terça-feira, 21 de setembro de 2010

Justiças*

 José Saramago


No dia de 22 de Julho de 2005, um cidadão brasileiro, Jean Charles de Menezes, de profissão electricista, foi assassinado em Londres, numa estação de metro, por agentes da polícia metropolitana que o confundiram, diz-se, com um terrorista. Entrou numa carruagem, sentou-se tranquilamente, parece que chegou mesmo a abrir o jornal gratuito que havia recolhido na estação, quando os polícias irromperam e o arrastaram para o cais. Não o detiveram, não o prenderam, derrubaram-no violentamente e dispararam-lhe dez balas, sete das quais na cabeça. Desde o primeiro dia, a Scotland Yard não fez outra coisa que criar obstáculos à investigação. Não houve julgamento. A procuradoria impediu que os polícias fossem incriminados e o juiz proibiu o jurado de pronunciar uma sentença condenatória. Já sabem, se algum dia lhes aparecer por aí uma peruca branca, dessas que aparecem nos filmes, digam ao portador o que as pessoas honestas pensam destas justiças.

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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Postado originalmente em 25 de fevereiro, 2009.
A grafia é a de Portugal.

Foto de José Saramago (1922 - 2010) : Acervo da FJS

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A parte da orquídea

Jorge Adelar Finatto

A parte da beleza e da justiça que não se distribui, a parte do calor e da ternura que não se dá e nem se recebe, a parte dos sonhos extraviados na travessia, a parte do amor não vivido, essa é a parte da orquídea. 

O que ficará desse tempo seco e sem ar?

Levo no bornal o caderno de anotações, os lápis de cor, a caneta, o telescópio, o lampião, o impossível mapa e a máquina fotográfica pra descobrir a orquídea. 


Encho os olhos e o coração com suas cores, formas e raro aroma. No limite do penhasco, no velho tronco da beira do córrego, sob a sombra da densa nuvem, a orquídea respira e ilumina.

Orquídea, sim, orquídeas. 


 
O resto não importa. 

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Foto: J. Finatto

sábado, 18 de setembro de 2010

Escritores sem leitores

Jorge Adelar Finatto


Escrever pra quê? Será que ainda existem leitores no mundo? Onde estarão, em que escondidas bibliotecas, em que salas e quartos solitários e pouco iluminados resistirão?

A impressão é que, a cada dez novos escritores que surgem, aparece apenas um leitor. As estantes das livrarias estão repletas de livros que ninguém lê. Todos os dias novos títulos vão somar-se ao mar-oceano existente. Quem lê tudo isso?

Às vezes desconfio que tem gente que vai à livraria, compra sua sacola de livros, mas não lê. O livro como objeto decorativo, com poder de ostentação de leituras não acontecidas. Será?

Então a situação é a seguinte: pra salvar os escritores do risco de extinção, de hoje em diante todos vão ser também leitores. Esse o compromisso de cada escritor para a preservação da espécie.

Coisa triste é a criatura escrever, no rigor do esforço e no escasso da vida, e ninguém ler. Quem não precisa de um ora-veja nessa existência, um reconhecimentozinho? Ah, não, ninguém quer saber!

Eu sou solidário com os sem-leitores porque faço parte dessa multidão.

Dia desses um colega blogueiro me contou  que está querendo  pagar alguém pra ler as suas mal-traçadas. Ah, não!  Não podemos permitir que a sombra do desespero tome conta. Então, agora estou visitando a ilha do colega todos os dias.

Tenho visto muitas ilhas desertas, abandonadas taperas virtuais, mostrando que um dia houve vida ali. É duro.

Acredito que os livros nunca vão morrer. São objetos perfeitos na forma e carregam em si o espírito  humano. Mas e os escritores e blogueiros? Sobreviverão nessa penúria de leitores?


Não sei, não sei.

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Foto: J. Finatto

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Setembro, setembros

Jorge Adelar Finatto
































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Fotos: J.Finatto

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Sete anjos velam à beira do poeta

Jorge Adelar Finatto


Sete anjos velam à beira do poeta. A primavera deitou lilases na cidade.  Os olhos estão apagados. As mãos nada mais seguram, nem flores, nem lápis, nem vento. Recorda o longo caminho de passos perdidos: não encontrou seu coração.  Sete anjos velam enquanto o poeta afunda na escuridão. Sete noites, sete estrelas, sete nuvens. Lembra os desaparecidos, os medos noturnos, a seca garganta da solidão, a poesia triste e inútil que cultivou. Sete anjos velam enquanto o poeta cai no esquecimento. Adormece num banco da pequena praça. Um fantasma caminha nas cercanias com seu boné e sua manta. Os anjos em suas vestes  brancas velam o poeta em volta daquele banco. Sonha com Henrique, sonha com Heitor. O difícil silêncio dos que partiram. Depois sente um ermo de fundo de pedra. Em volta da praça nascem hibiscos amarelos, vermelhos, brancos e um outro, de uma estranha cor que não tem nome.

