quarta-feira, 28 de abril de 2010

Heitor Saldanha: cem anos do poeta evaristo

Jorge Adelar Finatto


“Há muito tempo numa serra chamada Serra do Caxambu um menino sofreu um acidente, e ao menino estremunhado o pai fez-lhe mijar nas mãos e beber sua própria urina, que, segundo se dizia, era muito bom pra machucado por dentro. A beber pra não morrer é que o menino bebeu. Mas nunca mais se apagou de seu espírito a idéia de que todo aquele que bebe sua própria urina mais cedo ou mais tarde vira um bicho qualquer”. (Trecho do livro inédito Tribino, de Heitor Saldanha.)

Faz cem anos hoje que nasceu o poeta Heitor Saldanha. Veio ao mundo na Serra do Caxambu, em Cruz Alta, Rio Grande do Sul, em 28 de abril de 1910. A obra poética que publicou em vida é suficiente para assegurar-lhe um lugar único na literatura brasileira. A voz de sua poesia é rara, não existe nada parecido.  Permanece, contudo, desconhecido. É poeta para poetas e iniciados. Não pela dificuldade de compreensão de seus textos. A poesia de Heitor, ao contrário, é das mais abrangentes e abertas ao leitor que conheço. Não encontro explicação para esse silêncio, que se prolonga desde sua morte em 1986.  

Para alcançar o refinamento e a humanidade que saltam de seus versos, mergulhou fundo no trabalho. Atingiu a simplicidade e a beleza não por acaso. Elas são fruto de uma elaboração paciente, meticulosa, alheia aos apelos da exposição imediatista.

Existem autores que vivem para escrever. E existem aqueles que vivem para viver, sendo o verbo a ponte que transforma o vivido em arte. É o caso de Heitor Saldanha.

O poema era para ele uma grande síntese existencial, em que cada palavra e cada verso eram lapidados exaustivamente para que o canto tivessse o tamanho da vida e não a diminuísse.

Uma coletânea de seus livros, intitulada “A Hora Evarista”, foi publicada em 1974 pelo Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul e Editora Movimento, com as obras “A Hora Evarista” (1974), “A Nuvem e a Esfera” (1969), “As Galerias Escuras” (1969) e “A Outra Viagem” (1951).

Recordo com saudade os encontros que tivemos no apartamento dele, na Avenida Coronel Bordini, e na Praça Maurício Cardoso, no bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre.

Aprendi com Heitor uma importante lição de humildade e compromisso com a vida e a palavra.

Em julho de 1981, fiz uma longa entrevista com ele. Entreguei-lhe as perguntas por escrito. Ele respondeu em alguns dias, escrevendo as respostas em folhas brancas, a letra muito clara escrita com caneta azul. É um documento que guardo com carinho. Espero, um dia, entregá-lo a uma instituição que se disponha a cuidar da memória e da obra do grande poeta.

A entrevista foi publicada aqui no blog, no dia 29 de dezembro de 2009.

Um dia ainda se fará justiça a esse imenso artista da palavra, que nada fica a dever aos principais nomes da poesia em língua portuguesa.

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Imagem: Desenho de Heitor Saldanha feito pelo artista francês Michel Drouillon. Fonte: Fascículo sobre o poeta editado pelo Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1984.

terça-feira, 27 de abril de 2010

O Cavaleiro da Bandana Escarlate

Jorge Adelar Finatto


Vulto na praça. A luz amarela seria poética, não fosse o perigo dos assaltos. Um observador oculto espreita no meio das buganvílias. Quem vem lá? Difícil saber na escuridão. A noite de domingo podia ser romântica. Mas há indivíduos dormindo nos bancos da praça. Dois bêbados mijam sob a pérgula.

A cidade não tem piedade dos seres delicados. Mas há que vencer o mal com o bem. É a hora do menestrel, da capa, da espada e do alaúde. Eis que surge das trevas o Cavaleiro da Bandana Escarlate, montado no seu cavalo branco. Veio galopando desde muito longe. Atravessa a praça cuidando pra não amassar as flores. Um cara passa correndo atrás de outro rua afora, gritando coisas impublicáveis.

O cavaleiro veste a capa de seda preta. A máscara negra não permite descubram-lhe o segredo. Traz o antiquíssimo alaúde a tiracolo. O instrumento pertenceu a um trisavô que veio fugido da Itália e aqui se estabeleceu no ramo dos embutidos.

O cavaleiro passa pro outro lado da rua e estaciona o alvo corcel debaixo do balcão da Meiga Donzela. Dedilha as primeiras notas nas cordas do formoso alaúde. A melodia acorda a musa, que, entre entontecida e furiosa, vai até a janela saber do que se trata. Não acredita no que vê.

O que quereis, ó cavaleiro do alaúde em riste? Acaso não percebeis que são altas horas? Deixai-me dormir, ó  misterioso mascarado. Amanhã é dia de pegar no batente outra vez, voltar pra dureza da vida. Retornai ao vosso castelo de vento, ó romântico senhor, poupai-me. Do contrário, obrigar-me-ei a chamar os homens da lei.

O Cavaleiro da Bandana Escarlate silencia pra não comprometer mais ainda o idílio. Num gesto de rara nobreza, atira uma rosa branca no balcão e parte no trote. Ergue o alaúde na mão esquerda. Na praça, volta-se, empina o cavalo e grita eu retornarei na primavera, ó Estressada Musa.

Alguém abre uma janela próxima e o manda colher caju. Sem perder a altivez, o cavaleiro desaparece na noite. Um bêbado atira uma pedra e quebra a luminária da praça.

