormes proporções estivesse em expansão. 

Sabe-se ainda pouco sobre o vírus que veio da China. As entrevistas, por isso, são em geral pouco elucidativas, enfadonhas, e servem mais para assustar do que para esclarecer. Algumas autoridades demonstram despreparo no trato do tema.* Exceção feita às recomendações de cuidados a serem observados pela população, os mesmos, aliás, de qualquer gripe; e às orientações sobre locais de tratamento, telefones para tirar dúvidas, etc.

Quem assiste a programas de notícias e lê jornais fica alarmado e deprimido. Sentimo-nos fragilizados diante da ideia de uma doença que parece avançar como um monstro. E não há motivo para este enfoque, principalmente quando da China vêm informações de que o contágio e o número de casos estão diminuindo.

A superexposição midiática feita sem cuidado não apenas impõe medo como tem conseqüências econômicas. Claro que a informação é importante, mas neste caso parece estar indo além do razoável. Não se trata de culpar a imprensa pelo coronavírus, mas de evitar conteúdos alarmistas. 

Mas voltemos a Codogno. Um professor do lugar escreveu carta para um jornal de circulação nacional abordando o sofrimento diante das restrições. Relata, também, que coisas boas estão acontecendo: as pessoas estão conversando mais umas com as outras na rua, mesmo com quem não conhecem; poucas estão usando máscaras; as ciclovias têm um movimento nunca antes visto; há uma disposição de ajuda e colaboração entre os habitantes.

Então, ao invés de um desastre planetário em franca expansão, o que se vê é um aumento de solidariedade e amor social. Um outdoor foi criado na cidade e diz: " Codogno é uma doença que não nos larga mais". 

O medo paralisa. O afeto, a união e o bom senso nos levam adiante.
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- Hoje, 11 de março, entre as inúmeras manchetes sobre a doença, os jornais noticiam que Angela Merkel disse que até 70% da população da Alemanha poderão contrair o coronavírus. Convenhamos que é o tipo de declaração alarmista que em nada contribui. Vindo de líder política, causa sérias preocupações pelo modo leviano como estão tratando do tema. Aqueles que devem manter a serenidade não podem, com base em hipóteses,  semear o pânico.

- Em 04 de abril, 2020. Efetivamente, em países como Itália, Espanha, China e Estados Unidos, a catástrofe se confirma com milhares de mortes. Em outros, não. Como Portugal, por exemplo. Esperemos que o Clovid-19 não faça mais tantas vítimas em outros países.

Algo estranho acontece na China onde tudo começou e o número de mortes oficial está em cerca de 3 mil, muito abaixo de outros. Ainda haverá que investigar esses números e o tratamento que aquele país deu à doença que não rapidamente se alastrou pelo mundo.

quarta-feira, 4 de março de 2020

Adeus à Livraria Cotovia

Jorge Finatto

Livraria Cotovia
Foto: Livraria Cotovia. Autor: L.Cotovia

Fiz uma última visita à LIVRARIA COTOVIA no Chiado, em Lisboa. Comprei alguns livros do ótimo acervo (é, essencialmente, editora). O anúncio do fechamento da loja física foi feito há poucas semanas. Funcionava no local há 30 anos. Motivo: os altos custos das rendas (aluguéis) nessa Lisboa hoje tomada pela indústria do turismo. 

Pequenos negócios como livrarias médias e de reduzido porte estão fechando. Mas não só. Pessoas que vivem há 30 ou mais anos em regiões hoje "turísticas" (Chiado, Rossio, Alfama, Bairro Alto, etc) são forçadas pelo mercado a abandonar suas casas. Mudam-se para locais periféricos e mesmo a outras cidades. Perdem-se vizinhos de uma vida. Afetos são separados e dificilmente se recuperam.

A cidade vai adquirindo uma nova face, distanciando-se de seu perfil mais humano. Milhares de turistas percorrem as ruas todos os dias, principalmente o turista que vem atraído pelos baixos preços de alimentação e hospedagem (se comparados com outros países dentro e fora da Europa). 

Confesso meu cansaço ao caminhar pelas ruas mais centrais com interesses históricos e literários. É difícil se mexer em meio à multidão. Pra não falar que vivemos tempos de coronavírus. Dizem que o turismo é um dos principais fundamentos da economia em Portugal. Para o bem e para o mal.

A Cotovia passa a funcionar só pela internet. Não haverá mais loja física. Os livros também poderão ser encontrados em outras livrarias. Essa situação já atingiu outras lojas de livros e alfarrabistas, que encerraram em definitivo as atividades. Esse tipo de negócio está, ao que parece, com os dias contados. E os freqüentadores de livrarias rumam talvez à extinção.
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PS - Ontem, 10 de março, passei em frente à Cotovia (rua Nova da Trindade, 24) e deu um aperto no peito. As paredes de vidro cobertas com jornais, vendo-se nas frestas, lá dentro, só a sombra e nada de livros. Triste.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Eu comecei a sair da mina

Jorge Finatto

Eu comecei a sair da mina
com meus ferros retorcidos
meus tocos de vela apagados
meu alforje vazio

fazia lá fora um dia solar
desses de não se perder
eu vi um rosto bom
o jeito sereno de um homem
que me ajudou a respirar
                                          me abraçou
me desamarrou as mãos

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Poema do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.