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Desenho: J. Finatto, bico-de-pena, 1979.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

O dinheiro do enterro

Frederico Vasconcelos

Dona Marineide dos Santos é uma mulher simples, de poucos recursos e letras. Não é dada a escrever cartas. Mas numa emergência, no dia 4 de novembro, usou o serviço de vale postal da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, em Tietê, interior de São Paulo, para remeter R$ 265 a um parente, em Ribeirão Branco (SP). Era a sua parte nas despesas do sepultamento de um familiar.

Dona Marineide não lida com números. Não sabe que, naquele dia, os Correios realizavam 16,7 milhões de entregas, entre as quais a sua remessa, tão emergencial. Mas o que representa um vale postal entre dois municípios, num universo de encomendas e mensagens telemáticas que exigem um exército de 80 mil empregados?

Dona Marineide desconhece as pesquisas que indicam que os Correios são a instituição de maior confiabilidade no Brasil. Sua dolorosa experiência, contudo, mostrou que o seu dinheiro, tão esperado, não chegou ao destino.

Dona Marineide não conhece a lei sobre os serviços postais, que regula os direitos e obrigações dos Correios, mas foi se informar sobre o extravio. No dia 25 de novembro, Sílvio Faria Filho, agente dos Correios, confirmou por carta que o dinheiro não entrara na agência de Ribeirão Branco.

Dona Marineide não sabe que a lei que regula o serviço postal dispõe que os Correios devem "promover formação e treinamento de pessoal sério ao desempenho de suas atribuições". Não tinha por que duvidar do sr. Sílvio, que dizia que seu dinheiro se extraviara por "falhas da burocracia".

Dona Marineide mora no campo, mas assiste à televisão. Deve ter imaginado que a tal crise chegou a um ponto em que os Correios não tinham como devolver o seu dinheiro. A crise é brava, mas os Correios ainda dispõem de fôlego para aplicar algo como mil vezes o vale postal extraviado para patrocinar uma mostra na Bienal.

Dona Marineide e seus parentes ficaram sem ver a cor do dinheiro. Mas o que representa seu vale postal diante dos R$ 45 milhões que os Correios gastam para agências premiadas de publicidade nos dizerem que os serviços postais brasileiros estão entre os mais avançados do mundo?

Dona Marineide deve ter horizontes limitados; não sabe que os Correios investem R$ 500 milhões por ano para comprar equipamentos e melhorar as técnicas de atendimento. E que obtiveram financiamento externo para contrato de R$ 31,5 milhões com duas multinacionais, que fornecerão novo sistema para rastrear objetos. Quem sabe, no futuro, extravios como o de seu vale postal não ocorrerão.

Dona Marineide não sabe o que é globalização e neoliberalismo, não deve atinar para os tais mecanismos de proteção aos consumidores. Sabe quanto custa uma passagem de ônibus para reclamar o reembolso do que lhe é devido, mas não tem idéia do que sejam as "falhas da burocracia".

Dona Marineide não lê jornais e não deverá ficar sabendo por esta coluna que, 50 dias depois de sua angústia, os Correios -em menos de uma hora- confirmaram a grande injustiça e anunciaram que o dinheiro estaria disponível na agência, naquele dia.

Dona Marineide não imagina, mas a estatal só foi ágil depois que um jornalista levou o fato ao conhecimento da assessoria da presidência da empresa, em Brasília. Convenhamos, diante da complexidade da burocracia, tratava-se apenas do dinheiro para o enterro de um anônimo, não é mesmo?

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Este texto foi originalmente publicado na Folha de São Paulo, edição de 04/01/1999. O blog agradece a autorização para publicação. 
Frederico Vasconcelos é jornalista, repórter especial da Folha de São Paulo. Mantém o Blog do Fred (blogdofred.folha.blog.uol.com.br) ,  um dos mais importantes e acessados da área do sistema judicial brasileiro.
Pelos seus trabalhos, recebeu, entre outros, o Prêmio Esso, o Prêmio Bovespa de Jornalismo, o Prêmio BNB de Imprensa, o Prêmio Icatu de Jornalismo Econômico e foi finalista do "Premio a la Mejor Investigación Periodística de un Caso de Corrupción", do Intituto Prensa y Sociedad e Transparency International Latinoamérica y El Caribe.
Nas horas vagas, dedica-se a outro teclado: toca piano (Jazz e MPB).
E-mail: fvasconc@folhasp.com.br

Ilustração: arte do blog

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Os fascistas

Jorge Adelar Finatto

Os fascistas
escolhem sempre
as prisões
à benignidade do sol

mas os poetas
continuarão
violando
as sombras

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Poema do livro O Habitante da Bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.