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Foto: J.Finatto

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Cálido

Jorge Adelar Finatto



Preciso escrever
o poema
que vai salvar
esse dia

o poema cálido
para atravessar
o tempo difícil
que ainda tenho
pela frente

o poema que vai expulsar
a vontade de morrer
que chega aos poucos
como um gato


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Do livro Memorial da vida breve, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.
Foto: J. Finatto

domingo, 25 de abril de 2010

Gonçalo M. Tavares*

José Saramago

A nova geração de romancistas portugueses, refiro-me aos que estão agora entre os 30 e os 40 anos de idade, tem em Gonçalo M. Tavares um dos seus expoentes mais qualificados e originais. Autor de uma obra surpreendentemente extensa, fruto, em grande parte, de um longo e minucioso trabalho fora das vistas do mundo, o autor de O Sr. Valéry, um pequeno livro que esteve durante muitos meses na minha mesa de cabeceira, irrompeu na cena literária portuguesa armado de uma imaginação totalmente incomum e rompendo todos os laços com os dados do imaginário corrente, além de ser dono de uma linguagem muito própria, em que a ousadia vai de braço dado com a vernaculidade, de tal maneira que não será exagero dizer, sem qualquer desprimor para os excelentes romancistas jovens de cujo talento desfrutamos actualmente, que na produção novelesca nacional há um antes e um depois de Gonçalo M. Tavares. Creio que é o melhor elogio que posso fazer-lhe. Vaticinei-lhe o prémio Nobel para daqui a trinta anos, ou mesmo antes, e penso que vou acertar. Só lamento não poder dar-lhe um abraço de felicitações quando isso suceder.

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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Publicado originalmente em 1º/3/2009.
A grafia é a de Portugal.
http://goncalomtavares.blogspot.com/

sábado, 24 de abril de 2010

Enrolado na manta com um livro na mão

Jorge Adelar Finatto


Há uma espécie de exílio no íntimo das coisas. Um voltar-se para os recônditos aposentos da alma. O vento iniciou seus giros nos caminhos e telhados. Agora o outono chegou. Os últimos dias aqui em Passo dos Ausentes foram de chuva e neblina. Habitamos os Campos de Cima do Esquecimento. A memória é nosso continente. Agora é o tempo do recolhimento. Folhas caindo. A estação das viagens interiores. Fico olhando o mundo lá fora, os plátanos, os pinheiros, as nuvens entre as montanhas. As ruas quase desertas.  A natureza passa por uma busca de harmonia nas entranhas. Há uma força interna em curso. Coisas importantes estão fora de lugar, dentro de nós e no ambiente. As fontes ressequidas. Na entrada da estação de trem abandonada, a alta luminária com luz amarela anuncia que tudo nessa vida é passagem. Homens e mulheres chegam e partem do planeta todos os dias. A viagem imemorial e solitária.  Enquanto as coisas assim se passam, eu me afundo no sofá enrolado na manta com um livro na mão, o Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas, o escritor espanhol que nos faz gostar de caminhar pela alameda ensolarada do texto. A leitura é seiva em movimento.

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Foto: J. Finatto

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Pessoa no Dia Mundial do Livro*

Comemora-se hoje, dia 23, o Dia Mundial do Livro.

Entre as diversas acções que vão decorrer por todo o país, algumas incluem Fernando Pessoa:

•As cidades de Coimbra, Viseu e Porto serão invadidas por sósias de escritores clássicos, como Luís de Camões, Fernando Pessoa e Eça de Queiroz, numa acção de guerrilha. Os sósias vão presentear todos os transeuntes com sessões de leitura das suas obras e distribuir vales com 10% desconto na compra de qualquer livro nas Livrarias Bertrand.
•Em Loulé, na Biblioteca Municipal Sophia de Mello Breyner Andresen, será apresentado o espectáculo “Pessoas”, apresentado pela "A Gaveta – Associação Cultural e Pesquisa Teatral". Um espectáculo sobre os heterónimos de Pessoa.

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*Notícia transcrita do site Um Fernando Pessoa, de Portugal, editado por Nuno Hipólito.

Visite:
http://blog.umfernandopessoa.com/

A carne viva do ser no mundo

Jorge Adelar Finatto


O tempo passa, pessoas somem da paisagem, casas e coisas desaparecem. O que resta de tudo? Essa é a bruma silenciosa que nos cerca. A questão se impõe mesmo ante a visão dos gerânios que iluminam a janela. Houve um tempo em que tudo o que ele mais queria era ficar morando pra sempre com os avós na ruazinha qualquer da serra, o arroio passava no fundo do quintal. Numa ocasião, quis tornar-se carteiro, que é ofício nobre de quem leva palavras para as pessoas. Noutra vez, pensou ser marinheiro de longo curso. Mais tarde decidiu que devia jogar futebol. Às vezes fica imaginando o que aconteceria se tivesse realizado algum desses quereres. Seria outra pessoa. Existe um tanto de mistério e imponderável nos caminhos. Dizem que  os rigores da sobrevivência nos definem. Pode ser. Mas não é só. O inconsciente e as emoções apresentam suas demandas e objetos de desejo. A carne viva do ser no mundo. O vivente pode querer transformar-se em pedra. Mas não conseguirá desvestir-se da pele e do sensível tecido de que são feitos os quereres.  Podemos ser, e já o somos só de imaginar, um pouco dos vários sonhos que nos habitam. Agora atravesso a ponte de pedra no meio da neblina. O fugidio instante. Felicidade casual. Assim seja.

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Foto: J. Finatto